“Erdogan não é moderno nem moderado. É um oportunista”

Depois da implosão da coligação de Bülent Ecevit, a Turquia de Atatürk coloca no poder um partido de bases religiosas. O AKP, cujo líder, Recep Tayyip Erdogan, esteve impedido de se candidatar a primeiro-ministro, afirma-se “democrático e pró-ocidental”. (Ler mais | Read more…)

Recep Tayyip Erdoğan é o 12º e actual Presidente, graças a eleições directas, em 2014, sem precedentes (depois de medidas introduzidas num referendo constitucional em 2007) , em 2014. De 1994 a 1998,foi presidente da Câmara de İstambul, e de 2003 a 2014 foi o 36ª primeiro-ministro da história do país. Foi fundador do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) in 2001,e venceu três eleições gerais three em 2002, 2007 e 2011. Durante os seus mandatos foi desmantelando grande parte da herança de "pai da nação", Mustafa Kemal Atatürk, cuja foto se vê nesta imagem com a bandeira nacional. © Direitos Reservados | All Rights Reserved

Recep Tayyip Erdoğan é presidente da Turquia desde 2014, graças a eleições directas sem precedentes (depois de medidas introduzidas num referendo constitucional em 2007). Durante os seus mandatos, tem sido desmantelada grande parte da herança do “pai da nação”, Atatürk, cuja foto se vê nesta imagem

Talvez ninguém tenha resumido tão bem a importância das eleições [de 2002] na Turquia como o jornal britânico Financial Times que, em título, escreveu: “Este fim-de-semana, um membro da NATO, um candidato à União Europeia e um aliado dos Estados Unidos deverá levar antigos islamistas para o governo.”

O diário financeiro de Londres também citou uma publicação turca, para sublinhar os desafios que os próximos governantes de Ancara vão enfrentar: “Os quatro cavaleiros do Apocalipse estão a galope a caminho da Turquia.”

É uma referência à eventual guerra contra o vizinho Iraque; ao não resolvido conflito de Chipre; ao braço-de-ferro com a UE para que marque negociações de adesão; e aos esforços para salvar a economia nacional da sua pior recessão desde 1945 – a dívida externa totaliza 126 mil milhões de dólares.

O escrutínio, antecipado pela ruptura da coligação de três partidos dirigida pelo primeiro-ministro Mustafa Bülent Ecevit, deixou o mundo em estado de ansiedade. A Turquia é um dos mais sólidos componentes da Aliança Atlântica.

As suas bases foram usadas na guerra do Golfo em 1991. Continuaram a ser utilizadas para patrulhar as zonas de exclusão aérea (no Norte curdo e no Sul xiita) do Iraque, e deverão servir de rampa de lançamento para novos ataques contra Saddam Hussein [1937-2006].

A luz verde para uma possível intervenção norte-americana num país muçulmano vizinho será dada pelo próximo Governo. E o próximo Governo, indicam as sondagens, deverá ser dominado pelo pró-islamista Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP).

O AKP é liderado por Recep Tayyip Erdogan, ex-presidente da Câmara de Istambul, impedido de se candidatar à chefia do Executivo por causa de um alegado delito de opinião (a leitura de um poema que compara os minaretes das mesquitas a baionetas) cometido em 1999.

Enquanto o seu processo judicial aguardava conclusão, Erdogan fez campanha por todo o país, atraindo os desiludidos que atribuem a crise aos partidos tradicionais.

Apresentando-se como um muçulmano conservador pró-ocidental, favorável à manutenção da Turquia na NATO e às reformas impostas pelo FMI e pela UE, Erdogan conseguiu, aparentemente, transformar-se em alternativa de poder.

“O AKP está em ascensão porque as pessoas estão cansadas dos velhos partidos”, disse Murat Yetkin, editor no jornal Radikal [em tempos muito influente, deixou de ser publicado em 2016, invocando razões financeiras], em Ancara. “A transferência de votos para os islamistas não significa uma subida do Islão militante – é apenas um voto de protesto.”

Yetkin desconfia das roupagens de Erdogan: “Não é moderno nem moderado; é um oportunista.” No entanto o seu partido “pode vir a governar sozinho, se obtiver 267 ou mais lugares do total de 550 do Parlamento – neste caso, não precisaria sequer de uma coligação”, acrescentou Yetkin, numa breve entrevista, por correio electrónico.

Para o Financial Times, a melhor “zona-tampão” contra os militares, que já forçaram a queda de um governo islamista em 1997 [liderado por Necmetin Erbakan, 1926-2011], é uma aliança entre o AKP e o CHP (Partido Republicano do Povo), fundado por Atatürk, “o pai dos turcos”, e dirigido por Deniz Baykal.

O CHP estava em queda nos inquéritos de opinião até que, há dois meses, entrou nas suas fileiras o arquitecto do acordo com o FMI: Kemal Derviş, ex-ministro da Economia, que desfez a sua parceria com Ecevit.

Um governo AKP ou AKP-CHP terá que enviar, em primeiro lugar, um sinal aos mercados de que não se desviará do programa do FMI e que vai aprovar um orçamento de rigor para 2003. Não foi por acaso que o Fundo adiou a concessão da próxima “tranche” de 16 mil milhões de dólares para depois das eleições.

A resolução dos problemas económicos vai, porém, depender da tranquilidade nas fronteiras. Em 1991, na sequência das sanções impostas pela ONU a Bagdad e da guerra do Golfo, a Turquia sofreu prejuízos de muitos milhões de dólares – o Iraque, produtor de petróleo, representava 17 por cento do total das exportações turcas.

No caso de outra guerra, se ela for de longa duração, “o impacto será terrível”, avisou Çelik Kurtoğlu, presidente do Foreign Economic Relations Board, em Istambul. Se, pelo contrário, um novo regime mantiver unido o Iraque, a Turquia “poderá beneficiar, porque está mais próxima e muito mais avançada nas trocas comerciais bilaterais”.

Se o Iraque é um desafio, a UE é outro – e crucial. Disse-me Yetkin, o director do Radikal: “Muito vai depender da União Europeia. Mesmo com o AKP no Governo, continuará o processo de reformas.”

“Não haverá problemas, pelo menos no papel; mas se a Turquia cumprir os critérios [recomendados pelos Quinze] e ainda assim for excluída da UE, isso terá um impacto grave e negativo, que vai afectar o panorama político turco. Até mesmo a posição em relação a um ataque ao Iraque pode ser influenciada porque haverá uma mudança nos equilíbrios regionais.”

Na Turquia, mais de 80% da população é favorável à integração na União. Até mesmo os que compreendem a necessidade de melhorar a situação dos direitos humanos, como exige Bruxelas, se ressentem dos adiamentos na fixação de um calendário para negociar a adesão.

“A UE não deveria minimizar o que já fizemos”, aconselhou Haluk Şahin, professor na Universidade Bilgi, em Istambul. “Foi preciso muita coragem para abolir a pena de morte, quando quase todo o país reclamava a execução de [Abdullah] Öcalan [líder separatista curdo], responsável pela morte de 30 mil pessoas.”

Sahin considera também que a UE “será uma potência irrelevante” se não integrar a Turquia, país situado “nas grandes zonas estratégicas – Ásia Central e Médio Oriente”. E pergunta: “Quer a Europa competir com os EUA e a China, alargando as suas fronteiras até onde está o petróleo?” Ou prefere manter-se fechada como “um clube cristão?

 

Para já, um dos obstáculos à entrada na UE é o ainda não resolvido conflito de Chipre. Ancara ameaça anexar o Norte da ilha dividida se a parte grega entrar na União sem estar resolvido o estatuto da parte turca.

Até á cimeira europeia de Copenhaga, em Dezembro, a ONU, que é mediadora, espera uma solução. É também a esperança da Turquia (defensora de um sistema tipo Bélgica, com comunidades autónomas num mesmo Estado cipriota) que, nessa altura, quer já ouvir falar de uma data para negociar a adesão.

Alerta o Financial Times que isolar a Turquia, abalando o seu consenso pró-ocidental, pode despertar “as forças mais obscuras”. Ou como disse um embaixador ao jornal: “Sabemos o que acontece quando deixamos países à deriva.”

  • [O AKP venceu, em 2002, com uma maioria esmagadora que afastou da Grande Assembleia em Ancara todos os partidos que antes aqui tinham representação. O partido de Recep Tayyip Erdoğan conquistou dois terços dos lugares do Parlamento, tornando-se no primeiro partido turco a ganhar uma maioria absoluta, pela primeira vez em 11 anos.
  • Erdogan foi impedido de ser desde logo primeiro-ministro, sendo o cargo ocupado Abdullah Gül, que posteriormente seria eleito Presidente da República. Mais tarde, a proibição de Erdoğan chefiar o Governo seria levantada, com a ajuda do CHP. A porta abriu-se a Erdoğan através de ume eleição intercalar em Siirt.
  • Terminados os mandatos como  primeiro-ministro, Erdogan é desde 2014 o chefe de Estado, exercendo um poder autocrático – ainda mais absoluto desde uma tentativa de golpe de Estado em Julho de 2016 que levou a milhares de demissões na função e sectores privados, além da prisão e exílio de centenas e centenas de opositores.]

Este artigo, agora actualizado e com outro título, foi publicado originalmente pelo jornal PÚBLICO, em 3 de Novembro de 2002 |This article, now updated and under a different headline, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on November 3, 2002

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