Atatürk: O deus dos turcos que adoram heróis

O rosto de Atatürk está omnipresente na Turquia, embora o fundador da nação tenha deixado o mundo dos vivos em 1938. A ubiquidade expõe-se da mais singela mercearia de Esmirna ao seu imponente mausoléu em Ancara. (Ler mais | Read more…)

© Shutterstock | 360.org

 

Nas suas múltiplas representações pictóricas, de aprumado uniforme militar ou de impecável smoking, Mustafa Kemal Atatürk, “pai dos turcos” é venerado quase como um deus por um povo que adora heróis. Um exemplo é Ceyda Sonbudak, uma indefectível admirador.

Ceyda (leia-se Jeyda, porque na fonética turca do alfabeto latino, introduzido em 1928, o “c” pronuncia-se como “j” e o “ç” como “ch”), nascida numa família de diplomatas, funcionária pública de 30 anos, irrita-se com os estrangeiros que não entendem a adoração pelo seu ídolo e teimam em olhar para a Turquia como um corpo estranho à Europa.

“Nós somos europeus!”, proclama orgulhosa, “e isso só foi possível com Ataturk”.Com os seus expressivos olhos azuis – a cor do olhar de Atatürk – o rosto maquilhado como uma paleta de tintas, um casaco cor de leopardo sobre uma mini-saia castanha, Ceyda faz questão de conduzir os seus hóspedes aos lugares mais desenvolvidos da capital turca para sublinhar a identidade europeia.

Mostra-lhes gigantescos centros-comerciais, extensas auto-estradas, magníficas pontes, conglomerados industriais e até uma discoteca onde toca um saxofonista turco recém-chegado de Nova Iorque com a fama na bagagem e onde uma parede ostenta sem pudor uma figura feminina semidespida.

O frenético anseio em revelar a pujança do seu país só tem comparação com o amor platónico que Ceyda dedica a Atatürk.

“Sem ele nunca teríamos chegado aqui”, repete confessando mais adiante que não sente o menor interesse em conviver com mulheres que usam véu, porque numa sociedade muçulmana laica ela prefere inscrever-se na categoria dos sem religião.

© Hulton Archive | Getty Images

 

Suhat Gümrükcü, pintor formado na Academia de Belas Artes de Istambul, especialista em tapeçaria e caligrafia otomana (uma mistura de turco, árabe e persa) idolatra Atatürk tanto quanto Ceyda. “Ele definiu o nosso destino”, declara Suhat.

“Foi um visionário, apesar de alguns dos seus contemporâneos o terem desvalorizado e de alguns dos seus actuais críticos insistirem em diminuí-lo. Não é nenhuma divindade, mas foi um grande líder.”

Patrick Kinross, que escreveu a biografia Atatürk, The Reverse of a Nation, concorda. Mustafa Kemal, mais tarde designado Atatürk, “era diferente de outros ditadores do seu tempo [primeira metade do século XX] em dois aspectos signifcativos”, observa Kinross.

“A sua política externa não se baseava na expansão, mas na retracção de fronteiras; a sua política interna assentava na fundação de um sistema político que lhe poderia sobreviver.”

Foi, adianta Kinross, “neste espírito realista que ele regenerou o seu país, e transformou os despojos do velho Império Otomano numa homogénea nova República turca”. Para fazer o que fez, Atatürk não poderia ser um homem vulgar. “O seu corpo irradiava energia, até em repouso”, diz ainda Kinross.

“Alternadamente extrovertido e taciturno, a sua tensão interior ora se manifestava numa ríspida explosão temperamental, ora se relaxava numa expressão de charme urbano.

Vaidoso do seu aspecto físico, vestia-se fastidiosamente […] e tinha orgulho dos seus bem desenhados pés e mãos, que ele gostava de exibir aos seus convidados mais íntimos, sob o pretexto de vaguearem pela piscina que ele fizera no seu jardim.”

 

© thetimes.co.u

É como um “homem lindo”, mas também extraordinário que Ceyda vangloria Atatürk e a sua obra. O amor era correspondido. “Atatürk amava o seu país”, assegura o biógrafo Kinross.

“A sua ambição polvilhada de imaginação, movida por uma natureza dominante e uma vontade inflexível, era o poder; mas o poder de dar ao seu povo, à sua própria maneira, o que ele tinha determinado que seria o melhor para eles.”

Um inconformado, educado nos princípios da civilização ocidental que influenciaram os liberais turcos desde o século XIX, Atatürk foi refinando as ideias de outros para as adoptar como suas. “No método, era pragmático, controlando a sua impaciência natural para progredir passo a passo até ao objectivo desejado.”

Para atingir o seu obejctivo, usou por vezes meios pouco liberais, tratando implacavelmente amigos ou inimigos. Atatürk sabia qual o momento certo para persuadir, para cortejar, para ameaçar, para comandar.

Era um mestre da política. Quando morreu, uma admiradora terá afirmado: “A Turquia perdeu o seu amante e agora tem de viver com o seu marido.”

 

© imgur.com

Seria cansativo relatar todas as vitórias e derrotas de Atatürk até que ele conseguiu finalmente formar um país moderno, com um código civil suíço, um código comercial alemão e um código penal italiano.

No entanto, talvez seja interessante evocar alguns episódios da sua luta pela emancipação das mulheres para perceber a paixão de Ceyda por Mustafa Kemal.

Um dia, num congresso de professores em Ancara, as mulheres ficaram separadas dos homens. Atatürk, dirigindo-se ao presidente da associação dos professores, vociferou: “O que é que fez a esta reunião de professores? Como se atreveu? Isto é uma vergonha!”

Os que se opunham à presença das mulheres rejubilaram. Mas Atatürk prosseguiu: “Convocaram as professoras para a reunião e obrigaram-nas a sentar-se separadas dos homens? Não confiam em vós, ou não têm fé na virtude destas senhoras? Que eu nunca mais ouça falar na segregação das mulheres!”

Atatürk também reclamou mais educação para as mulheres, argumentando que elas estavam “destinadas a ser as mães de homens perfeitos”. E também se insurgiu contra o uso do véu, dizendo: “Em alguns lugares tenho visto mulheres com um pedaço de pano, uma toalha ou coisa parecida, a esconder os seus rostos e a virar as costas quando passa um homem.”

“Qual é o significado deste comportamento? Senhores, podem as mães e filhas de uma nação civilizada adoptar estes estranhos modos, esta postura bárbara? É um espectáculo que ridiculariza a nação. E deve ser remediado imediatamente.”

Não foi bem assim. Foi preciso uma década para as mulheres das cidades darem o exemplo. Mas a mudança consumou-se.

Por tudo isto e por outras reformas que Atatürk impôs, os turcos desmentem Chateaubriand, que dizia: “Pretender civilizar a Turquia não é alargar a civilização ao Oriente, é introduzir a barbárie no Ocidente.”

© hurriyetdailynews.com

 

Este artigo, com um título diferente, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 13 de Outubro de 2002 | This article, under a different headline, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on October 13, 2002

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