Do comunismo ao capitalismo: a transformação de um “kibbutz”

Em 1916, os 12 fundadores de Kfar Gila’di, no norte de Israel, decidiram imitar o modo de vida dos árabes que os hostilizavam. Para sobreviver. Em 1993, a comunidade judaica espartana e utópica, elogiada como “a forma mais pura forma de socialismo”, teve de ser privatizada. Para não se extinguir. (Ler mais | Read more…)

Um pioneiro judeu prepara um campo para vegetais próximo do Kibbutz Urim, no deserto do Negev, Palestina do Mandato britânico. (São raras e de fraca qualidade as fotos de Kfar Gila’di, que hoje é hotel de luxo)
© Getty Images | businessinsider.com

Cansados do exílio e dos guetos da Europa Oriental, 12 judeus, homens e mulheres, entraram um dia na Palestina, em 1916, quando britânicos e franceses ainda partilhavam o espólio do derrotado Império Otomano.

Na Galileia, a um quilómetro de distância da fronteira do actual Líbano, ergueram um kibbutz (comunidade e cooperativa agrícola), a que chamaram Kfar Gila’di.

Assim que chegaram, os pioneiros compreenderam que só poderiam sobreviver se imitassem os vizinhos árabes. Vestiram-se como eles, aprenderam a trabalhar a terra, a irrigar o deserto, a drenar pântanos, a manejar as armas.

“O objectivo não era só imitar, mas ser melhor, para nos impormos sobre os autóctones”, conta Ayelet Shavit, neta predilecta de Shimon Zamiri, um dos primeiros kibbutzniks de Kfar Gila’di.

A maior parte dos árabes reagiu mal à chegada dos imigrantes, e muitos foram encorajados pelos sírios a hostilizar os novos habitantes.

Kfar Gila’di tornou-se numa das bases do HaShomer, antecessor do Haganah, o grupo de resistência judaica onde militaram Yitzhak Rabin e Shimon Peres – e mais tarde das actuais Forças de Defesa de Israel (IDF, sigla inglesa).

Um esconderijo de armas, mantido em segredo durante muitos anos, é hoje um museu de guerra deste kibbutz, o primeiro no Norte de Israel.

Os tempos iniciais foram difíceis. Ayelet recorda que a mãe pediu como prenda do seu Bar Mitzvah, ritual hebraico da adolescência, uma fatia de pão com margarina.

O avô, Shavit, que em 1930 desertou do Exército Russo na Letónia, lembra-se das epidemias de malária, da repressão das autoridades mandatárias britânicas e dos ataques de árabes.

Crianças judias brincam no recém-construído Kibbutz Holon, perto de Telavive, em 1 de Julho de 1946, na Palestina do Mandato Britânico
© Getty Images | businessinsider.com

Até à guerra de 1967, quando Israel ocupou os Montes Golã, a artilharia síria no cimo do planalto costumava alvejar os trabalhadores kibbutzniks nos campos de algodão. Posteriormente, seria o movimento xiita Hezbollah a lançar rockets Katyusha das aldeias fronteiriças no Sul do Líbano.

Habituadas a correr para os abrigos subterrâneos, cinco segundos depois de accionados os alarmes, as crianças de Kfar Gila’di passaram a enfrentar estas situações com normalidade.

Um estudo de uma psicóloga verificou que não havia diferenças significativas no comportamento dos miúdos de Telavive e dos que viviam no kibbutz, mas os desenhos destes assemelhavam-se mais aos das crianças de Belfast.

Depois da hostilidade árabe, Kfar Gila’di e outros kibbutzim passaram a enfrentar outro desafio: a adaptação ao sistema capitalista de uma sociedade em tempos elogiada como “a mais pura forma de comunismo”.

Paradoxalmente, muitos pensavam que, após o colapso do socialismo estatal do Bloco de Leste, as comunas socialistas em Israel prosperassem como uma alternativa ao capitalismo. Mas não foi isso o que aconteceu. As pessoas são agora mais práticas e menos ideológicas.

Principal base de desenvolvimento e defesa do Estado de Israel, os cerca de 270 kibbutzim [estatística de 1993] foram uma importante instituição: albergavam cerca de 125 mil pessoas, ou seja, 3% da população; os homens representavam um terço dos oficiais do Exército, 20% dos deputados do Knesset e 25% do Governo.

Pioneiros judeus erguem uma vedação de arame farpado à volta do novo Kibbutz Dovrat, em 31 de Outubro de 1946, na Palestina do Mandato Britânico
© Getty Images | businessinsider.com

No princípio, o kibbutz era propriedade comum. Partilhava-se tudo, até a roupa interior. O kibbutznik não possuía sequer um relógio, porque não era dono do seu tempo.

Neste tipo de comunidade não havia lugar para o gosto ou estilo pessoal. Tudo pertencia ao colectivo e o colectivo pertencia a todos. A vida organizava-se na base de “a cada um consoante as suas necessidades, de cada um conforme as suas capacidades”.

Em cada kibbutz havia uma só televisão, um só jornal, um só carro. Todos comiam na cantina. Era a comunidade que decidia se um membro podia comprar uns jeans, as crianças dormiam nos infantários e aos 10 anos deixavam a casa dos pais para viverem em “centros juvenis”.

Em Kfar Gila’di, cada kibbutznik possui agora o seu aparelho de TV, tem liberdade para comprar o jornal que preferir, as crianças ficam no jardim infantil apenas das 7h às 16h e os adolescentes só deixam de morar com os pais se quiserem. Caso as refeições na cantina não agradem, há sempre a possibilidade de comer na cozinha do apartamento.

Há membros que trabalham fora da comunidade, como o pai de Ayelet, licenciado em Bioquímica. Ele ganha mais num mês do que os seus colegas kibbutzniks num ano, mas contribui com o seu salário para o bem comum.

Todos, independentemente das suas tarefas, arrumador do refeitório ou médico, recebem um mesmo orçamento mensal, que pode oscilar consoante os lucros ou prejuízos. A diferença é que cada um pode agora comprar o que quiser, sem pedir a autorização do colectivo.

Antigamente, não era permitido a um membro deixar o kibbutz, mesmo que por um período temporário. Perdia automaticamente o seu lugar. Agora tem dois anos para experimentar outro tipo de vida e será recebido como um filho pródigo se, no final, decidir regressar.

Os kibbutzim viram-se obrigados a introduzir mudanças radicais, em parte para estancar o êxodo das gerações mais novas, que não querem ver os seus horizontes limitados. A inflação e elevadas taxas de juro obrigaram, por seu turno, a uma reformulação do sistema de produção.

Pioneiros judeus e membros do Haganah – o movimento de resistência que precedeu o exército de Israel – num posto de vigilância no Kibbutz Givat Brenner, em 3 de Novembro de 1938, na Palestina do Mandato Britânico
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Em Kfar Gila’di, a pedreira, o hotel e a fábrica de aros para óculos são geridos segundo linhas capitalistas, com conselhos de administração e consultores, muitos deles recrutados fora do kibbutz.

As exportações continuam, a ritmo acelerado, para os mercados interno e externo. A comunidade chegou a comprar acções, mas não foi um bom investimento, porque um corretor ganancioso quase conduziu à falência todos os kibbutzim existentes no país.

Incapaz de imaginar outro tipo de vida, Ayelet, 26 anos, espera um dia aplicar o seu curso de Física e Biologia nos projectos agrícolas da comunidade. Por enquanto, estuda na Universidade Hebraica de Jerusalém e vai uma vez por mês ao kibbutz, para trabalhar onde a colocarem.

Nitzan Ashoach, cinco anos mais nova, não partilha do mesmo entusiasmo. Acabou de cumprir o serviço militar obrigatório. Assim que puder, diz ela, compra um bilhete para Telavive. Está cansada de viver num lugar “onde as pessoas conhecem o [nosso namorado] antes de nós” e anseia por uma vida “normal”.

[Em 2012, o diário israelita ‘Ha’aretz’, dava conta de espaços novos e mais graciosos no ‘Kibbutz’ Kfar Gila’di, depois deste ter sido privatizado, o que permitiu aos residentes “ajustarem as suas casas a seu gosto” e não se conformarem com as “regras rígidas” do passado.

Um outro projecto foi também posto em marcha, iniciativa da Sociedade para a Preservação dos Lugares Históricos de Israel: o restauro de casas quase centenárias (à base de pedra da Galileia e materiais importados do Líbano), construídas nos primórdios da comunidade.

Uma maioria de 60% dos ‘kibbutzniks’ aprovou a decisão “mas só depois de uma discussão acesa ter exposto os dilemas que a privatização coloca aos ‘kibbutzim’”. Um exemplo: “a assembleia-geral deixou de ser tão importante quanto era; poucos são os membros que comparecem.”

Desta vez, todavia, apareceram muitos para inquirirem se, depois da reabilitação arquitectónica, as propriedades se tornaram individuais ou permaneceriam colectivas. As casas, recordou o jornal, foram erigidas em 1922, seis anos após a fundação desta comuna e serão das poucas desse tempo que restam intactas.

Muitas famílias, “como os Shohat, Giladi, Zaid, Kroll e Hurvitz, sonharam que um dia seriam donos delas. Algumas alojaram “gente famosa como o escritor Haim Nahman Bialik”. Durante o debate, houve quem argumentasse que o kibbutz já havia preservado edifícios suficientes e que as casas antigas deveriam ser vendidas a particulares.

Citado pelo ‘Ha’aretz’, Amnon Levin, responsável pela preservação do Conselho Regional da Alta Galileia, qualificou a privatização como “a maior ameaça à sobrevivência dos  ‘kibbutzim’, realçando um declínio no número de imóveis restaurados entre 1992 e 2007. No final, venceram os guardiões da memória.

Começaram já as obras para transformar as casas antigas em museu de fotografia local; a oficina de artesanato; parque de diversões para crianças…. “Há coisas que não podem ser privatizadas”, observou a residente Ilana Ashuach. “Esta é a infra-estrutura da nossa história. Se abdicarmos dela, não seremos mais o ‘Kibbutz’ Kfar Gila’di, e não nos distinguiremos de outros”.

Ler mais aqui.]

Entrada de Kfar Gila’di: principal base de desenvolvimento e defesa do Estado de Israel, os cerca de 270 kibbutzim [estatística de 1993] foram uma importante instituição: albergavam cerca de 125 mil pessoas, ou seja, 3% da população; os homens representavam um terço dos oficiais do Exército, 20% dos deputados do Knesset e 25% do Governo
© Avishai Teicher | wikimedia.org

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 3 de Outubro de 1993 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on October 3, 1993

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