V. S. Naipul: Um Nobel entre crentes e para além da crença

Sir Vidia foi à Indonésia, ao Irão, ao Paquistão e à Malásia, para perceber o revivalismo muçulmano. Sobre estas viagens escreveu dois livros, separados por 17 anos. Concluiu que o Islão teve “um efeito calamitoso sobre os povos convertidos”. Escandalizou quase um terço da humanidade, mas preservou a glória de ser um “cincumnavegador literário de voz voz inimitável”. (Ler mais | Read more...)

© The Economist

Numa das suas crónicas semanais no jornal egípcio Al-Ahram, o defunto académico palestiniano Edward W. Saïd escreveu: “Algures a meio do caminho, V. S. Naipaul [1932-2018] sofreu um grave acidente intelectual.”

“A sua obsessão com o Islão fez com que deixasse de pensar, para se tornar numa espécie de suicida mental compelido a repetir a mesma fórmula vezes sem conta. Isto é o que eu chamo de catástrofe intelectual de primeiro grau”.

O autor de Para Além da Crença – Digressões Islâmicas entre Povos Convertidos (Ed. Dom Quixote), a obra que mereceu esta dura crítica, mostrou-se indiferente.

“Quem é ele?”, perguntou V. S. Naipaul, Prémio Nobel da Literatura em 2001, como se desconhecesse, o que não era o caso, quem assim arrasava o livro que deu seguimento a um outro, escrito 17 anos antes, Among the Believers: An Islamic Journey (Entre os Fiéis).

Saïd reconhecia em Vidiadhar Surajprasad Naipaul “um escritor dotado” mas renegava a sua mensagem “carregada de estereótipos e preconceitos” sobre o mundo muçulmano.

Sir Vidia, por seu lado, sabia que tinha causado polémica, mas ainda se deu ao luxo de a amplificar quando, num discurso público, comparou o Islão ao colonialismo: “[Esta religião] teve um efeito calamitoso sobre os povos convertidos.”

“Quem se converte destrói o seu passado, destrói a sua história. Somos obrigados a dizer ‘a nossa cultura ancestral não existe’.”

Para Além da Crença, explica o agnóstico V. S. Naipaul (“ainda ando à procura”, informou), “é um livro acerca de pessoas, não de opinião”, com histórias coligidas durante cinco meses de viagens em 1995 por quatro países muçulmanos não-árabes — a Indonésia, o Irão, o Paquistão e a Malásia.

É a continuação de uma jornada, efectuada em 1979, quando o escritor britânico de origem indiana, nascido em Trindade e Tobago (Antilhas), “não sabia quase nada acerca do Islão”, o que, para ele, é “a melhor forma de começar uma aventura.”

© The New Republic

Assim, o primeiro livro, Among the Believers, “foi uma exploração dos lugares da fé e daquilo que parecia ser a sua capacidade de revolução”. O tema da conversão, refere Naipaul, “esteve sempre presente”, mas ele só o viu “claramente” na segunda incursão pelos quatro países escolhidos.

Among the Believers já tinha incomodado muita gente. Périplo com prólogo e epílogo no Irão de Khomeini, parece que Naipaul foi, propositadamente, ao encontro de tudo o que havia de pior no revivalismo muçulmano.

Em Teerão ou em Carachi, em Kuala Lumpur ou em Surabaya, ele chegou sempre às mesmas conclusões, como se nada separasse os lugares por onde passou. Nem distâncias nem tradições.

Constata-se também um certo paternalismo trocista em algumas observações: “(…) Um homem chamou Mehrdad à parte e perguntou a meu respeito: ‘Ele é muçulmano? (Talvez devido aos meus óculos escuros e chapéu de feltro à república das bananas). Mehrdad disse que sim, para nos poupar incómodos, e o homem deu-se por satisfeito”.

A sensação que fica é, pois, a de que Naipaul, autor de vários livros entre eles o famoso Na Curva do Rio, não encontrou nada de bom na “comunidade de crentes” que constitui quase um terço da humanidade.

Ele partiu, disse, “sem conhecer nada acerca do Islão” e esse desconhecimento é partilhado ao longo das quase 500 páginas de Among the Believers, às vezes de uma forma tão ingénua que chega a ser confrangedora. Por exemplo, quando confessa que só no Irão percebeu que os árabes e os persas “pertencem a seitas diferentes”.

Como é que alguém que desconhece o que provocou o grande cisma do Islão, entre sunitas e xiitas, pode mostrar-se, após escassos meses, tão seguro do seu diagnóstico final? “ Foi o século XX que fez do Islão revolucionário, dando novo significado às velhas ideias islâmicas de igualdade e de união, abaladas por sociedades estáticas ou atrasadas”, concluiu.

É como se Naipaul seguisse um guião previamente delineado e dele não se desviasse um milímetro. Os seus companheiros de viagem não surgem por acaso.

São pessoas frustradas e infelizes, como se escolhidas para passar a ideia de que o Islão político está condenado ao fracasso. Essa ideia passa facilmente num livro onde é inegável a minúcia, o brilho e o poder de persuasão da escrita do cavaleiro da coroa britânica.

© Financial Times

Não foi certamente uma coincidência que, de volta ao Irão, em Para Além da Crença, Naipaul tivesse ido à procura do Sr Parvez, fundador do jornal Teheran Times, cujo lema era “a verdade prevalecerá” e com quem trocara apenas algumas palavras em Among the Believers.

Parvez e o seu antigo colaborador, Sr Jaffrey, são exemplos perfeitos do malogro da Revolução Islâmica de Khomeini.

Xiitas de origem indiana, ambos sonhavam com uma sociedade idílica em que o espiritual e o terreno se fundiriam. No entanto, os excessos dos mullahs, tão ou mais cruéis que o deposto imperador Mohammad Reza Pahlavi, transformaram os sonhos dos dois “convertidos” em pesadelos.

Parvez acabou na falência, conformado com a autocensura, para sobreviver, no seu diário confiscado pelo regime. Jaffrey, perseguido por ter recebido fundos da Voz da América, foi parar ao Paquistão num velho Chevrolet.

© polskieradio24.pl

Este artigo, agora actualizado e com outro título, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 3 de Julho de 2004 | This article, now updated and under a different headline, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on July 3, 2004

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