O Ocidente não tem promovido os seus valores, mas sim os seus interesses no Médio Oriente

Este é um artigo de opinião, publicado após os atentados de 11 de Setembro de 2011 nos Estados Unidos, quando o mundo despertou para o terrorismo da al-Qaeda e de Osama bin Laden, o milionário, fiel à implacável doutrina wahhabita, que os sauditas foram obrigados a declarar apátrida. (Ler mais | Read more…)

Um fuzileiro americano cobre com a bandeira dos EUA uma estátua de Saddam Hussein, em Abril de 2003, o ano da invasão que derrubou o presidente do Iraque
© Tamzo Haidar| AFPI | EPA

“Durante a Guerra Fria, a América tinha muitos amigos entre os seus inimigos”, escreveu Hugo Young [1938-2003], o biógrafo de Margaret Thatcher, num artigo publicado no diário britânico The Guardian.

Naquele tempo, cidadãos da Polónia, Hungria e União Soviética “absorveram a ideia de que o modo de vida americano lhes oferecia algo a que podiam aspirar [e] começaram a compreender o que a liberdade significava porque não a tinham”.

Que ninguém duvide: tal como os povos da antiga “Cortina de Ferro“, também há muitos árabes e muçulmanos que gostariam de se livrar dos seus governantes déspotas para elegerem, sem fraudes, líderes democráticos.

Mas, ao contrário dos povos da Europa de Leste, árabes e muçulmanos não têm ao seu lado um Ocidente empenhado em promover os valores da civilização que José Manuel Fernandes descreveu como a “mais humana, equilibrada, rica e progressiva que a Humanidade conheceu”.

O Ocidente tudo fez para encorajar os dissidentes soviéticos a combater o que designava como “Império do Mal”. Incentivaram-nos a desconstruir mitos, a derrubar muros e a expor hediondos crimes contra a Humanidade cometidos em nome do socialismo.

Mas será que existe esse apoio determinado em relação aos opositores laicos das ditaduras protegidas do Médio Oriente? Não, não existe!

© Eva Bee | The Guardian

O Médio Oriente tem certamente os seus [Alexandre] Soljenitsin e [Andrei] Sakharov, mas ninguém mostra vontade de os conhecer. No Ocidente, só se conhece o estereótipo do terrorista árabe dos filmes de Chuck Norris.

“Há algo de verdade nesses estereótipos, porque tem havido violência e terrorismo”, reconheceu o académico palestiniano Edward Saïd [1935-2003] numa entrevista que me deu, [em Lisboa]. “Mas é frustrante o pouco que se sabe sobre a cultura árabe, a literatura árabe, o cinema árabe, a poesia árabe, a arte árabe. Só é absorvida uma imagem extremamente politizada e redutora.” Said responsabiliza ambas as partes.

“Todos os regimes árabes são ditaduras que só se preocupam em manter-se no poder e em garantir a sobrevivência. Para eles, os Estados Unidos são importantes porque são uma superpotência. Eles querem apoio americano para os seus regimes. À parte isto, há muito pouco intercâmbio cultural. Pouquíssimos livros árabes estão traduzidos.”

Há três poetas árabes muito famosos – Nizar Qabbani, Mahmoud Darwish e Adonis – e as suas obras só estão traduzidas em francês, não em inglês. […] Nas universidades americanas há vários programas de estudos medievais, mas nem um só tem a componente do Islão árabe medieval, como o da Andaluzia. Quase nada há sobre a experiência islâmica ibérica.”

A negligência de uma parte fundamental das sociedades árabes-muçulmanas aprofunda um vazio político que vai sendo preenchido por extremistas religiosos – os únicos dispostos a sacrificar vidas (as suas e de outros) porque são os únicos que dispõem de uma rede global (terrorista) de logística.

E o mais grave é que o Ocidente tem fechado os olhos à obliteração da oposição laica no Médio Oriente, para salvaguardar os seus interesses: políticos, geoestratégicos ou económicos. Vejamos:

Tropas britânicas em Bagdad, onde entraram com forças americanas depois dos ataques de 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque
© The Baghdad Post

No Egipto – segundo maior receptor de ajuda financeira dos EUA depois de Israel -, o [anterior] Presidente Hosni Mubarak, candidato único em escrutínios pouco transparentes [até ser destituído na sequência de ume revolta popular em 2011] reprime os seus adversários políticos.

Mas americanos e europeus ignoram os abusos, porque alguns desses adversários – e não necessariamente apenas os islamistas radicais – cometem a “heresia” de criticar as humilhantes condições de paz impostas pelo Estado judaico aos árabes.

De Damasco a Tunes, milhares de pacíficos activistas muçulmanos apodrecem nas cadeias sem culpa formada ou são executados sumariamente. Mas o “nosso mundo civilizado” que respeita os direitos humanos não os considera merecedores de serem julgados.

O próprio líder líbio Muammar Kadhafi, ostracizado como “patrocinador do terrorismo”, está a ser reabilitado pelo Ocidente, que o vê como um “dique contra o integrismo islâmico” no Magreb.

O autoproclamado Presidente do Paquistão, general Pervez Musharraf, derrubou um governo democraticamente eleito mas também está a ser legitimado, porque vai alinhar com a América contra Osama bin Laden.

Uma equipa do 3º Regimento Alpino do exército italiano dá instrução num treino básico de infantaria a forças aliadas em Erbil, no Iraque
© Tracy McKithern | thedefensepost.com

A Arábia Saudita é uma monarquia absoluta, “com um poder esclerosado e um imobilismo político e social elevado à categoria de dogma”, como escreveu Jean-Michel Foulquier, antigo diplomata francês em Riad.

No seu livro, a que deu o título de Reino dos Três Silêncios, ele denuncia os americanos e europeus que, para “fazerem fortunas”, aceitam ser “mudos, cegos e surdos” perante as atrocidades que testemunham.

A doutrina “wahabita” (fruto de uma aliança entre o teólogo Muhammad Ibn ‘Abd al-Wahhab e o Rei Ibn Saud) representa a faceta mais impiedosa do Islão sunita.

Foi esta ideologia que os Taliban afegãos adoptaram. E foram os “wahabitas” sauditas – e não o Irão xiita – os primeiros exportadores do “fundamentalismo” islâmico. Com petrodólares, eles financiaram escolas corânicas e formaram pregadores radicais, da Argélia ao Djibuti.

No entanto, tem sido do interesse da América e da Europa suportar a Casa de Saud. Porque o único país do mundo que deve o seu nome à família que o fundou é o maior exportador mundial de petróleo e uma das principais bases militares dos EUA no Golfo Pérsico.

Alguma voz se ergueu quando o Rei Fahd mandava, por exemplo, enterrar vivos os homossexuais por serem “impuros aos olhos de Deus”?

Soldado francês no Mali, onde Paris tenta travar uma insurreição islamista
© almasdarnews.com

Outros vizinhos da Arábia Saudita, como o Bahrain, o Qatar ou os Emirados Árabes Unidos, são governados por príncipes que chegaram ao poder depois de derrubarem pais, irmãos ou primos.

Eliminam igualmente, na maior impunidade, qualquer oposição, incluindo minorias que apenas reclamam uma mais equitativa distribuição das riquezas petrolíferas.

O mais grave é que entre os influentes consultores desta realeza se encontram actuais ou antigos agentes dos serviços secretos britânicos. Terrível é ainda o facto de o Dubai, Riad e Islamabad serem os únicos governos que reconheceram as autoridades de Cabul.

A justificação para este reconhecimento foi compreendida pelo Ocidente: os Taliban (não obstante financiarem uma guerra civil com o tráfico de ópio) controla[va]m troços do território afegão por onde passam oleodutos até à Ásia Central.

O Iraque é outro exemplo da “hipocrisia” ocidental. Durante anos, Saddam Hussein assassinou (alguns com as suas próprias mãos) os que poderiam constituir uma alternativa ao seu reinado de terror. Chegou a liquidar dissidentes exilados em países europeus, e as imagens de milhares de civis mortos por armas químicas no Curdistão (Norte) foram ignoradas como “fotomontagens”.

Assim tinha de ser porque a CIA estava empenhada em fornecer armas e informações de satélite ao “carniceiro de Bagdad” para que ele ganhasse a primeira guerra do Golfo (1980-1988) contra o Irão.

Saddam passou de aliado a inimigo quando se quis apropriar das reservas petrolíferas do Kuwait (1990). Mas nem assim o Ocidente foi capaz de levar até ao fim a Tempestade no Deserto: não havia outro ditador capaz de impedir a desintegração do mosaico étnico e confessional que é o Iraque, e subsequentemente, a da Síria e a da Turquia (membro da NATO).

Até a França, baluarte da “liberdade, igualdade e fraternidade”, não teve escrúpulos em firmar com Saddam contratos petrolíferos, aguardando apenas o levantamento das sanções da ONU.

© The Economist

Finalmente, um dos maiores desastres da política externa ocidental foi o contragolpe no Irão que, em 1953, recolocou o Xá Mohammad Reza Pahlavi no Trono do Pavão e depôs o primeiro-ministro Mohammad Mosaddegh. Este europeísta secular que queria modernizar o país e reformar as tradições religiosas foi afastado pela CIA e pelo MI-6.

O seu pecado: ousou nacionalizar, em 1951, a Anglo-Iranian Oil Company, um gigante controlado pelos britânicos, que retinham 70% das receitas. A Pérsia era um império estratégico que valia o sacrifício de todos os “valores ocidentais”.

Os EUA ignoraram os terríveis crimes cometidos pela SAVAK, a polícia secreta do último monarca da dinastia Pahlavi, e forneceram ao seu aliado as melhores armas que o dinheiro podia comprar.

O problema é que, com o afastamento do carismático Mossadegh, os sentimentos antiamericanos exacerbaram-se num país traumatizado por muitas invasões (turcos seljúcidas, mongóis, gregos, árabes). Ficou assim aberto o caminho para que o Ayatollah Khomeini empreendesse a sua sangrenta revolução islâmica.

Pacheco Pereira tem razão quando afirma que os fanáticos que enterraram uma parte do mundo sob os escombros do World Trade Center não são pobres nem humilhados. “São gente educada, movimentando cartões de crédito.” Aliás, nunca se ouviu dizer a Bin Laden que a sua luta [era] pela causa dos palestinianos despejados em miseráveis campos de refugiados.

Inebriado com a vitória na guerra do Afeganistão, que contribuiu para a dissolução da URSS, o milionário apátrida [parecia] embriagado com uma “missão divina” de destruir a América. É dever do Ocidente travar este fanático, porque ele contribui para a demonização do Islão.

“Um muçulmano terá dificuldade em aceitar que a sua religião só legitima o autoritarismo, mesmo que, ao longo da história, ela tenha sido ponto de referência obrigatório de inúmeros partidos e regimes não-democráticos”, observou Ghassan Salamé, co-autor de Democracy Without Democrats – The Renewal of Politics in the Muslim World e historiador no Centre National de Recherche Scientifique (CNRS), de Paris.

“Ser um bom muçulmano e um bom democrata não é uma aberração.”

© Rick Loomis | Los Angeles Times

Este artigo de opinião, agora actualizado, foi originalmente publicado no jornal PÚBLICO em 21 de Setembro de 2001 | This opinion article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on September 21, 2011.

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