Entre 1515 e 1622, os habitantes desta aldeia no Sultanato de Omã mantiveram uma “relação secreta” com os ocupantes militares enviados pelos reis de Lisboa para controlar o estreito de Ormuz. Hoje, na remota península de Musandam (Moçandão), o português ainda faz parte de uma língua que mistura 24 idiomas, e os habitantes louros de olhos azuis são chamados de “filhos dos portugueses”. De Afonso de Albuquerque pouco se sabe. Os “conquistadores” são agora Cristiano Ronaldo, Luís Figo e José Mourinho. (Ler mais | Read more…)

© David Clifford
Quando ouve falar os kumzaris, Abdullah al-Shesi não resiste a provocá-los: “Que língua é essa? Parece português!”
Não se engana muito este gerente hoteleiro de Khasab, capital da península de Moçandão/Mussandam. É que os habitantes da mais remota aldeia no extremo norte do Sultanato de Omã, junto ao eEstreito de Ormuz, misturam 24 idiomas na sua língua não escrita. E um deles é o dos invasores que chegaram de Lisboa em 1515 e aqui permaneceram até à derrota em 1622. O seu legado tornou-se uma lenda no Golfo Pérsico.
Kumzar, a aldeia omanita onde o português convive com o árabe, o urdu, o farsi, o baluchi, o hindi, o grego, o italiano, o francês, o inglês e outras línguas dos que por aqui passaram, é um pedaço do paraíso.
Se Deus existe, esta é a sua morada. Para lá chegar é preciso enfrentar um mar enfurecido que parece querer guardar só para si a beleza de esculturais fiordes que emergem da água e se dissolvem no céu.
A viagem corta a respiração, deslumbrada pela paisagem e atormentada pela força das ondas que, a qualquer momento, podem causar um naufrágio.
É quinta-feira de manhã, o Sol queima aos 44-46 graus. Mala’Allah Ali Hassan Kumzari, “mais ou menos 27 anos” de vida, assenta o corpo baixo e franzino nos tornozelos, e agarra-se ao leme de um pequeno bote azul.
Pescador até se empregar no florescente sector turístico em Khasab, ele é destemido na forma como domina as vagas que ameaçam virar a embarcação.

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Durante mais de duas horas (ida e volta), Mala’Allah Ali Hassan Kumzari, “mais ou menos 27 anos de idade” , enfrenta o mar, num bailado suave, reclinando-se para a esquerda e direita, ou num combate aguerrido, de pé a olhar o “adversário”.
O barco mantém-se estável mesmo quando o marinheiro abandona o posto para reposicionar uma caixa de alimentos e um bidão de combustível que servirão de contrapeso à crispação das ondas.
A caminho da sua terra onde os cerca de 4000 habitantes têm o apelido Kumzari, Mala’Allah só cede uns minutos de ansiedade. Retira o telemóvel do bolso do fato de treino e coloca-o no palanque onde está o leme. O ecrã mostra o rosto belo de uma rapariga de olhos azuis. “É a minha namorada”, diz, tímido e orgulhoso.
“Quando tenho saudades olho para ela e isso acalma-me”. Ela vive no Dubai onde ele vai às vezes, nas folgas. “Gasto todo o meu salário em chamadas. Falo com ela todas as noites. Não sei se ela esperará por mim. Outras não esperaram. Nenhuma mulher compreende a necessidade que eu tenho do mar”. Este “vício” é partilhado pela maioria dos kumzaris que exibem rugas de sol e sal como troféus ambulantes.
À medida que se aproxima da aldeia que o viu nascer, Mala’Allah torna-se mais confiante. O que está prestes a revelar aos visitantes é como que um paradoxo da natureza. O lugar inspira paz mas aqui se travaram guerras para controlar Ormuz, a cidade-estreito que “se o mundo fosse um anel seria uma pedra preciosa” nela incrustada.
Kumzar forma uma espécie de semi-círculo, encravada em montanhas com oceanos aos pés. Está dividida em três partes separadas por rochas. A primeira visão, ao centro, é a de duas singelas mesquitas, cujas traseiras resguardam de olhares predadores casas escondidas em becos estreitos.
À esquerda está a central de geradores eléctricos (que possui dois dos três únicos carros do povoado, o outro é para recolha do lixo), um depósito de abastecimento de água, um centro de saúde e uma escola – “com classes mistas de meninos e meninas”, especifica Mala’Allah.
À direita estão as oficinas dos pescadores, com barcos e redes, um espaço exclusivamente masculino onde se prepara a faina, remenda equipamento e festeja a abundância dos cardumes.
No topo do maior rochedo foi montado um “trono” onde, rotativamente, um deles vigia o movimento das águas e dá o sinal de aviso para que os barcos de súbito se façam ao mar, em busca de sardinhas, atum e outros peixes.

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Quando avistam os estranhos que chegam, a primeira reacção das mulheres é refugiarem-se nas suas habitações, modestas mas com ar condicionado e antenas parabólicas, entrelaçadas como se fossem anexos de um só edifício familiar.
As boas-vindas ficam a cargo de garotos sorridentes que teimam em ser fotografados, e de alguns homens que aceitam partilhar experiências e tradições.
O mais velho morreu recentemente, estima-se que aos 120 anos. Além dos gritinhos infantis, o silêncio só é quebrado pelo balir de dezenas de cabras (o seu leite e queijo são alimentação e comércio) que, insolitamente, pastam sobre um infinito de pedras nuas de vegetação – aqui não há ruas nem estradas.
Hospitaleiro, Mala’Allah conduz-nos à residência da sua avó Aisha, viúva de idade desconhecida, rosto jovial com um anel no nariz que depois tapará com uma birka (ou burka), a máscara indicadora de que já foi casada. É ela que cozinha o almoço de arroz, frango e tâmaras para ser comido, de pernas cruzadas em soalho forrado de plástico, pelo anfitrião e seus dois convidados.
A refeição é saboreada no amplo e ventilado quarto de Mala’Allah, onde sobressai uma foto do sultão Qaboos bin Said fixada quase ao lado de outra de uma bem maquilhada artista dos Emirados. Nenhuma das mulheres e raparigas da casa entra neste aposento, porque está presente um homem estrangeiro, a quem não dirigem olhar nem palavra.
Em Kumzar os poucos habitantes que se deixaram ver nunca ouviram falar de Afonso de Albuquerque, o capitão-mor que em Março de 1515 (nove meses antes de morrer) estabeleceu o domínio português em Ormuz que se prolongaria até 1622.
Ao contrário de Mascate, a rebelde capital de Omã, onde muitos ainda recordam como o “fundador do império lusitano” mandou cortar os “narizes e orelhas” dos que recusaram submeter-se, os kumzaris parecem só guardar na memória os “conquistadores” do presente.

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Ao tomarem conhecimento da nacionalidade dos jornalistas, alguns jovens e idosos clamam em uníssono: Cristiano Ronaldo, Figo, José Mourinho. Um rapazinho ostenta até a camisola da selecção portuguesa, prova de que o futebol não tem fronteiras e de que se tornou uma obsessão nacional, com estádios profissionais ou campos pelados por todo o sultanato.
Ronaldo é a sensação maior. Todos sabem onde joga [na altura era no Manchester] e que “é excelente”. De Figo retiveram os “incríveis golos” no Mundial. De Mourinho, chegaram ecos do seu talento no Chelsea.
“Era bom que viesse treinar equipas de cá”, observou Ali Mohammed Hassan Kumzari, tirando o boné vermelho a combinar com a T-shirt de um clube local. “Ganhávamos tudo.”
Mohammed Ba, natural de Khasab, guia turístico desde que se extinguiu o sonho de ser piloto de aviões, sabe mais sobre Kumzar do que Mala’Allah, o filho da terra.
“O pudor em falar dos portugueses talvez se deva ao facto de quando estes aqui estiveram terem mantido uma relação secreta com os kumzaris”, justifica, invocando um “livro proibido” que ele guardará em casa. “Eles [portugueses] iam à aldeia buscar água fresca, leite e outras provisões para os soldados nas guarnições, mas tudo era feito no maior segredo. Davam-se muito bem com as gentes locais”.
Ba calcula que os Kumzaris temessem ser maltratados como “colaboracionistas”, e adianta: “Quando os ingleses aqui chegaram com os persas ficaram espantados por os residentes da aldeia falarem uma língua desconhecida, quase um código secreto. Era assim que eles comunicavam com os portugueses.”
Há também um traço invulgar numa região onde a maioria das pessoas tem a pele escura: alguns habitantes de Kumzar são louros e de olhos azuis. Ba admite que são chamados de “filhos dos portugueses”. A razão desconhece.
O arabista António Dias Farinha, numa entrevista que me concedeu em 1994, já fazia referência aos “membros da tribo de Sihuh, acantonada na zona montanhosa entre o emirado de Sharjah e o cabo Mussandam (ou Moçandão), que afirmam a sua origem portuguesa com resoluta pertinácia”.
A realidade, adiantava o professor, “pode filiar-se na lembrança de alguns portugueses, em maior ou menor número, que por alguma revolta, pela conversão ao Islão ou por interesse comercial, ali permaneceram em busca de riqueza ou de segurança”.
Mala’Allah e Ali Mohammed Kumzari, colegas de trabalho na Khasab Travel & Tours, já quase não vivem na aldeia natal. Aliás, a povoação, como outras de Moçandão, é apenas residência de Verão para (todos) os seus habitantes.
No Inverno, as famílias mudam-se para a capital da península, com barcos e animais – deixam só as raposas que traiçoeiramente lhes comem as galinhas.

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Em Khasab, os kumzaris adoptam os usos e costumes dos Emirados Árabes Unidos, geograficamente menos distantes que Mascate – a túnica dos homens (dishdasha) perde o cordão perfumado no pescoço e passa a ter botões de cima a baixo; o turbante deixa de ser colorido e torna-se branco, com pregas mais soltas e menos enroladas.
O modo de falar é ritmado mas lento; a música é menos acústica; a deriva consumista é mais forte que o apelo religioso. Só o patriotismo não é abalado.
“Gosto de me divertir no Dubai e em Sharjah, mas quando chego lá sinto que só poderia ser omanita e tenho de voltar”, afirma Mohammad Ba, vestido como um príncipe.
O árabe é a principal língua de Moçandão, mas a segunda é o kumzari [aparentemente em extinção], que ainda inclui palavras portuguesas como “bandeira”, “madeira” e outras. Talvez algumas tenham adquirido o significado contrário do original, como a expressão dor ôban (porta fechada) que vem do inglês door open (porta aberta).
Num exercício linguístico, Mala’Allah vai desfiando vocábulos na esperança de identificarmos semelhanças: nau é não; goste é carne; au é água, guerre é pote de água…
Se há ou não uma ligação etimológica só os especialistas saberão dizer. Por enquanto, a única certeza é que, em Kumzar, existe um ex-libris, a que chamam de “Poço dos Portuguesi”. Mala’Allah não nos levou lá.
Para ele, era mais importante mostrar o enorme reservatório que a marinha omanita enche duas vezes por semana com navios-cisterna, oferecendo à população água potável, gratuita, que só há poucos anos jorra de torneiras.
Quanto à língua, o homem cujo nome significa, segundo ele, “servo de Deus”, faz questão de dizer que o árabe, ensinado por professores egípcios, é o principal veículo de comunicação com o resto do país. O Kumzari não passa de uma língua oral. “Se alguém a escrevesse”, brinca, “ninguém a saberia ler – é uma grande confusão!”
As mulheres de Kumzar vistas por Razan Alzayani

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As fotografias aqui partilhadas podem ser vistas aqui.
A jornalista viajou a convite da representação do Governo de Omã em Lisboa
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 22 de Maio de 2005 | This article (now revised and updated) was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on May 22, 2005