Hamid Dabashi: “A invenção do Oriente foi um projecto de domínio colonial”

Para o  professor iraniano Hamid Dabashi, amigo íntimo e colega de Edward W. Said na Universidade de Columbia, o Orientalismo, publicado há 25 anos, em 1978, é um livro que denuncia “um plano mercenário destinado a pilhar a riqueza de povos e negar-lhes a dignidade”. (Ler mais | Read more...)

The cover of Said's Orientalism contained a detail from the 19th-century Orientalist painting The Snake Charmer, @ Jean-Léon Gérôme (1824–1904).

Capa da edição original (1978) de Orientalismo, de Edward Said: detalhe de uma pintura do século XIX,  The Snake Charmer (“O Encantador de Serpentes”), de  Jean-Léon Gérôme (1824-1904),
© The New York Review of Books

Hamid Dabashi ficou desolado quando Edward Said morreu [em 25 de Setembro de 2003]. Num obituário que escreveu, o iraniano que preside ao Departamento de Cultura e Línguas da Ásia e do Médio Oriente, na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, assumiu-se como um dos “raros que tiveram o privilégio de chamar amigo” ao colega palestiniano, uma figura de “grande humanidade, simplicidade e doçura”.

Dabashi conheceu Said no final dos anos 1980 quando entrou para a Universidade de Columbia. Já tinha lido o Orientalismo, a obra-prima do seu mestre, em 1978, quando era ainda estudante na Universidade da Pensilvânia.

O livro [editado em Portugal em 2004] influenciou-o para a vida. “Li-o no contexto da disciplina de Sociologia do Conhecimento, mas a imaginação, nova e ousada, redefiniu totalmente o objectivo do meu estudo”, disse-me,  numa entrevista, por e-mail devido ao seu pouco tempo disponível, antes de iniciar uma viagem.

Hoje, o próprio Dabashi, autor de numerosos livros como Authority in Islam: From the Rise of Muhammad to the Establishment of the Umayyads (1989), Theology of Discontent: The Ideological Foundation of the Islamic Revolution in Iran” (1993) ou Close Up: Iranian Cinema, Past, Present, Future” (2001),  realça o modo como “uma geração de intelectuais imigrantes” foram influenciados por Said.

“A forma do nosso carácter crítico, a voz da nossa dissidência, a textura da nossa política e a disposição da nossa coragem estão todas inscritas em cada palavra desse texto-revelação [Orientalismo]”, observou o professor que vive nos EUA desde 1976.

© Khan Academy

Como foi profundamente influenciado por Orientalismo, pode explicar por que motivo gerou este livro tanta controvérsia? Vinte e cinco anos depois da publicação da obra original, como devemos olhar para as ideias de Edward Said? Está de acordo com William B. Quandt que, na revista Foreign Affairs, atribuiu ao professor palestiniano a criação de “um novo campo de ‘Ocidentalismo’ que examina o modo como no Médio Oriente se olha para o Ocidente”?

O que Said tornou possível foi um modo inteiramente novo de olhar para o mundo. O “Orientalismo” teve um impacto revolucionário maciço a nível global. Quebrou efectivamente as barreiras disciplinares e facilitou uma nova maneira de pensar de uma forma radical e libertadora.

A noção do chamado ‘Ocidentalismo’ é uma anedota e emerge de uma fundamental ignorância da lógica do ‘Orientalismo”’, que é a relação entre conhecimento e poder.

A mera assunção de um ‘Ocidente’ é uma fabricação histórica do ‘Orientalismo’ – como é que os orientais poderiam produzir um conceito de Ocidente em quaisquer termos que não fossem os que confirmam ou negam o seu designado estatuto como orientais.

Não havia poder da parte deles para gerar a vontade de conhecimento comparável ao projecto colonial que o orientalismo serviu.

Said deixa claro que o Orientalismo não é uma tentativa de abranger uma região inteira. Ele centra a sua atenção no modo como estudiosos ingleses, franceses e americanos descreveram as sociedades árabes do Médio Oriente e Norte de África. Nem sequer discute a atitude de outros orientalistas. No entanto, muitos críticos, como George P. Landow, da Universidade de Brown, alegam que o livro “negligencia completamente a China, o Japão e o Sudeste Asiático, e diz muito pouco sobre a Índia”. Também argumenta que “ao pretender ser um estudo sobre como o Ocidente trata todo o Oriente, acaba por se centrar inteiramente no Médio Oriente. As suas generalizações sobre ‘o Oriente’ acabam por repetir o mesmo ‘Orientalismo’ que ele ataca em outros textos”. Qual o seu comentário?

Esta crítica não tem sentido. O significado e a verdade de uma descoberta ou de uma teoria não podem ser julgados pelo número de exemplos que evoca. Metodologicamente, se a amostra que um teórico discute é representativa da sua população então as suas propostas são válidas e universais.

Nada, desde a publicação do ‘Orientalismo’, de Edward Said, foi oferecido das áreas que ele não abrangeu que provem que as suas ideias originais estavam erradas. Pelo contrário, destacados académicos e intelectuais nas áreas que Said não cobriu corroboraram de facto a sua teoria.

© alephas.org

Uma outra crítica é a de que o Orientalismo assume que a projecção do ‘outro’ e suas nocivas consequências políticas são algo que só o Ocidente faz ao Oriente e não que todas sociedades façam umas às outras. Ou seja, é verdade que o que o Ocidente faz ao Oriente, como denuncia Said, o Oriente também faz ao Ocidente?

Não, não é verdade. Pela seguinte razão: Oriente e Ocidente são conceitos muito recentes – gerados e sustentados pelo projecto da modernidade colonial. Este absurdo de o Oriente fazer ao Ocidente o que o Ocidente faz ao Oriente assenta no fracasso em compreender o que Said escreveu.

E ele escreveu que a invenção do Oriente foi um projecto discursivo ao serviço do domínio colonial do mundo. Os seus exemplos provêm do mundo árabe e islâmico mas as suas conclusões são universais.

O que eu retenho da teoria de Said é mais histórico e pode assim ser explicado: a emergência da modernidade capitalista na Europa Ocidental desmantela duas classes, a aristocracia e o clero, socialmente ultrapassadas e economicamente irrelevantes.

O declínio dos pilares aristocráticos e eclesiásticos das sociedades europeias ocidentais anunciam a ascensão de uma nova classe média burguesa – que por ser turno antecipa o declínio do pensamento dinástico a História europeia.

A campanha capitalista precisava de uma economia nacional, que por sua vez gerou uma política nacional e logo de imediato uma cultura nacional.

Deste modo, os ingleses, os franceses, os alemães, os italianos, os espanhóis emergiram como sólidas identidades nacionais em detrimento de categorias subnacionais – comunidades que ficaram presas nestas metanarrativas e, embora se ressentissem e continuassem a lutar, foram forçados a ceder as suas aspirações subnacionais à supremacista lógica do capital.

O colapso do pensamento dinástico foi coincidente com o colapso do termo mais genérico da cristandade que costumava abranger as histórias dinásticas europeias.

Como categoria, a ideia de uma civilização ocidental é muito recente na sua cunhagem. O conceito de ‘Ocidente’ subsituiu a ideia de ‘Cristandade’ à medida que os emergentes Estados-nações substituíam dinastias históricas europeias.

Mas a modernidade iluminista que inventou ‘o Ocidente’ em nome da burguesia europeia tinha demasiado peso nos ombros e não acreditava seriamente na validade histórica da categoria que acabara de inventar – o seu racionalismo era demasiado brutal.

O Iluminismo burguês mobilizou um exército de mercenários orientalistas que andassem pelo mundo e inventassem ‘outras’ civilizações que corroborassem o que a civilização ocidental tinha acabado de inventar. Assim, a civilização islâmica, a chinesa, a indiana e outras foram inventadas para corroborar a nova fabricação cunhada: a civilização ocidental.

© christies.com

Said é também criticado por basear o Orientalismo em muito pouco conhecimento da história do imperialismo europeu e não-europeu, tratando o colonialismo ocidental como único. O que diz sobre isto?

O teste da verdade e significado de uma teoria não é contingente à sua compreensão mas à sua capacidade representativa. Nada que historiadores academicamente mais qualificados sobre imperialismo europeu e não-europeu ofereceram negou o mais essencial da verdade das observações de Said.

No entanto, a sua ousada imaginação libertou a paralisia epistémica de várias disciplinas – incluindo História, Antropologia, Sociologia, Teoria Literária e agora Estudos Culturais.

Há também quem diga que uma das alegações mais ofensivas de Orientalismo é a de que nenhum estudioso europeu ou americano pode “conhecer” o Oriente e de que todas as tentativas académicas de o fazerem (excepto as de Said) constituírem uma espécie de acto de pressão. O professor Landow, por exemplo, acusa Said de ter “silenciado outros impedindo-os de participar no debate”. E acrescentou: “Segundo Said, se alguém estudasse a gramática persa ou tâmil, a história do Islão ou do Hinduísmo, ou as sociedades da Arábia Saudita, Egipto ou Bangladesh, já pertencia à parte demoníaca. Estavam corrompidos pelo que Said definiu como Orientalismo”. Como reage a esta crítica?

Said não silenciou ninguém. Ele expôs a relação primorosa entre conhecimento e poder, uma teoria que pediu de empréstimo a Michel Foucault, e levou-a até ao grande mercado do significado global para além das suas limitações originais.

Ele também se mostrava impaciente com neo-orientalistas e peritos iletrados que não tinham o conhecimento fundamental do que o meu distinto amigo e colega Gayatri Spivak correctamente chama de “idiomaticidade” das línguas, literaturas e culturas.

Esses neo-orientalistas estão zangados com Said porque ele desvendou publicamente o segredo de que o conhecimento deles é elementar, prosaico e quase sempre desenquadrado do principal radar das sociedades que querem dominar conhecendo-as. Eles não as conhecem nem as dominam.

Malcolm Kerr, no International Journal of Middle Eastern Studies, comentou que, ao atribuir a toda uma tradição de estudos orientais por parte de americanos e europeus os pecados do minimalismo e da caricatura, Said comete precisamente o mesmo erro, quando exclui ou omite especialistas distintos como Goldzhiger ou Goiten,  Hourani ou Berque”. Qual a sua opinião?

A crítica do “Orientalismo” não é dirigida a orientalistas específicos. É uma crítica de um discurso de uma constituição discursiva do poder. Individualmente, os orientalistas podem ser tão competentes como Goldzihger ou ridículos como Bernard Lewis – o facto nada tem a ver com a verdade essencial da observação de Said sobre a natureza e a função do discurso orientalista.

© The New Yorker

Falando de Bernard Lewis, que critica Said por “rejeitar virtualmente todos os estudos ocidentais sobre o Médio Oriente”, como explica a profunda antipatia mútua que os separava?

Bernard Lewis é o destinatário do ‘Orientalismo’ – acabar com um queixume lamurioso. Bernard Lewis é a vingança do ‘Orientalismo sobre si próprio, a sua consciência pesada a desacreditar as suas próprias pretensões de credibilidade académica.

Bernard Lewis fez mais para evidenciar a falência constitucional do ‘Orientalismo’ do que Said alguma vez precisou de demonstrar.

Bernard Lewis é o melhor que podia acontecer à validade histórica da magistral descoberta de Said – de que o ‘Orientalismo’ foi um projecto mercenário destinado a justificar a mentira do colonialismo ao pilhar a riqueza de povos e negar-lhes a dignidade.

É óbvio que Orientalismo recebeu igualmente grandes elogios por todo o mundo, mas como explicar tantas críticas negativas que o livro provocou? Eram motivadas pela personalidade do autor ou mera inveja dos seus pares?

Foi tudo isso junto: a corajosa personalidade de Edward Said, a enorme inimizade e inveja que a sua obra gerou e, acima de tudo, por ele ter exposto a irrelevância académica, a falência histórica e o colapso dos orientalistas profissionais, excluindo-os de um mercado sério e decente. Agora essa gente está ao serviço de think-thanks igualmente desacreditados.

Que conselho daria aos leitores que têm agora à sua disposição o Orientalismo em português?

Eu invejo-os. Gostava de saber português, ter 18 anos e ainda não ter lido o “Orientalismo”. Gostaria de estar no lugar deles e não ter ainda conhecido a mente brilhante que lhes vai ser revelada.

Bem-vindos a Edward Said, é o que lhes digo. Numa voz generosa, magnífica, corajosa e libertadora acabam de encontrar um amigo para toda a vida!

“O que Edward Said (aqui numa foto em 2003) tornou possível foi um modo inteiramente novo de olhar para o mundo”, diz o amigo Hamid Dabashi. O seu livro Orientalismo teve um impacto revolucionário maciço a nível global”
© Jean-Christian Bourcart | Getty Images | Financial Times

Hamid Dabashi, discípulo fiel de Edward W. Said @ewisgropp.wordpress.com

Hamid Dabashi, discípulo fiel de Edward Said, “um amigo para toda a vida”
© ewisgropp.wordpress.com

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 2003 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO in 2003

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