A resposta a esta pergunta, feita pela revista TIME, será dada nas próximas eleições gerais em 2024. Todos culpam o chefe de Governo de Nova Deli pela incapacidade de travar a segunda vaga de COVID-19, que poderá ter causado, segundo especialistas, pelo menos um milhão de mortos. A última sondagem indica que a sua taxa de aprovação desceu de 84 para 64%, e isso significa que continua a ser o líder, nacional ou estrangeiro, mais popular do mundo. (Ler mais | Read more…)

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A pandemia de COVID-19 parece estar a abrandar na Índia, o país onde, em Abril e Maio, os hospitais recusavam pacientes por não terem suficientes ventiladores, oxigénio e camas nas unidades de cuidados intensivos, onde as pessoas morriam na estrada e em casa sem assistência, e onde os crematórios derretiam por incinerarem centenas de corpos diariamente.
O homem que muitos culpam por esta tragédia, o primeiro-ministro, Narendra Modi, “irá recuperar, no devido tempo, a popularidade que perdeu”, acredita Sanjay Kumar, apesar de “o horror e o medo continuarem a assombrar as mentes da grande maioria dos cidadãos”.
Professor no Centre for the Study of Developing Societies (CSDS), em Nova Deli, um dos principais institutos de ciências sociais e humanas da Índia, do qual foi director de 2014 até 2020, Kumar critica o Governo, que não soube reagir perante a segunda e mais mortífera vaga do vírus, mas dá o benefício da dúvida a Modi. “Ele está novamente ao leme, a tomar decisões rápidas, tentando mostrar que se preocupa com o país e o seu povo.”
“As taxas de infeção baixaram [em Junho] na maioria dos estados”, refere Kumar, numa entrevista que me deu por e-mail. “Todos os dias há mais pessoas curadas do que infectadas, o que, até certo ponto, aliviou a pressão sobre os hospitais e os profissionais de saúde. O Governo ganhou tempo para reflectir e agir com mais cautela, na eventualidade de uma terceira vaga.”
“As pessoas sentem-se menos temerosas. Já não existe o pânico dos últimos dois meses, quando as mortes eram em larga escala. As pessoas estão, lenta e gradualmente, a regressar às suas rotinas de trabalho, com todas as precauções. No entanto, os momentos trágicos permanecem no espírito de todos. Numa conversa de dez minutos com um amigo ou um familiar, 80% do tempo será gasto a falar de questões relacionadas com o coronavírus e as dificuldades causadas aos entes queridos.”

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A Índia foi atingida duramente por várias razões, explica Sanjay Kumar. “Uma delas foi o facto de a variante da segunda vaga ser mais mortífera do que a da primeira. Depois, o aumento de casos foi muito mais rápido, porque, ao contrário do que aconteceu na primeira vaga, quando todo o país ficou confinado, na segunda, o confinamento existia apenas estado a estado, distrito a distrito. Podia-se circular entre estados quase sem limitações, e não havia nenhuma restrição às viagens aéreas, ferroviárias e rodoviárias.”
“Outra razão foi o desleixo de alguns cidadãos, que encararam a segunda vaga de forma leviana”, adianta Kumar. “Houve ainda outros erros graves. O governo de Uttar Pradesh, o maior estado da Índia, decidiu realizar eleições quando a pandemia estava no pico, em vez de as adiar, o que teria sido fácil.”
“Naquele e noutros estados, a comissão eleitoral, organismo supervisor, também errou ao permitir votações em várias fases. Muitos dirigentes e militantes dos partidos não seguiram os protocolos da COVID-19 durante comícios que atraíram gigantescas multidões. Tudo isto ajudou a propagar o vírus.”
Olhando para trás, Sanjay Kumar admite que “não dá qualquer dúvida de que o Governo de Narendra Modi avaliou mal a situação”.
O primeiro-ministro e a sua equipa “convenceram-se seriamente de que a Índia estava a ser capaz de travar o coronavírus e, em vez de acelerarem os preparativos para travar uma segunda vaga, abrandaram-nos e ignoraram os avisos dos especialistas, virando o foco para outras questões”. Essa “negligência” enviou um sinal errado aos cidadãos.

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O balanço feito pela premiada escritora indiana Arundhati Roy, num artigo de opinião publicado no diário britânico The Guardian, é muito mais demolidor. Ela recorda a arrogância de Modi, quando a Europa e os Estados Unidos da América estavam no pico da segunda vaga: “Não teve uma palavra de simpatia para oferecer.”
Num discurso citado pela autora de O Deus das Pequenas Coisas, Modi gaba-se: “Previam que a Índia seria o país mais afectado em todo o mundo. Disseram que haveria um tsunami de infecções, alguns aventaram que 700-800 milhões de indianos seriam infectados, outros que dois milhões de indianos morreriam.”
“Não aconselharia a julgarem o sucesso da Índia comparando-a com qualquer outro país. O país que acolhe 18% da população mundial [1400 milhões de habitantes] salvou a humanidade de um grande desastre ao conter o corona eficazmente.”
Durante a primeira vaga, Modi foi implacável. Anunciou um confinamento com apenas quatro horas de antecedência. “Muitos trabalhadores das zonas rurais ficaram ao abandono nas cidades, sem trabalho, sem dinheiro para pagar a renda, sem alimentos nem transporte”, descreve Arundhati Roi.
“Muitos deles percorreram a pé centenas de quilómetros até às suas casas em aldeias remotas. Muitos deles morreram pelo caminho.” Foi uma medida penosa, sobretudo para os mais vulneráveis, mas Modi conseguiu conter a pandemia e daí a sua gabarolice.

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Quando chegou a segunda vaga, sem confinamento, os trabalhadores partiram nos autocarros e comboios disponíveis. “Partiram porque sabem que, embora sejam o motor da economia neste enorme país, quando há uma crise, aos olhos do governo, eles simplesmente não existem”, lamentou Arundhati Roi.
“Este êxodo resultou num tipo diferente de caos: não havia centros de quarentena para eles ficarem antes de regressarem às suas aldeias”, onde acabaria por entrar “o vírus da cidade”.
Entre 12 e 29 de Abril, quando a Índia já ultrapassava o Brasil como o segundo país do mundo mais afectado pela pandemia, 9 milhões de hindus concentraram-se na antiga cidade himalaia de Haridwar, estado de Uttarakhand, para mergulharem nas águas sagradas do rio Ganges.
No festival “Kumbh Mela”, ninguém seguiu os protocolos contra a COVID. No dia 15, quando Narendra Modi apelou a que a peregrinação fosse apenas “simbólica”, já era tarde de mais.
O número de infecções aumentava, mas não impediu Modi de avançar com eleições no estado de Bengala Ocidental – um dos últimos bastiões da oposição que o seu partido ultranacionalista Bharatiya Janata Party (BJP) estava determinado a ganhar – prolongando-as durante um mês, em vez de se realizarem num dia, como recomendaram outras forças políticas.
Modi não conquistou Bengala Ocidental e, embora a sua taxa de aprovação tenha diminuído – de 84 para 64%, segundo dados divulgados em 1 de Junho pela empresa americana Morning Consult –, a verdade é que não há nenhum líder, nacional ou estrangeiro, com a sua popularidade.

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Nos media e nas redes sociais, Modi foi condenado pela classe média e pela diáspora, que constituem grande parte da sua base de apoio. Nos corredores dos hospitais não morreram apenas pobres.
Quem tinha capacidade financeira teve de recorrer ao mercado negro para comprar, a preços exorbitantes (2000 dólares em vez de 100 por um cilindro de oxigénio, por exemplo), o que faltava no decadente e descurado sistema de saúde público. Nem nas clínicas privadas havia salvação.
A classe média (médicos, professores, empresários), um grupo de cerca de 600 milhões de pessoas, “os que conseguem gastar entre 2 e 10 dólares por dia”, segundo economistas da Universidade de Mumbai/Bombaim, foi duramente atingida pela recessão de 2020, mas continuou a acreditar nas promessas de Modi de combater a corrupção.
Inspirada pelo seu exemplo de “vendedor de chá que chegou ao topo da política”, não se importava com a sua carreira divisiva (Modi fechou os olhos a um dos piores massacres de muçulmanos no estado de Gujarat, quando era aqui ministro-chefe) ou com a sua dedicação extrema à ideologia nacionalista Hindutva.
A segunda vaga da COVID não silenciou, porém, as críticas a Modi, apesar das campanhas de relações públicas do chefe do Governo para conter os danos à sua imagem de líder invencível.

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“Como é que Modi pode ser perdoado?” (How can Modi be forgiven?) perguntava, em Maio, a revista TIME. Em 12 de Junho, à hora do fecho desta edição, a Índia contabilizava 29.422.088 infectados e 370.088 mortos. Os números oficiais poderão não corresponder à realidade.
Especialistas falam no “cenário mais provável” de 539 milhões de infectados e de 1,6 milhões de mortos. No “pior cenário”, estes números sobem para 700,7 milhões e 4,2 milhões, respectivamente. No entanto, mais de 60% dos indianos continuam a confiar no seu primeiro-ministro.
“O que torna a tarefa do BJP e de Narendra Modi tão fácil é a falta de alternativas”, declara Sanjay Kumar, especialista em eleições no país que se convencionou chamar – “erradamente”, segundo Arundhati Roy –, “a maior democracia do mundo”.
“Há líderes nos outros partidos, mas Modi tem sido tão popular a nível nacional que todos os outros dirigentes parecem extremamente impopulares quando comparados com ele.”

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“De momento, o rival mais próximo do BJP a nível nacional, o partido Congresso [Nacional Indiano, dirigido pelos herdeiros de Indira Gandhi], está muito atrás em termos de apoio de base”, indica Kumar.
“Há líderes de base no comando de partidos regionais, mas o problema é que, embora sejam populares nos seus próprios estados, essa popularidade não transcende as fronteiras locais, ao contrário do que acontece com Narendra Modi.”
Está Sanjay Kumar preocupado com o futuro num país onde a “personalidade forte” de Modi “está a destruir o sistema partidário” da Índia, como constatam alguns observadores? “O que mais me preocupa são as divisões na sociedade”, responde o autor e coordenador de vários livros de referência, tais como Changing Electoral Politics in Delhi: From Caste to Class e Measuring Voting Behaviour in India.
“A divisão política é natural porque os partidos disputam o poder, mas a grande divisão social é a maior inquietação. A divisão é entre quem apoia e não apoia Modi. Não há, praticamente, um meio termo na sociedade.”
“Na ausência de um diálogo que reforce os princípios democráticos, temo que estes, tão fortemente enraizados, venham a ser abalados. A Índia não precisa apenas de recuperar, mas de expandir este espaço, para que seja possível um debate saudável sobre as questões que preocupam os cidadãos.”

Os números – oficiais e reais
- No dia 12 de Junho, data do fecho desta edição, a Índia contabilizava, oficialmente, 29.422.088 infectados, 370.088 mortos, 28.011.730 recuperados e 1.040.270 casos activos. (Fonte) No dia 16 de Agosto, quando o artigo foi inserido neste site, o número de casos confirmados ascendia a 32.225.513, o de mortes a 431.674, tendo recuperado 31.411.924. (Fonte)
- Os números oficiais subestimam, aparentemente, a verdadeira escala deste drama humano. O “cenário mais provável”, segundo especialistas contactados pelo diário The New York Times, estima em 539 milhões o número de infectados e em 1,6 milhões o de mortos. Estes números sobem para 700,7 milhões e 4,2 milhões, respectivamente, no “pior cenário”.
- Os receios de que os números não sejam reais aumentaram depois de, em 10 de Junho, o estado de Bihar, um dos mais pobres do país, ter revisto em alta o número de mortos confirmados, de 5424 para 9429. Esta revisão em alta fez com que, em apenas 24 horas, a Índia registasse um recorde global de 6000 mortes.

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- A Organização Mundial da Saúde (OMS) admite que o número total de mortos por Covid-19 em todo o mundo será duas a três vezes maior do que tem sido comunicado. No caso da Índia, essa discrepância é, talvez, mais acentuada por “motivos técnicos, culturais e logísticos”, segundo o NYT. “Com a sobrelotação dos hospitais, muitas mortes ocorreram em casa, sobretudo nas áreas rurais, não constando da contagem oficial.” Outras razões: há poucos testes disponíveis; muitas famílias não admitem que os entes queridos morreram de Covid; e “é duvidoso” o sistema indiano de guardar os registos vitais – mesmo antes da pandemia, “quatro em cada cinco mortes na Índia não eram medicamente investigadas”.
- Em termos de vacinação, a Índia é o único país onde o Governo federal não é o comprador exclusivo e um dos poucos onde as vacinas não são gratuitas. Este processo seria sempre complexo numa nação de 1400 milhões de habitantes, mas poderia ter corrido melhor, criticam analistas, se o Governo não tivesse esperado até Janeiro para fazer as suas insuficientes encomendas. Até Maio, foram compradas cerca de 350 milhões de doses da Oxford-AstraZeneca, fabricada como Covishield pelo Serun Institute of India (SII), e da Covaxim, da firma indiana Bharat Biotech. As vacinas compradas não chegam para inocular sequer 20% da população.
- Uma análise da BBC referente a 726 distritos indianos onde há dados disponíveis revela “amplas disparidades” nas taxas de vacinação per capita – “alguns vacinaram metade da população e outros apenas 3%”.

© Amit Dave | Reuters
Estes artigos foram publicados originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Julho-Agosto de 2021 | These articles were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, July-August 2021 edition