Yeshayahu Leibowitz: “O fim da ocupação é a libertação de Israel”

Os discípulos chamam-lhe “profeta da esquerda” e a “consciência da nação”. Ele, que inventou o escandaloso conceito de “judeu-nazi” e defendeu a deserção ou a recusa do serviço militar na Cisjordânia e Gaza, foi sempre um provocador, abalando os mitos mais sagrados da sociedade. (Ler mais | Read more…)

Yeshayahu Leibowitz, editor da grande Enciclopédia Hebraica, defensor de uma separação entre religião e Estado
© LobeLog

Em Janeiro, foi atribuída a Yeshayahu Leibowitz a maior distinção nacional, o Prémio Israel, mas o coro de protestos foi tão audível que ele achou melhor recusar o galardão.*

É numa casa modesta, no bairro tipicamente judaico de Rehavia, em Jerusalém Ocidental, na Rua Ussishkin (nome de um dos primeiros sionistas a chegar a Israel) que Leibowitz mora.

A sua figura simples, enterrado no cadeirão de um minúsculo escritório repleto de livros até ao tecto, comoveu-nos. Definitivamente, a riqueza deste homem não é material.

Nascido em Riga, capital da Letónia, em 29 de Janeiro de 1903, Leibowitz partiu, em 1919, para Berlim, onde estudou Química, Medicina e Filosofia. Chegou à Palestina sob o Mandato Britânico, em 1939. Durante várias décadas foi professor de Ciência e Filosofia na Universidade Hebraica de Jerusalém.

Autor de numerosas obras (destaque para Judaisme, Peuple Juif et Etat d’Israel, 1985; La Foi de Maimonide, 1992; Judaism, Human Values and the Jewish State, 1948-1988), o velho professor permanece um dos maiores pensadores do Judaísmo moderno, editor da grande Enciclopédia Hebraica, defensor de uma separação entre religião e Estado. Muitos renegaram-no como ateísta por rejeitar convenções religiosas, como as de que os judeus são “o povo escolhido por Deus”.

Fui ter com ele após a assinatura dos Acordos de Oslo, e o entusiasmo com que me recebeu, apesar da fadiga visível do seu corpo curvado, era a prova de que o facto de ter renunciado, de livre vontade, ao Prémio Israel, a mais alta distinção do país, não o tinha abalado. Era um homem habituado a gerar controvérsia e nunca se arrependia das suas palavras.

Yeshayahu Leibowitz com a mulher, Greta
© hummusforthought.com

Em Julho de 1967, um mês após a Guerra dos Seis Dias em que Israel derrotou os exércitos da Jordânia, do Egipto e da Síria, Leibowitz condenou a euforia dos compatriotas com a frontalidade que lhe era característica.

Sugeriu que o sagrado Kotel, ou Muro Ocidental, fosse designado “A Discoteca da Presença Divina”, uma expressão que, assim, “poderia agradar, simultaneamente, a laicos e a religiosos”.

A ofensa maior terá sido quando Leibowitz, depois da invasão israelita do Líbano de 1982, usou a expressão “judeus-nazis” para criticar os juízes que legitimavam o uso de tortura nos interrogatórios de prisioneiros árabes.

Advertiu também para a “fascização do Estado judaico” e, apesar de nomeado para o Prémio Israel, não se conteve e comparou aos milicianos do Hamas uma unidade de elite do Exército cujos agentes se disfarçam de árabes para se infiltrarem na Cisjordânia e Gaza, onde detêm homens, mulheres e crianças.

Perante uma subsequente vaga de insultos pessoais, o grande pensador reagiu deste modo: “Não pensei que fosse causar tantos problemas. Agora, não desejo nem quero receber [o prémio]. Já fui reconhecido e a minha honra está intacta.”

Sentados num sofá quase tão velhinho como o dono da casa, cores esbatidas e tecido rasgado de acolher numerosos visitantes (muitos deles gente que aparecia sem ser convidada só para o ouvir e se inspirar) comecei então a conversa com o professor.

A sua mulher, a sorridente Greta, foi buscar refrigerantes para todos (incluindo o fotógrafo que me acompanhava, José Manuel Ribeiro) e, poucos minutos, juntar-se-ia a nós.

Alguma vez pensou que, um dia, Yitzhak Rabin e Yasser Arafat apertariam a mão, na Casa Branca ?

Bem, este foi o primeiro passo, mas um passo muito importante na direcção certa. Você vai rir-se, mas Mao Zedong disse que uma viagem de mil milhas começa sempre com um primeiro passo.

Como explica que depois de tantos anos de suspeições, e até ódio, os israelitas tivessem aceitado tão bem as negociações com a OLP, que foi um anátema para várias gerações?

O primeiro passo para a paz tinha de passar pelo reconhecimento da OLP [Organização de Libertação da Palestina].

Mas não está surpreendido por os israelitas terem aceitado tão bem todo este processo?

Fui uma das primeiras pessoas aqui, desde [a guerra de] 1967, a compreender que a única solução deste terrível conflito era o reconhecimento mútuo e a divisão deste país entre dois povos.

O Governo de Israel recusara, até agora, esta solução. O Governo de Rabin ainda não aceitou a divisão, a criação do Estado da Palestina lado a lado com o Estado de Israel.

Temos o nosso Estado e os palestinianos também o terão, mas ambas as partes vão ter de renunciar à reivindicação de um só Estado nas fronteiras de toda a Palestina histórica.

Como interpretou as mensagens de Rabin e Arafat em Washington?

Foram mensagens carregadas de promessas, mas não temos a certeza se serão cumpridas.

Numa recente entrevista, exprimiu “confiança limitada” em Rabin, que ele compreendia bem a situação, mas não tinha a coragem de um De Gaulle…

Veja, pessoalmente, eu não conheço bem Yitzhak Rabin. Não posso fazer um julgamento claro sobre a sua personalidade. Mas há duas possibilidades. Uma é a de que ele queria fazer a paz, mas a foi adiando; a segunda é a de que ele realmente sofreu uma mudança. Uma mudança radical.

Leibowitz (terceiro a contar da esquerda) com alunos em Tichon Beit Hakerem, 1947, antes da criação de Israel
© hummusforthought.com

Será que os palestinianos encontraram o De Gaulle que procuravam?

Eu não sou porta-voz dos árabes. Não tenho o conhecimento suficiente. Só posso falar pelos judeus.

Este acordo impede o desastre político, a destruição do “Estado judaico”, que o senhor previa se Israel mantivesse a ocupação dos territórios?

Agora há indicações de que Israel vá renunciar ao domínio de outro país e há uma oportunidade de paz, que durante 26 anos [até 1993] não existiu.

O Estado de Israel não duraria muito mais tempo se persistisse em manter o aparelho de dominação de outro povo.

Na verdade, este é um problema de libertação do Estado de Israel e não de libertação dos palestinianos. Libertar o Estado de Israel da tarefa maldita de dominar outro povo pela violência.

Os franceses tiveram um grande estadista, um grande patriota e um grande nacionalista: Charles De Gaulle libertou a França da Argélia. Ele não libertou a Argélia, libertou, sim, a França da Argélia.

Tal como Portugal se libertou de Angola e Moçambique. Talvez Yitzhak Rabin venha a libertar Israel da violência deste exercício de domínio violento que exerce sobre outro povo.

Será que Israel está a fazer a paz com os líderes árabes ou com o povo palestiniano?

Estamos a fazer a paz com os representantes do povo palestiniano, tal como o Governo de Israel é o representante do povo.

Há muitos radicais, judeus e palestinianos, que ameaçam este processo de paz. Quais os que mais teme?

Não receio os radicais. Eu temo os governos. O nosso governo e o potencial governo dos palestinianos.

Conhece aquela frase de São Justo, o Jacobino? “O povo só tem um inimigo perigoso: é o seu governo”. Os governos de Israel e da OLP têm de chegar a um acordo para a divisão [do território].

© The Daily Beast

Então quer dizer que não teme uma situação em que judeus lutarão contra judeus?

Por que devemos considerar uma guerra civil pior do que uma guerra entre nações? Os verdadeiros pacifistas estão contra qualquer guerra. Não há justificação para qualquer guerra.

A direita israelita exige eleições, alegando que não pode haver paz com os árabes se os judeus não estiverem em paz com eles próprios. Qual é a sua opinião?

Tolice. Temos conflitos internos muito profundos, mas são independentes da guerra ou da paz com os árabes. São assuntos que apenas dizem respeito aos judeus.

Os conflitos internos são um enorme fenómeno na História da humanidade. Pergunte a uma criança americana qual foi o acontecimento mais importante na breve história dos Estados Unidos, e a sua resposta imediata será: a guerra civil de 1861 -1865.

Uma guerra em que 600 mil americanos morreram a lutar contra americanos, mas foi esta guerra que estabeleceu a democracia e aboliu a escravatura.

A parte mais complexa deste compromisso histórico parece ser o estatuto de Jerusalém, cidade reclamada como capital por dois povos…

É prematuro delinear os pormenores de uma divisão, mas creio que, provavelmente, até Jerusalém terá de ser dividida. Provavelmente.

O governo israelita não cairá se ousar propor a divisão da cidade, que considerou “una e indivisível”?

Se o governo quer mesmo a paz entre os dois povos, a condição para a paz é a divisão de Jerusalém.

Para o senhor não é um problema?

Problema? Mas nós queremos paz entre dois povos ou queremos uma guerra permanente entre nós? Não tem sentido uma guerra para manter o nosso domínio sobre outro povo.

É difícil, depois de já termos falado com tantos israelitas, imaginar como podem eles aceitar a divisão de Jerusalém.

Ninguém imaginaria, há um ano, que o Governo de Israel reconheceria a OLP como único representante do povo palestiniano e, no entanto, assim aconteceu.

Será fácil aos israelitas viver lado a lado com um Estado palestiniano?

Claro que não! Na nossa vida privada somos obrigados a aceitar tantas coisas difíceis. A paz é possível sem amizade, sem amor. Mas sem tiros!

© cdn.classiccinemas.com.au

[* Em Abril de 2013, o Conselho Municipal de Jerusalém autorizou que a cidade tivesse uma rua com o nome de Yeshayahu Leibowitz. A proposta tinha sido apresentada há quase uma década mas, ao tomar conhecimento que o rabi Ovadia Yossef, líder espiritual do partido ultra-ortodoxo Shas, tinha sido criticado no passado pelo grande intelectual que iria ser homenageado, o presidente da Câmara, Nir Barkat, andou aos ziguezagues, ora dizendo que sim ora que não. Desta vez, a polémica favoreceu Leibowitz – há uma placa com o seu nome perto do ‘campus’ da Universidade Hebraica. (…)

(…) Após a morte de Yeshayahu Leibowitz, o Canal 8 da televisão israelita emitiu um documentário sobre a sua vida. A introdução à segunda das três partes do programa começa com uma carta que Leibowitz endereçou a outro judeu, também nascido em Riga, Isaiah Berlin (1909-1997).

Para este filósofo britânico, inimigo de nacionalismos e totalitarismos, Israel “não é um processo metafísico, uma luz entre as nações; é um Estado e não uma causa”, como disse ao seu biógrafo Michael Ignatieff.

Na carta a Berlim, escreveu Leibowitz:.

Sinto que pensas que sou uma espécie de intelectual liberal ou talvez um pacifista. De modo algum. Não sou nada disso. Eu acredito em guerras, se elas forem absolutamente necessárias. As minhas razões para estar em Israel são muito simples.

Na minha opinião, é aqui que Deus deseja que estejamos, e eu queria ser cidadão de um Estado judaico, e democrático, de preferência. E mesmo, lamentavelmente, não democrático, se a maioria assim quisesse.

O que eu não quero é viver num Estado que governa e oprime os árabes. Para mim, isto é imperialismo e é hediondo. Aceitem-se as minorias e não se permita que sejam maltratadas e desprezadas e odiadas da maneira como nós odiamos os árabes, e eles nos odeiam.

© The Times of Israel

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 18 de Setembro de 1993 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on September 18, 1993

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