Morte e ressurreição em Beirute

Mil vezes morremos, mil vezes sobrevivemos, dizem os libaneses. E Beirute tem sido prova dessa resistência. Mesmo que a crise económica só tenha beneficiado os ricos e corruptos. Os pobres ficaram mais pobres. Que o diga o engenheiro de fibra óptica Khaled Bashashi, que se tornou taxista profissional. (Ler mais | Read more...)

© Zena Assi artofthemideastdotcom.wordpress.com

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Há questões no Líbano que não têm resposta. Interrogam-se os estrangeiros como é que um país onde a loucura colectiva disparou balas e morteiros a cada esquina pode ser habitado por um povo tão amigo e hospitaleiro.

A prova física da guerra que acabou em 1990 está em toda a parte, sobretudo em Beirute, a capital. Está nos edifícios bombardeados, nas estradas cortadas e esburacadas, nos tanques e checkpoints. A herança psicológica estará algures. Menos visível.

“Nós, os libaneses, morremos mil vezes e mil vezes renascemos”, exulta Mariam (só assim se identifica), dona-de-casa de profissão, classe média-alta, olhos GANT e pés DKNY, marcas registadas no corpo e compradas no estrangeiro.

De facto, dizem analistas, os libaneses, mais do que sobreviver, parece que florescem, com os seus carros desportivos que consomem litros de gasolina, a sua irresistível atracção por jóias e porte impecável. Sobretudo os da classe de Mariam, cristãos maronitas como ela, ou até muçulmanos sunitas como Ezzat Kabbara, próspero agente de navegação de Trípoli, no Norte.

“Os libaneses”, escreveram Carol Cadwalladr e Anna Sutton, em Lebanon (Traveller’s Survival Kit), têm um talento especial” para o dinheiro. “Sabem como o gastar, como o esconder e sobretudo como o fazer.”

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O Líbano é um país sem recursos naturais, embora estrategicamente importante. Aqui existem pessoas escandalosamente ricas.

A guerra criou uma “liga de milionários” dos campos de ópio do Vale de Bekaa, passando pela especulação imobiliária até ao tráfico de armas. Sobre o comércio de drogas, ninguém contesta que no auge da guerra civil o vale de Bekaa estava literalmente coberto de plantações de haxixe e ópio.

Nem valia a pena guardar segredo porque todas os partidos políticos, excluindo talvez os comunistas (de base xiita), tinham as mãos nestas lucrativas colheitas. As receitas financeiras eram imensas. Os lucros eram usados para comprar arsenais, e até políticos ao mais alto nível estavam envolvidos.

Conta-se que um incidente diplomático foi evitado in extremis quando a bagagem do antigo presidente da República Suleiman Frangieh foi revistada com demasiado zelo por uma alfândega nos Estados Unidos.

Os cerca de 35 mil soldados sírios no Líbano – eles deixam-se ver nos vários checkpoints [até 2005, quando foram forçados por uma revolta popular a uma retirada total] decorados com as fotografias do Presidente Assad – terão conduzido uma maciça campanha de limpeza em Bekaa, sob pressão dos Estados Unidos.

No entanto, garantem conhecedores da realidade libanesa, o negócio apenas passou a ser clandestino, transferido para o cume das montanhas ou camuflado entre espigas de trigo.

O preço do ópio é ainda 500 vezes superior à quantia que os agricultores recebem se cultivarem milho. Além disso, desde tempos imemoriais que se fuma haxixe em Bekaa e também na capital.

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Um exemplo é o Beirute Rock Café, um restaurante onde um empregado com o singular nome de Jihad Noon corre de mesa em mesa com o lume em brasa e o adequado aparelho para fumar – o narguilé.

No Beirute Rock Café, as suas cadeiras alinhadas numa varanda debruçada sobre o mar, os abastados de Beirute exibem o que têm de melhor. Raparigas com os rostos pesados de maquilhagem e os corpos leves de vestuário trocam olhares sedutores com rapazes carregados de ouro do pescoço aos pulsos.

Em Beirute, a minissaia convive bem com o chador negro. As mulheres não são fisicamente ameaçadas, embora tenham de recusar a atenção desmedida que lhes querem dispensar. Os homens libaneses, avisam os guias turísticos, confiam no seu charme e são persistentes.

Seja qual for a resposta, eles continuarão a oferecer-se para pagar o jantar. No Líbano, observaram Carol Cadwalladr e Anna Sutton, “todos os homens se sentem Don Juan; no entanto, muitas mulheres solteiras garantem que são virgens – alguém estará a mentir”.

A ostentação deste povo de comerciantes está, porém, camuflada sob uma crise económica. Veja-se o caso de Khaled Bashashi, engenheiro especializado em fibra óptica que concluiu o seu curso de sete anos em 1987, ainda durante a guerra. No mesmo ano emigrou para Genebra, mas só encontrou trabalho como paquete de armazém.

Em 1991, Khaled regressou à pátria, arranjou trabalho na sua área, mas o salário era apenas de 300 dólares/mês. Em 1993, decidiu tornar-se motorista de táxi.

“Não lamento a reviravolta. Agora ganho 1500 dólares/mês, não é muito, mas dá para sustentar mulher e dois filhos. Como engenheiro já estou ultrapassado. No meu tempo não havia telemóveis.”

© Zena Assi artofthemideastdotcom.wordpress.com

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Com a crise em crescendo, nas ruas de Beirute, muitos ansiavam pelo regresso do primeiro-ministro Rafic Hariri [que seria assassinado em 2004, alegadamente por ordem de Damasco, por exigir – já fora do Governo – o reconhecimento da soberania libanesa pelo país vizinho]. O supermilionário libanês-saudita injectou milhões de dólares no país logo após o fim da guerra civil, em 1990.

Hariri caiu nas más graças dos patronos sírios e foi substituído por outro sunita, Selim el-Hoss. Hariri é o pai da Solidere, a companhia privada de cem mil accionistas que abriu o maior estaleiro do mundo em Beirute.

A cidade, em particular o centro, foi reconstruída em 4,4 milhões de metros quadrados. Mas os preços elevados dos imóveis tornam-nos inacessíveis e outros nem sequer foram acabados.

O erro de Hariri foi acreditar que a paz Líbano-Síria-Israel seria conseguida em três anos. Hafez al-Assad [que morreria de ataque cardíaco no mesmo ano da retirada unilateral das tropas israelitas] trocou-lhe as voltas e os números assustam: 22 mil milhões de dólares de divida pública, ou 125% do Produto Interno Bruto [em 2000].

Em 1999, pela primeira vez na sua história, o Líbano registou um crescimento negativo. A vida em Beirute é tão cara como em Nova Iorque, queixam-se habitantes e turistas. Há dez anos, era das mais baratas cidades do mundo.

Os ricos talvez estejam mais ricos e corruptos. Os pobres continuam pobres. A classe média sente sufoco.

No entanto, do leste ao oeste da velha “linha verde” que separava os combatentes da guerra civil, Beirute continuou a encher-se de betão. E continuou fracturada em pequenos segmentos, exclusivos de cada comunidade (cristãos, muçulmanos xiitas e sunitas, drusos…), como se uma cintura de pequenas Beirute competissem entre si.

 Zena Assi e a sua série ‘Beirut’:

Websitehttp://www.zenaassi.com/

Emailza@zenaassi.com

As suas obras são vendidas aqui:

Art Sawa, Dubai; Alwane Art Gallery, Beirute.

Zena Assi, artista libanesa, nasceu em 1974. As suas obras têm sido vendidas com sucesso pelas leiloeiras Sotheby’s e Christie’s. Os seus temas são variados, mas a série dedicada a beirute é considerada um dos seus trabalhos mais extraordinários  © savatier.blog.lemonde.fr/

Zena Assi, artista libanesa, nasceu em 1974. As suas obras têm sido vendidas com sucesso pelas leiloeiras Sotheby’s e Christie’s. Os seus temas são variados, mas a série dedicada a Beirute é considerada um dos seus trabalhos mais extraordinários.
© savatier.blog.lemonde.fr/

Este artigo, agora revisto e actualizado,  foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 1 de Junho de 2000 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on June 1, 2000

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