O dia de assinatura de um acordo com os palestinianos, em Washington, foi vivido com emoção num kibbutz pioneiro no Norte de Israel. Há dúvidas no horizonte, mas também a certeza de que se “pode viver em paz com os vizinhos” (Ler mais | Read more…)

Festa num kibbutz (não identificado) em Julho de 1951, três anos após a criação de Israel
© Wikimedia Commons | Jacobin
No kibbutz de Kfar Gil’adi, uma pequena comunidade judaica encravada entre o Líbano e a Síria, um pioneiro idoso mas robusto aguardava [a 13 de Setembro de 1993], com o coração palpitante, a assinatura de um acordo entre israelitas e palestinianos.
É que, pela primeira vez desde 1930, quando fugiu ao Exército Russo na Letónia e entrou na “Terra Prometida”, Shimon Zamiri sente que “é possível a coexistência com os vizinhos árabes”.
“Não há alternativa à paz; temos de arriscar e não podemos voltar atrás”, sussurrou Zamiri, com a mão direita batendo no peito e um enorme sorriso a iluminar as rugas de 80 anos de vida.
Funcionário dedicado da lavandaria colectiva, este kibbutznik ainda se lembra do dia em que recebeu um certificado do Movimento Juvenil Judaico para se instalar na Palestina do Mandato Britânico.
Não podia viajar sozinho e então arranjaram-lhe uma mulher a quem ele se apresentou: “Olhe, não nos conhecemos, mas disseram-me que sou seu marido.” Partiram os dois juntos e quando chegaram à Galileia, pela Síria colonial francesa, disseram adeus e nunca mais se viram.
Zamiri foi viver para Kfar Gil’adi, o primeiro kibbutz no Norte de Israel, uma das bases do HaShomer, antecessor do grupo de resistência judaica Haganah. Foram tempos conturbados, de luta constante contra um calor sufocante, uma epidemia de malária, a hostilidade dos aldeões árabes e a repressão das autoridades britânicas.

Trabalhadoras de um kibbutz (não identificado) em Israel. Longe vão os tempos em que estas comunidades judaicas era consideradas como “exemplo de socialismo perfeito”: hoje estão transformadas em hotéis de luxo e/ou centros industriais
© Naftali Oppenheim Collection | Yad Itzhak Ben-Zvi Photo Archive
É com os braços estendidos até ao infinito que Zamiri traduz a sua alegria pela criação do Estado de Israel, em 1948. Ele tinha 37 anos, uma idade que não era propícia para combater, mas não se envergonha da tarefa de que foi incumbido – a protecção do “equipamento” do kibbutz: os burros, os cavalos e um tractor.
Depois de tantos anos de guerras e animosidades, Zamiri teve de ver para acreditar o aperto de mão entre Yitzhak Rabin e o chefe da OLP. “Se fizemos a paz com Yasser Arafat também faremos com os outros líderes árabes.”
Ayelet Shavit, a neta de 26 anos de Zamiri, interrompe: “O problema é se vamos fazer a paz com os líderes e não com o povo. O que acontecerá, por exemplo, se o presidente Hafez al-Assad morrer de um ataque cardíaco depois de assinar um acordo? Os sírios continuarão a obedecer-lhe?”
[Assad morreu em 2002 sem assinar um acordo com Israel, por não aceitar ficar sem os recursos de água do Mar da Galileia/Lago de Tiberíades, mesmo recuperando os Montes Golã. Ao homem conhecido “Esfinge de Damasco” sucedeu o seu filho Bashar, envolvido numa sangrenta guerra civil desde 2011].
Nascida e criada no kibbutz, estudante de Filosofia e Biologia em Jerusalém, casada com um militar, Ayelet está 100% ao lado de Rabin. Votante no Partido Trabalhista, ela crê ser necessário dar uma oportunidade à paz, mesmo à custa de “dolorosas concessões” territoriais. “Temos vivido sempre num ambiente hostil”, explica.
“Mantemos alguns laços de amizade com aldeões vizinhos, mas tudo se passa a nível individual. Aprendi a manejar uma arma aos 13 anos e vivo sob tensão permanente.”

Crianças aprendem carpintaria no Kibbutz Givat Brenner, Israel, por volta de 1950
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Ainda há dois meses [Julho de 1993], rockets Katyusha disparados pelo Hezbollah, a partir de aldeias xiitas no Sul do Líbano [que esteve sob ocupação israelita desde 1984 até 2000] caíram bem junto do jardim infantil onde Ayelet trabalha no intervalo do seu curso universitário.
Anteriormente, era a artilharia síria nos Golã, a Leste, que fustigava os trabalhadores nos campos de algodão. Israel conquistou aquele planalto na guerra de 1967 e anexou-o em 1981. Devolveu apenas, sob pressão dos EUA, a cidade de Quneitra, que os sírios não reconstruíram depois da guerra de Outubro (ou do Yom Kippur) de 1973.
Os kibbutzniks já se habituaram a ter um máximo de cinco segundos para correr até aos abrigos subterrâneos assim que as sirenes são accionadas. Falam disso sem complexos. “É capaz de ser mais arriscado viver em Nova Iorque ou Telavive”, diz Ayelet. “Aqui [em Kfar Gila’di] nunca fecho a porta à chave e posso sair à rua às 0h400 da madrugada sem ser molestada.”
No entanto, a entrada do kibbutz parece um posto militar, cercado por uma rede electrificada. Se a paz acontecer, não terão dificuldade em adaptar-se a uma vida “normal”?
“Oh não!”, assegura a neta de Zamiri. “Estamos ansiosos por manter relações de boa vizinhança. O volume de negócios da pedreira e da fábrica para óculos aumentou recentemente, na perspectiva de um cooperação económica com os libaneses e os sírios.”
Ao contrário dos colonos na Cisjordânia, Ayeket não tem problemas ideológicos ou religiosos. Para ela, a terra não é sagrada. “Adoro passear de bicicleta pelos riachos nos Montes Golã, mas não me importo se, para lá voltar, de uma retirada israelita, tiver de pedir um visto à Síria.”

Kibbutz Kfar Gila’di: Casa de repouso da comunidade, Março de 1946
© Zoltan Kluger | Wikimedia Commnons
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 14 de Setembro de 1993 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on September 13, 1993