Edward Said: “Não venho de lado nenhum, mas o mundo inteiro pertence-me”

O autor de Orientalismo, obra-prima editada em português 25 anos após a publicação original, nunca se sentiu bem em nenhuma cultura. Estava sempre em “minoria”: cristão numa sociedade muçulmana, árabe em escolas inglesas, palestiniano de cidadania americana. Morreu em 2003. Ganhou finalmente um lugar: na História. (Ler mais | Read more...)

Edward Said (1935-2003)
© Cortesia de | Courtesy of Icarus Films

Era com uma frase de Hugo de Saint-Victor, “Eu não venho de lado nenhum, mas o mundo inteiro pertence-me”, que Edward W. Said, o monumental intelectual palestiniano, autor de Orientalismo, gostava de se descrever.

Ou então como me disse, numa passagem por Lisboa, em Setembro de 1998, já gravemente doente com a leucemia que o haveria de matar: “Não me sinto em casa em nenhuma cultura”.

E por que motivo o admirador de António Gramsci, o teórico italiano do comunismo, nunca encontrou, como escreveu em Culture and Imperialism a sua “doce pátria” e preferiu “espalhar sempre o amor por todos os lugares? A explicação está em duas autobiografias.

A primeira em 1992 (Return to Palestine-Israel) em que relata o seu regresso à terra natal depois de 26 anos de ausência. A segunda em 2000 (Out of Place), que lhe mereceu insultos de alguns membros da comunidade judaica norte-americana, determinados em negar a veracidade da sua certidão de nascimento: Jerusalém, 1 de Novembro de 1935.

Nas primeiras memórias, ao evocar os caminhos tortuosos para localizar a residência dos seus antepassados em Talbiya, a oeste de Jerusalém, a cidade que israelitas e palestinianos reclamam como capital, Said refere que depois de a ter encontrado se recusou a entrar.

“Ali estava a casa, apercebi-me subitamente, com o seu ainda impressionante volume, a pequena praça arenosa, agora um parque elegante e bem tratado. (…) Disparei 26 fotografias naquele lugar que, ironia das ironias, tinha à porta uma placa com o nome International Christian Embassy.”

“Ter encontrado a casa da minha família, ocupada não por uma família judia israelita mas por um grupo cristão fundamentalista e pró-sionista, foi um abrupto golpe para um filho de palestinianos cristãos.”

“Ira e melancolia tomaram conta de mim, e quando uma mulher americana saiu de casa com um molho de roupa suja debaixo do braço e me perguntou se eu precisava da sua ajuda, tudo o que proferi foi um instintivo ‘Não, Obrigado!’

Para muitos palestinianos, ao relatar a sua viagem pessoal da perda à resistência, estava também a contar a viagem deles. E, por isso, muitos se reviam nas suas obras, apesar de Said se sentir um estranho entre os seus.

Edward Said e Mahmoud Darwish, considerado “o maior poeta nacional palestiniano”
© maraahmed.com

Em Out of Place, observa: “Todas as famílias inventam os seus pais e filhos, dão-lhes uma história, personalidade, destino e até uma língua. Houve sempre algo de errado na forma como eu fui inventado e predestinado a encaixar-me no mundo dos meus pais e das minhas quatro irmãs. (…) Às vezes eu era intransigente e tinha orgulho nisso.”

“Outras vezes parecia desprovido de qualquer carácter, tímido, inseguro, sem vontade. (…) Foram precisos 50 anos para me habituar ou, mais propriamente, para me sentir menos inconfortável com ‘Edward’, um tolo nome inglês imposto a uma família árabe de apelido Said. (…)”

“Durante anos, e dependendo de precisas circunstâncias, eu enfatizava o ‘Said’ em detrimento do ‘Edward’; outras vezes fazia o inverso ou ligava os dois tão rapidamente que nenhum deles se tornava claro”.

Para além do nome, havia outra angústia. “Nunca soube qual era a minha primeira língua, o árabe ou o inglês, ou qual delas era realmente minha sem margem para dúvidas.”

“O que eu sei mesmo é que as duas sempre estiveram juntas na minha vida, uma ressoando na outra, às vezes com ironia, outras com nostalgia, frequentemente corrigindo-se uma à outra ou fazendo comentários mútuos.”

Edward e Mariam Said, que dirige a Barenboim-Said Academy (BSA), criada em 2016, e também a Orquestra Divan Oriente-Ocidente (WEDO), co-fundada pelo seu marido, em 1999, com o maestro Daniel Barenboim
© Cortesia de | Courtesy of Icarus Films

As múltiplas raízes da mãe também ajudaram à confusão: nascida em Nazaré (actual Israel), era palestiniana embora a avó de Said fosse libanesa e o avô um ministro baptista originário do Texas.

“Toda a minha vida retive este sentido perturbador de muitas identidades – a maior parte delas em conflito umas com as outras – em conjunto com uma memória aguçada do sentimento de desespero que gostar de ter sido só árabe, só europeu e americano, só cristão ortodoxo, só muçulmano, só egípcio e, por aí adiante.”

Comentários como “Você não parece americano”, “Nasceu em Jerusalém e vive aqui?” ou “Que tipo de árabe é você?” deixaram Said eternamente deslocado, a ponto de confidenciar a um jornalista francês: “Parecia-me absurdo encontrar-me constantemente em minoria – árabe em escolas inglesas, palestiniano no Egipto, cristão numa sociedade muçulmana…”.

Passemos então agora em revista o percurso de Edward Wadie Said, o homem que deu palestras em mais de 150 universidades e cujos livros foram traduzidos em pelo menos 14 línguas.

Em 1947 partiu de Jerusalém, poucos meses antes da metade ocidental da cidade ter sido conquistada pelas forças judaicas na guerra que criou o Estado de Israel e levou ao êxodo de milhares de palestinianos.

Depois de passagens pelo Egipto, onde estudou, e pelo Líbano, mudou-se para os Estados Unidos, em 1951e requereu a cidadania norte-americana. Licenciou-se em Princeton e doutorou-se em Harvard e depois tornou-se professor de Inglês e Literatura Comparada na Universidade de Columbia. Também leccionou em Yale.

Se não tivesse feito mais nada, talvez Said fosse lembrado pelos seus pioneiros estudos culturais. Mas ele superou-se: em mais de três décadas de intervenções políticas (uma parte delas magnificamente compilada em The Politics of Dispossession – The Struggle for Palestinian Self-Determination 1969-1994) tornou-se o mais eloquente e visível advogado da causa palestiniana no Ocidente.

Abalado pela derrota árabe na Guerra de 1967, durante a qual Israel ocupou, designadamente, a Cisjordânia incluindo Jerusalém Oriental, e a Faixa de Gaza, Said empenhou-se em provar a “existência de um povo palestiniano com uma história, uma sociedade e, mais importante, o direito à independência.”

A actriz Najla Said, filha de Edward, publicou a autobiografia em 2013, Looking for Palestine: Growing Up Confused in an Arab-American Family. Escreveu: I was proud of my new green blazer with its fancy school emblem and my elegant shoes from France. But even the most elaborate uniform could not protect against my instant awareness of my differences. I was a dark-haired rat in a sea of blond perfection. I did not have a canopy bed, an uncluttered bedroom, and a perfectly decorated living room the way my classmates did. I had books piled high on shelves and tables, pipes, pens, Oriental rugs, painted walls, and strange houseguests. I was surrounded at home not only by some of the Western world’s greatest scholars and writers — Noam Chomsky, Lillian Hellman, Norman Mailer, Jacques Derrida, Susan Sontag, Joan Didion — but by the crème de la crème of the Palestinian Resistance
© Vogue

Neste seu activismo, foi-se associando cada vez mais à OLP e, em 1977, aderiu até ao Conselho Nacional Palestiniano (parlamento da organização no exílio). É desse ano uma das suas obras mais provocadoras, The Question of Palestine, onde aborda a colisão entre dois povos e as repercussões nas vidas do ocupante e do ocupado, assim com na consciência das potências ocidentais.

O livro foi posteriormente actualizado para incluir a invasão israelita do Líbano de 1982, que conduziu à dispersão de milhares de guerrilheiros da OLP por oito países árabes, a primeira Intifada (1987-2004) e a guerra do Golfo de 1991.

A filiação de Said na OLP não foi fácil. No ambiente hostil dos anos 1970 e 1980 em Nova Iorque, foi frequentemente classificado, por israelitas e palestinianos, de “cúmplice de assassinos”. Recebeu ameaças de morte mas não se deixou intimidar.

Em 1983, escreveu um artigo a defender Yasser Arafat contra uma conspiração fomentada pela Síria de Hafez al-Assad dentro da OLP, numa altura em que os seus familiares viviam, como ele sublinhou, “sob hegemonia militar de Damasco”.

Estar próximo de Arafat, no entanto, sempre o incomodou e, no final de 1991, demitiu-se do CNP. A razão do seu afastamento foi, oficialmente, a de que lhe tinha sido diagnosticada uma doença maligna.

Mas houve outros factores. Said ficou horrorizado com o apoio de Arafat a Saddam Hussein – ele abominava os ditadores árabes – após a invasão iraquiana do Kuwait, em 1990, prevendo com clarividência o efeito terrível que isso teria sobre os palestinianos residentes no Golfo Pérsico.

Também exprimiu a sua profunda desconfiança com a Conferência de Madrid que, em 1991, lançou as bases do “processo de paz” no Médio Oriente. Silenciou todas as críticas até 1993, quando decidiu denunciar publicamente os Acordos de Oslo (Peace and its Discontents, Gaza-Jericho 1993-1995) como a “Versalhes dos palestinianos.

A partir daí, não parou de atacar a incompetência e a autocracia de Arafat. Os laços entre os dois homens romperam-se definitivamente. Em Agosto de 1996, a Autoridade Palestiniana, num acto considerado de extremo rancor, proibiu os livros de Said nos territórios autónomos/ocupados.

O argentino-israelita Daniel Barenboim, o amigo com quem Edward Said formou uma orquestra de  jovens  do Egipto, Síria, Líbano, Tunísia e Israel, a Diwan Oriente-Ocidente
© universal-music.de

Remando contra a maré, o activista político e talentoso pianista (a mais importante influência musical na sua vida foi, revelou ele, Ignace Tiegerman, um judeu polaco que fugiu do seu país consciente do advento do nazismo), Said foi estabelecendo pontes com duas figuras essenciais: o palestiniano Azmi Bishara, defensor de um Estado binacional secular para judeus e árabes, e o argentino-israelita Daniel Barenboim, com quem formou uma orquestra de 80 jovens entre os 13 e os 25 anos, do Egipto, Síria, Líbano, Tunísia e Israel, a Divan Oriente-Ocidente.

Sobre Bishara, disse-nos Said quando esteve em Lisboa, no âmbito das Conferências da Arrábida: “Estamos a tentar promover a ideia de cidadania. Que não existe. Nem em Israel nem na Palestina. Isto é interessante.”

“Quer o nacionalismo judeu quer o árabe concentraram-se de tal modo no Estado e na componente militar que nunca se ocuparam da democracia. Não há tradição no sionismo ou no nacionalismo árabe do elemento democrático da luta. Nunca houve!”

“Sempre sacrificámos tudo pela nação. A primeira coisa que temos de desenvolver é o conceito de cidadania e de direitos”.

Bishara e Said representam uma corrente pouco expressiva nos territórios palestinianos, onde a maioria continua a defender dois Estados, mas a ambos é atribuída uma forte determinação.

Said clamava: “Ou se fazem compromissos com a História, ou a repensamos ou a revemos. O que eu quero é repensar a história das fronteiras e reescrevê-la de tal maneira que as fronteiras apareçam traçadas por seres humanos e susceptíveis de ser apagadas por seres humanos.”

“Aquele que diz que uma fronteira é um facto da natureza está errado. (….) É claro que o que nós devemos conquistar é a nossa identidade.”

Quanto a Barenboim, maestro titular da Orquestra Sinfónica de Chicago, nascido em Buenos Aires de pais judeus russos, cidadão israelita desde os 10 anos de idade, vale a pena reproduzir o que ele escreveu quando a sua “alma gémea” morreu: “Talvez a primeira coisa que Edward Said nos faz recordar seja a amplitude do seu interesse.”

“Ele estava à vontade não só na música, na literatura, na filosofia ou na interpretação política, mas era também uma das raras pessoas que vias as ligações e os paralelos entre diferentes disciplinas, porque tinha um entendimento pouco habitual do espírito humano e do ser humano, e reconhecia que paralelos não são contradições.”

Barenboim, que ofendeu judeus quando, em Israel, ousou tocar Wagner (o “compositor de Hitler”) e que emocionou palestinianos ao doar o seu Steinway ao Conservatório de Ramallah [que agora tem o nome de Edward Said], destruído pelo Exército israelita, tinha uma admiração profunda pelo amigo com quem partilhou concertos de Mozart, Beethoven, Schubert e Rossini.

Na carta de despedida sublinhou: “(Said) viu na música não só uma combinação de sons, mas percebeu o facto de que cada obra-prima musical é, como sempre foi, uma concepção do mundo. E a dificuldade reside no facto de que esta concepção do mundo não pode ser descrita em palavras.”

“Mas ele tinha consciência que ser indescritível não quer dizer não ter significado. Procurou sempre o que estava ‘para além’ da ideia, o que era ‘invisível’ aos olhos e o que era ‘inaudível’ aos ouvidos.”

Edward Said, a sua morte deixou o mundo mais pobre
©jsah.ucpress.edu

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente pelo jornal PÚBLICO em 2003 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO in 2003

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