O esforço foi titânico mas, ao fim de várias horas, uma robusta estátua de Saddam Hussein, em Bagdad, ruiu [em 9 de Abril de 2003] aos pés de uma multidão em delírio. Com o tronco e os pés do tirno arrancados do pedestal, caiu também, simbolicamente, o regime que há um quarto de século governava o Iraque. (Ler mais | Read more...)
O sonho de Saddam Hussein, colocado na boca do protagonista de um livro cuja autoria lhe foi atribuída, era o de ser “levado em triunfo”, e ficar com o nome “gravado no mais fundo do coração” de cada um dos 26 milhões de habitantes da antiga Mesopotâmia.
Deposto o líder [em 2003], leia-se o que ele escreveu sobre si próprio em Zabiba e o Rei (Publicações Europa-América) uma espécie de conto das Mil e uma Noites que os serviços secretos norte-americanos e israelitas não hesitaram em classificar como obra de Saddam, apesar do anonimato [“Pelo seu autor”] assumido de quem o escreveu.
Não falta nada na suposta autobiografia do admirador de Saladino, o que venceu os Cruzados em Jerusalém. Zabiba pode ser o Iraque, mas também a mulher casada que ele seduziu para substituir a mãe dos seus filhos.
A “violação” de Zabiba, em 17 de Janeiro de 1991, evoca a guerra do Golfo de 1991 que expulsou o Iraque do Kuwait. O cozinheiro que é morto por querer envenenar o monarca faz lembrar o mesmo homem que o primogénito de Saddam, Uday Hussein, assassinou quando descobriu que havia uma amante na casa paterna.
São também quase proféticos os preparativos para resistir a um ataque ao palácio. E é intrigante que, no último capítulo, o rei morra sem deixar um herdeiro. Extractos do que parece um auto-retrato do tirano que deixou um país pintado e esculpido à sua imagem:
A ADULAÇÃO
(…) Nesse tempo, este ilustre soberano tinha conseguido impor o seu respeito a todos. Uns posternavam-se diante dele, por respeito, por admiração, por confiança ou por desejo de paz, enquanto outros o faziam por temor. Era o maior rei do seu tempo, e o seu poder estendia-se aos quatro cantos do mundo.
Os reis dos lugares mais recônditos do mundo antigo serviam-se do seu nome quando não conseguiam fazer-se obedecer ou impor-se ao seu povo, para que as pessoas se curvassem perante eles, para governarem e elevarem-se acima dos outros. (…)
O ISOLAMENTO
O rei e Zabiba seguiram por uma longa galeria, bastante sombria, que mergulhava no coração do palácio. As velas acesas a todo o comprimento permitiam apenas reconhecer o caminho para o pavilhão real.
– Não acha, Majestade – disse Zabiba -, que esta galeria, e talvez todo o palácio, parece assustadora?- É bem possível, pois aqui, como no resto do palácio não existe qualquer janela aberta para o exterior. (…)
– Por que é que se fecha dentro de um palácio?
– Eu estou fechado, Zabiba? Os guardas que viste não estão aqui para me prender mas para me proteger, e para me darem prestígio.
– Eles fecham-no… esses guardiões. Neste palácio, não vi nada a não ser portas fechadas. Não vi nenhuma vida a manifestar-se, excepto a sua alma ambiciosa. (…) Majestade, como podemos amar a liberdade e construir um palácio com tão poucas janelas, para que a luz e o ar possam penetrar? (…)
O MEDO
– Não te precipites, Zabiba, eu vou explicar-te… se as janelas são pouco numerosas, é por razões que se prendem com a segurança do palácio. Quantas mais janelas há, mais difícil é garantir a vigilância e a protecção de um lugar.
– Mas isso torna um palácio assustador, Majestade…O pavor não é inimigo daquele que governa? (…) Repare, Majestade, as paredes deste palácio que existe apenas para si são espessas e cegas; impedem-no de ver o que se passa no exterior. Tudo foi concebido para não ver ninguém.
– Concebido para responder às exigências do poder e da segurança.(…)
– Tal como está, o vosso palácio é um viveiro de diabos… Os diabos desenvolvem-se nos palácios desertos. O seu ar é insalubre. É um lugar onde os diabos se reproduzem e onde, com eles, as conspirações se multiplicam. Ficam com ciúmes, têm vontade de ser rei. Estas paredes abafariam a vossa voz se os conjurados o agredissem. Impedi-lo-iam de fugir, ou de receber auxílio. Não poderia lutar à sua maneira. Ainda mais: os recantos do palácio escondem punhais e flechas que o ameaçam. (…)
A CONSPIRAÇÃO
– Toda a gente, incluindo cozinheiros e criados, participavam nestas intrigas, cada um consoante os seus interesses.
– Até os cozinheiros, Majestade?
– Sim, até os cozinheiros, Zabiba. Eles entendem-se para arranjar as intrigas e as conspirações homicidas. Por exemplo, um cozinheiro pode preparar um dos pratos preferidos do rei e dá-lo a uma das mulheres deste, que fingirá tê-lo preparado pessoalmente. (…) Por vezes, um segundo cozinheiro acrescenta sal às escondidas do primeiro para arruinar o prato, ou uma substância que neutraliza o efeito de um produto mágico, ou ainda uma ratazana morta e em decomposição…
– As ratazanas em decomposição são utilizadas nas intrigas reais?
– Sim, Zabiba, são. Acontece também que serpentes sejam dissimuladas em cestas de frutas. Quando o meu pai descobria uma serpente na sua cesta, o responsável pela cozinha era condenado à morte. Por vezes a serpente não era venenosa, mas como o considerava perigoso, sentia-se visado. A situação era tão grave que o meu pai (…) já não comia nem bebia em casa das suas mulheres. (…) Estas precauções visavam, claro, prevenir qualquer eventual tentativa de envenenamento ou de bruxaria. (…)
A POLÍCIA SECRETA
– Que censuras aos meus polícias para que não mereçam ser qualificados de humanos?
– Não, Majestade, Deus me livre, não censuro nada aos vossos polícias. Mas os polícias do rei podem amar?
– Os polícias – respondeu o rei espontaneamente – assemelham-se ao seu rei. Amam se o seu rei ama. (…).
– Claro que é verdade, Majestade. Mas eles não se assemelham a si…
– Em que é que não se assemelham?- Os seus métodos e os seus comportamentos, Majestade, são herdados de reinados anteriores durante os quais eles tinham liberdade para tratar o povo como lhes convinha, tendo em conta que ele seria sempre degolado, pela polícia.
– E tu, Zabiba, como é que os vês?
– Eles seguem-me permanentemente. Estou bastante farta. Já não posso respirar à vontade… (…)
O PODER
– Quando ela [a coroa] está sobre a vossa cabeça, talvez seja seu prisioneiro e ela o acorrente. (…) Se todas qualidades se reunissem em si, transformar-se-ia num deus, seria mais um deus que um rei, Majestade.(…)
– Não quero ser como um deus confinado a um templo, ao qual se apresentam oferendas. Quero (…) lamentar os mortos e condenar a traição e a indiferença…(…) Quando ele anunciou ‘condenar a traição’ [Zabiba] teve algum medo. Abriu muito os olhos e murmurou:- Os reis abominam a traição, mas cultivam-na nos corredores dos seus palácios (…). É nas alcovas dos reis, daqueles que partilham o seu poder e dos príncipes que se encontram os que traem.(…) A partir desse dia [em que um primo tentou matá-lo], o rei jurou (…) residir sempre fora dos palácios. (…)
A REPRESSÃO
– Se permite, Majestade, pedia-lhe que desse a ordem de prender todas as pessoas que, estando ao corrente da conspiração, não o informaram ou que participarem nela…
– Mas apenas uma pessoas me atacou (…)
– Não era senão a ponta da flecha envenenada, Majestade. Devemos agora procurar o arco, a aljava e as flechas que ainda não foram atiradas, quer porque a ocasião ainda não se proporcionou, quer porque o seu objectivo não era suficientemente preciso…
– Mas o assassino serviu-se de uma espada e não de uma flecha, Zabiba.
– Era uma simpLes imagem, Majestade. (…) A flecha representa uma pessoa, as outras flechas as outras pessoas e a aljava simboliza os comanditários e os organizadores deste acto criminoso… Quanto ao arco, é o símbolo da escolha do plano e dos meios necessários para atingir os objectivos. (…)
– Seria preciso prender algumas pessoas por precaução – disse Zabiba. Pois não seria razoável deixar a pessoas desesperadas a possibilidade de nos atacarem. (…)
A SUCESSÃO

Qusay Hussein (à esquerda) e Uday Hussein, os filhos de Saddam Hussein, aspirantes à sucessão. Também eles foram mortos
– Agora, Majestade, suponhamos que emerge do povo uma criança com as qualidades necessárias para se tornar rei ou príncipe. Não acha trágico, infeliz e ridículo que seja preferido para suceder a um rei o seu filho ou o seu irmão unicamente porque essas pessoas existem? Por que supomos que o filho de um rei é mais distinto do que um filho do povo e por que teria ele o direito de reinar pelo simples facto de ser filho do soberano? Porquê ele, os seus irmãos e os seus tios poderiam reinar, e apenas eles, por este simples facto e não pelas suas competências? (…)
– Mas se o soberano falecesse ou fosse morto numa guerra, quem se encarregaria dos assuntos do reino?- O grupo de príncipes poderia escolher, no seu seio, aquele que se tornaria rei, livremente e segundo regras que seriam instituídas para este efeito… Uma vez que seriam todos livres e iguais, escolheriam o melhor entre eles. (…)
OS OUTROS REGIMES
– Sei e ouço falar de príncipes e de reis que deliberam formalmente com reis estrangeiros para dar a impressão que são seus iguais. As decisões tomadas em nome deles dão igualmente a impressão de igualdade de escolhas, mas a realidade é completamente diferente… Certos monarcas assinam decisões fundamentalmente opostas aos interesses do seu povo e da sua nação. (…) Por vezes assinam também tratados autorizando exércitos estrangeiros a violar a integridade do seu país ou a anexar partes do seu reino. (…)
– Sabes que os reis que nos rodeiam aceitaram que estrangeiros se instalem no meio deles? Será que isto denigre a imagem deles?- Evidentemente, Majestade. A influência que os estrangeiros têm numa terra que não é deles, quer estejam ali pela força ou por terem sido aceites por fraqueza, exerce-se à custa dos interesses e das tradições dos filhos do país tocado. Os reis e os governos já não podem tomar decisões independentes. (…)
– No entanto, os reis que nos rodeiam afirmam que é melhor assim…
– Em que é que é melhor, Majestade?
– Eles dizem que preferem ver os estrangeiros nas suas terras e a sua capacidade de decisão reduzida, porque isso permite reprimir as oposições! (…)
A GUERRA DE 1991
Zabiba, montada no seu cavalo, dirigiu-se para a sua casa, situada a pouco mais de cinco léguas da cidade… (…) Ia bater com o calcanhar no cavalo para mudar de direcção quando viu diversos cavaleiros a taparem-lhe o caminho. (…) Dois dos atacantes desviaram a sua atenção daquele que a havia agredido, ameaçando-a com as suas próprias armas. (…)
Ela tentou defender-se como pôde. Depois de se ter debatido durante muito tempo, resignou-se por fim à sorte que a esperava. O homem comportava-se como um cão enraivecido. A violência dos seus golpes tinha deixado o corpo de Zabiba ensanguentado. Perdeu a consciência e ele violou-a. O espírito daquele cão não foi atravessando pela menor piedade. O sentido de honra era-lhe desconhecido. (…)
Apesar do rosto ensanguentado e da mordaça, ela conseguiu morder um músculo do pescoço do seu agressor, deixando-lhe uma marca bem visível. (…) A necessidade de se vingar dos seus celerados apareceu aos olhos de Zabiba mais essencial do que qualquer coisa…
– A vingança cura as feridas da alma, é prioritária. Não se resolve um problema desta natureza com um acordo. (…)
– Resisti ao violador até o meu corpo estar cheio de feridas e eu ter perdido todas as minhas forças. Fiquei inerte como um cadáver…Sim, fiquei como um cadáver. Um cadáver é desonrado pela violação? Uma pátria e a história de um povo são desonrados pela violação se o povo for exterminado e não restar ninguém capaz de pegar em armas? (…)
Se trair o seu rei é duro, trair a sua pátria, a sua história e o seu povo é ainda mais penoso para o espírito. (…) O que faz o usurpador ou todo o desesperado que está na iminência de ser apinhado, Majestade… Vão dar tudo por tudo. Vão atacar pelas costas, ao estilo dos reis de Élam. Poderão atacar o palácio de Vossa Majestade..
– Tens razão, Zabiba, vou colocar o exército e a polícia em estado de alerta, para que estejam preparados para a batalha. Devem estar em posição para resistir a um eventual cerco do palácio, até à morte ou à neutralização dos conspiradores e dos invasores. Eles perderão… (…)
A RELIGIÃO
– Acreditas num deus diferente dos nossos deuses, Zabiba?
– Sim, Majestade. Creio num só Deus. Creio num só criador e não no que Vossa Majestade ou eu criamos.(…) Peço-lhe que diga: ‘Sem Deus e sem a Sua clemência (…) estaríamos os dois mortos’. (…)
– Sim, juro por Deus, pois sem Deus e sem o povo estaríamos mortos…Zabiba reparou com prazer que o rei tinha jurado por Deus pela primeira vez… Nunca o tinha feito antes. (…)
A ASPIRAÇÃO DE GLÓRIA
– Aposto que se os reis tivessem um mínimo de flexibilidade (…) o seu trono estaria consolidado e o seu povo conduzi-los-ia aos pináculos. Vivos, transportá-los-iam em triunfo e, mortos, carregariam o seu caixão aos ombros.
– O meu povo vai levar-me em triunfo se eu fizer o que pedes? E fará o mesmo quando eu morrer?- Sim, Majestade, mas após uma vida longa. O povo leva-lo-á em triunfo, gravará o vosso nome no mais fundo do coração. (…)
A MORTE
Em plena reunião alguém foi segredar alguma coisa ao ouvido do presidente da sessão. Disse-lhe que o rei acabava de morrer, no palácio.
[Saddam Hussein foi enforcado, a 30 de Dezembro de 2006, depois de condenado por crimes contra a Humanidade por um Tribunal Especial Iraquiano que o julgou pelo assassínio de 148 xiitas na cidade de Dujail em 1982. Este massacre terá sido ordenado como represália por uma tentativa de assassínio de que foi alvo.]
Este artigo foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 10 de Abril de 2003 | This article was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on April 10, 2003