O francês Eric-Emmannuel Schmitt escreveu um livro delicioso com pouco mais de 50 páginas. A obra já passou a filme, com Omar Sharif recuperando o talento de Doutor Jivago (Ler mais | Read more…)

Eric-Emmanuel Schmitt, o autor de O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão
© Corbis
“Quando fiz onze anos parti o mealheiro e fui ver as putas”. Assim começa, na Paris dos anos 1960, a mágica aventura de Moisés, um rapaz que se torna amigo de Ibrahim, merceeiro que lhe ampara a orfandade na Rue Bleue, onde mulheres profissionais vendem amor.
O Senhor Ibrahim e as Flores do Alcorão (Ed. Ambar – Biblioteca de Bolso), de Eric-Emmannuel Schmitt, lê-se com a mesma sofreguidão com que Moisés entrega o corpo às mulheres que se “disfarçam de Brigitte Bardot para atraírem os clientes”.
O diálogo travado entre os dois protagonistas, a amizade e cumplicidade entre ambos, resultam numa história terna e maravilhosa.
“Quando comecei a roubar o meu pai para o castigar por ter desconfiado de mim, comecei também a roubar o senhor Ibrahim”, confessa Moisés. “Sentia-me um pouco envergonhado mas, para lutar contra a minha vergonha, na altura de pagar pensava com muita força:
No fim de contas, é apenas um árabe!
(…) — Não sou árabe, Momo; venho do Crescente de Ouro.
Agarrei nas compras e saí da mercearia completamente atordoado. O senhor Ibrahim ouvia-me pensar! Portanto, se me ouvia pensar, talvez soubesse que o roubava…
No dia seguinte não roubei nenhuma lata, mas perguntei-lhe:
— O que é o Crescente de Ouro?
— (…) É uma região que vai da Anatólia à Pérsia, Momo.
No dia seguinte, ao pegar no porta-moedas, disse-lhe:
— Não me chamo Momo; chamo-me Moisés.
No dia seguinte foi ele que disse:
— Sei que te chamas Moisés; por isso te chamo Momo, pois é menos impressionante.
No dia seguinte, ao contar os meus cêntimos, perguntei:
— Que diferença lhe faz? Moisés é um nome judeu, não é árabe.
— Não sou árabe, Momo, sou muçulmano.”
Assim decorriam as conversas na rua que de azul só tinha o nome. “Uma frase por dia”, até que Ibrahim começou a dar lições de vida a Moisés. Ensinou-o a sorrir para ser feliz — “a arma absoluta”.
Encorajou-o a recorrer às mulheres “que conhecem bem o ofício”, porque “as amadoras” estavam reservadas para “os sentimentos”. E quando estes chegaram, mesmo não correspondidos, Ibrahim aconselhava: “O que dás, Momo, é teu para sempre: o que guardas, está perdido para sempre.”
O merceeiro arranjou a Moisés um dentista. Comprou-lhe sapatos novos. Passeou com ele pelos Campos Elíseos e pelas lojas onde “as montras dos ricos são pobres”, porque o luxo está todo no preço.
Ibrahim surpreendeu “Momo” quando saboreou um doce de anis, para logo clarificar que os sufis (corrente mística do islão) bebem álcool.
Mais tarde, seria o seu pai a baralhá-lo quando revelou que não acreditava em Deus. “Ser judeu não tem a ver com Deus?”, inquiriu Moisés. “Para mim, já não”, replicou o pai. “Ser judeu é ter simplesmente uma memória. Uma má memória”.
Perdido, “Momo” pensou pedir de empréstimo o Corão que guiava a existência de Ibrahim. Não queria ficar deprimido como o pai, que se suicidou numa linha-férrea em Marselha, talvez angustiado por não ter seguido nos comboios da morte onde os nazis cremaram a sua família.
Ser judeu “é só uma coisa que me impede de ser outra”, dizia inconformado Moisés ao sábio Ibrahim.
Quando a mãe apareceu em casa depois de o abandonar na infância, Moisés disse-lhe que se chamava Mohammed e renegou-a. Ibrahim adoptou-o como filho. Os dois compraram um carro, com um saco de notas, e partiram para o Crescente de Ouro.
Para saber o que se passou depois é melhor ler o livro, que o cineasta francês François Dupeyron transformou numa “comédia dramática, Monsieur Ibrahim et les fleurs du Coran. A Omar Sharif, o talentoso Doutor Jivago, foi dado o papel do doce “príncipe da mercearia”.
[Os livros de Eric-Emmanuel Schmitt foram traduzidos para 43 línguas e as suas peças são representadas regularmente em mais de 50 países. Em Portugal essa missão coube ao Teatro Meridional: Versão Cénica e Encenação Miguel Seabra | Interpretação Miguel Seabra e Rui Rebelo.
Em 2000, Schmitt recebera o Grande Prémio de Teatro da Academia Francesa, pelo conjunto da sua obra teatral, e em 2004 o Grande Prémio do Público, em Leipzig.]
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em Setembro-Outubro de 2013 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on July 2003