Durante a guerra de 1948, o exército israelita pediu aos habitantes de duas aldeias cristãs maronitas da Galileia, junto à fronteira com o Líbano, que deixassem as suas casas prometendo-lhes que voltariam “dentro de quinze dias”. Não foram autorizados a regressar. Em 1973, o movimento Setembro Negro vingou-se, matando 11 atletas israelitas em Munique. (Ler mais | Read more...)

A palestiniana Samiha Dokeh posa para uma foto na sua antiga aldeia de Ikrit, junto à fronteira com o Líbano, em 21 de Abril de 2014. Ela tinha 8 anos quando o Exército israelita desalojou a sua família prometendo um regresso em breve. Embora, em 1951, o Supremo Tribunal tenha reconhecido o direito de os habitantes reaverem os seus bens porque têm cidadania israelita, responsáveis políticos e militares ordenaram que a povoação fosse destruída. Ficaram intactas apenas a igreja e o cemitério locais
O mundo não esquece – e não deve esquecer –, o massacre de Munique em 1972, mas quem se lembra ou sabe o que aconteceu a Ikrit (ou Iqrit) e Biram, duas aldeias árabes cristãs cujos nomes designaram a operação dos terroristas palestinianos que mataram 11 atletas israelitas?
O filme Munique, de Steven Spielberg, é criticado por alguns judeus pela alegada equivalência moral que estabelece entre o ataque e o subsequente castigo dos seus autores. Alguns árabes também o criticam por nem sequer aflorar os motivos que levaram o terror palestiniano até ao pior lugar da memória hebraica: a Alemanha.
O principal conflito do Médio Oriente está repleto de ajustes de contas, seguindo o lema bíblico “olho por olho, dente por dente”.
Em Munique, os palestinianos mataram invocando a sua luta pela criação de um Estado. Em Ikrit e Biram, os israelitas levaram a cabo uma limpeza étnica argumentando com a necessidade de segurança do seu Estado. As vítimas, de um lado e do outro, foram inocentes.
O massacre de Munique ficou gravado na História. Ikrit e Biram, na fronteira com o Líbano, desapareceram do mapa. Em Sleeping on a Wire: Conversations with Palestinians in Israel (2003), o escritor israelita David Grossman dá voz aos habitantes de Ikrit:
– No dia 31 de Outubro de 1948, quando eu tinha 20 anos, o exército israelita entrou na minha aldeia. Recebemos os soldados como convidados. Comemos, bebemos e cantámos.
(…) Estávamos contentes porque nenhum de nós tinha ficado ferido nos combates. (…) A 5 de Novembro de 1948, o comandante do exército, que se chamava Ya’akov Kara, chegou e disse que tinha recebido ordens.
Ninguém sabia quem as tinha dado. Não vimos papéis. Ordens. As crianças, as mulheres e os idosos deveriam abandonar a aldeia, porque o exército pretendia combater a força de Qawukji [um líder guerrilheiro], que ainda estava na área, e não queria magoar civis.
O oficial Ya’akov Kara deu a sua palavra militar de honra, que é sempre verdadeira, e prometeu que deixaríamos a aldeia apenas por 15 dias e que depois todos nós poderíamos regressar. (…) O próprio exército nos conduziu em veículos até [à povoação vizinha de] Rama.
Nós não fugimos. (…) Quinze dias depois fomos ter com as autoridades e elas pediram mais 15 dias. Regressámos a Rama [ou Rameh] e esperámos. Quinze dias depois, fomos de novo ter com as autoridades e elas disseram ‘voltem daqui a 15 dias’. E foi sempre assim.
Passámos seis meses em Rama. Todos os habitantes de Ikrit. Deram-nos as chaves dos habitantes de Rama, que tinham fugido. (…) Isto fere as pessoas no seu ponto mais sensível. O que pode justificar eu deixar a minha casa e ir viver para casa de outros?

Ruínas da aldeia cristã maronita de Biram, de onde os residentes aceitaram sair voluntariamente a pedido dos seus aliados judeus, durante a guerra de 1948, mas nunca foram autorizados a voltar pelo Exército israelita, que destruiu a povoação.
© Wikipédia
Em Biram, uma aldeia maronita, o exército também pediu que fosse evacuada, por “alguns dias, até que forças hostis pudessem ser afastadas da área”. Relata Grossman:
Nas semanas que precederam a evacuação, os soldados viveram com os aldeões. Cada casa tinha um quarto que lhes estava reservado. Dormiam e comiam juntos. (…) Uns após outros, todos os residentes entregaram as chaves das suas casas aos militares. Partiram a pé, numa longa coluna, para as montanhas sobranceiras à aldeia.
Era Novembro e chovia copiosamente. As famílias dormiam no chão. Os mais sortudos, ou talvez os mais fortes, encontraram grutas para se abrigarem. Durante o dia, todos se reuniam debaixo de oliveiras, sem compreender o vaivém de camiões militares, que entravam e saíam da aldeia.
Uma delegação de anciães foi perguntar ao exército quando poderiam regressar, tal como lhes tinha sido prometido. Quando entraram na aldeia tudo parecia negro – as portas das casas estavam partidas. As casas estavam vazias. Mobílias destruídas jaziam abandonadas nas ruas. Os soldados que os receberam expulsaram-nos, apontando-lhes as espingardas. ‘Esta terra é agora nossa’, disseram.
“A traição cortou-nos como uma faca”, sublinhou Elias Chacour, antigo residente de Biram e actual arcebispo da Igreja Greco-Católica Melquita, no seu livro Blood Brothers: The Dramatic Story of a Palestinian Christian Working for Peace in Israel (“Irmãos de Sangue: A história dramática de um cristão palestiniano em Luta pela paz em Israel”).
Nos processos judiciais que se seguiram, o exército israelita defendeu-se dizendo, por exemplo, em relação a Ikrit, que os aldeões “não eram residentes permanentes porque não estavam nas suas casas quando a área foi declarada zona de segurança”.
O Supremo Tribunal israelita deu razão aos queixosos, porque estes saíram das suas casas a pedido do exército. No entanto, logo após o veredicto dos magistrados, o exército emitiu “ordens de expulsão” aos aldeões de Ikrit.

O massacre de 11 atletas israelitas nos Jogos Olímpicos de Munique (Alemanha), em 1972, foi levado a cabo pelo movimento de guerrilha palestiniano Setembro Negro (na foto um dos terroristas) que designou o ataque de Operação Ikrit e Biram
Em Setembro de 1951, todas as casas de Ikrit foram dinamitadas. Até a igreja foi atingida. A data escolhida para destruir a aldeia foi 25 de Dezembro – “uma bela prenda de Natal” para os habitantes cristãos, ironizou Grossman.
O destino de Biram não foi melhor. Os residentes tinham-se refugiado em casas abandonadas em Jish (agora comunidade hebraica de Gush Halav), num monte a que chamaram o “Monte das Lágrimas” ou “Muro das Lamentações de Biram”.
Um dia, 16 de Setembro de 1953, ouviram uma enorme explosão e viram as suas casas ir pelos ares. Tudo se passou em cinco minutos. Depois vieram os bulldozers e deixaram tudo em ruínas.
O historiador Simha Flapan (1911-1987), em The Birth of Israel: Myths and Realities (1988), adianta que, para tudo ser mais rápido, a aviação israelita bombardeou Biram antes de ser conhecido o resultado de um recurso ao tribunal.
O plano de Israel, diz Flapan, era “substituir” as aldeias árabes na fronteira Norte por vários kibbutzim e moshavim, que deveriam albergar novos imigrantes. Não havia qualquer necessidade de expulsar os habitantes árabes, “que sempre mantiveram excelentes relações com os judeus”.
Em 1972, perante protestos de muitos activistas israelitas, árabes e judeus, Golda Meir, a primeira-ministra que daria as ordens aos espiões da Mossad para eliminar os perpetradores da Operação Ikrit e Biram em Munique, justificou publicamente por que não podiam os aldeões cristãos árabes regressar à Galileia: “Isso seria enfraquecer a fé no sionismo e criaria dúvidas sobre a justiça das suas reivindicações.”
Nada indica que Ikrit e Biram tenham dado licença para matar ao movimento Setembro Negro, mesmo que entre os mentores e membros do movimento estivessem pelo menos dois cristãos, George Habash e Kamal Nasser.
Um massacre foi cometido em Munique, em nome de duas aldeias que, iludidas pelo exército, por sucessivos governos e pelos tribunais israelitas, acabaram resignadas ao destino que um dos seus habitantes definiu como de “refugiados na nossa própria terra”.

O casal Labeeb e Marth Ashkar mostram uma fotografia da aldeia de Ikrit de onde foram deportados em 1948
© Oren Ziv | Activestills | 972mag.com
Este artigo, agora revisto, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 2 de Fevereiro de 2006 | This article, now revised, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on February 2, 2006