Masih Alinejad: “Não permito que me silenciem por me acharem inconveniente”

Os seus caracóis tornaram-se um símbolo da luta contra o uso obrigatório do hijab no Irão. Ameaçada de morte e forçada ao exílio, ela vive agora em Nova Iorque. É uma das mais influentes – e controversas – activistas pelos direitos humanos. “Lidar com o perigo é muito mais fácil do que fugir. (Ler mais | Read more...) 

Masih Alinejad: “O hijab obrigatório não é apenas um pedaço de tecido. É uma questão de dignidade humana e de escolha. É o meu corpo, a minha escolha. Se uma mulher não pode decidir como usar o seu cabelo, como poderá controlar o que vai dentro da sua cabeça?”
© Jesse Dittmar | Foreign Policy

Masih Alinejad escreveu um livro extraordinário – The Wind in my Hair: My Fight for Freedom in Modern Iran –, para melhor explicar a sua revolta contra um regime que força as mulheres iranianas “a baixar a cabeça”. Ela que “sempre quis ser única” é hoje uma das mais influentes activistas pelos direitos humanos.

Presa, forçada ao exílio, ameaçada de morte, tornou-se num dos inimigos principais da teocracia. Em 2014, a sua fotografia correndo livre por uma rua de Londres ladeada de cerejeiras em flor, os seus longos caracóis sem véu, inspirou milhões a aderirem às campanhas My Stealthy Freedom e #WhiteWednesdays, contra o uso obrigatório do hijab.

Não pode retornar à aldeia de Gomikola, na província de Mazdaran, no norte, onde nasceu em 1976. Não pode rever os pais, pobres e devotos da Revolução Islâmica, coagidos a renegá-la. Não pode visitar o filho, que vive no Reino Unido porque, se sair de Nova Iorque, onde reside, Donald Trump não a deixará regressar.

Há quarenta anos “na sombra da revolução islâmica”, Masih não se deixa atemorizar: “A luta continuará até que todas nós possamos sentir o vento no nosso cabelo”. De-me esta entrevista por email:

Algumas das fotografias que vemos no seu livro dão a ideia de que o hijab já era uma obrigação na sua casa, antes de ser imposto pela revolução islâmica. Com que idade começou a usar o véu? E quando é que começou a tomar consciência de que não apenas o seu cabelo mas também o seu corpo se tinham tornado “reféns”?

Aos 7 anos [como exige uma lei de 1983], fui forçada a esconder o meu cabelo. E, a partir dessa idade, tive de ocultar também o meu corpo. O hijab foi-se tornando uma coisa normal, não o sendo. Mas não havia alternativa.

Eu já era uma jornalista de política e conformei-me com o hijab obrigatório, em prol de ideais mais elevados, como a liberdade de expressão, uma mais justa distribuição económica, maior justiça social.

Só fora do Irão me foi possível denunciar que a República Islâmica trava uma guerra contra as liberdades das mulheres e destrói os seus direitos. A revolução islâmica [de 1979] foi também uma revolução contra os direitos das mulheres.

A sua mãe, mais do que o seu pai [que pertence à milícia Basij, auxiliar dos Guardas da Revolução] defendeu-a sempre. Quando a Masih foi expulsa da escola [depois de dizer que Deus é uma criação dos seres humanos] ou quando foi presa [por integrar um grupo universitário que lia obras consideradas subversivas]. Até que ponto, os seus pais e irmãos são, também eles, reféns do regime?

Os meus pais acreditavam na República Islâmica, mas a sua fé no sistema tem sido posta à prova por uma campanha perversa lançada pelo governo contra mim. Por motivos óbvios, não podem expressar abertamente as suas dúvidas.

Há nove anos que estou impedida de regressar ao Irão. A minha família também não tem o direito de sair do país. Os meus pais são frequentemente convidados a aparecer nos media estatais para me criticarem publicamente.

Ainda este ano, a minha mãe foi filmada a participar numa manifestação contra os Estados Unidos e a minha irmã repudiou-me na televisão nacional.

O ex-presidente iraniano Mohammad Khatami (à esq.) fala ao telefone com a mãe de Masih Alinejad, depois de um encontro com jornalistas em Teerão, 13 de Julho de 2005. No exílio, ela deixou de confiar nos políticos reformistas com quem colaborava
© Hasan Sarbakhshian | AP

O que mudou, para o melhor e para o pior, sobretudo no que diz respeito aos direitos das mulheres, desde que deixou o Irão de Mahmoud Ahmadinejad em 2009? Num passado recente, a Masih colaborava com publicações e políticos reformistas. No exílio, todavia, tem sido muito crítica do Governo do presidente Hassan Rouhani, ao ponto de no Twitter usar a hastag #regime change. Porquê?

As mudanças sob a presidência de Rouhani são cosméticas para encobrir a ausência de direitos humanos. De maneira nenhuma tem havido melhorias substanciais desde que Ahmadinejad se foi embora. Pelo contrário, vemos cada vez mais autocensura nos media – quando a imprensa faz a cobertura de um escândalo de corrupção ou qualquer acto de injustiça, os jornalistas são imediatamente silenciados.

A imprensa iraniana está a reduzida a nada mais do que um grupo de animadores. Activistas como eu não podem regressar ao Irão. A expressão política permanece reduzida – só os que pertencem à elite política, os insiders, é que têm voz –  e limitada. Os que não fazem parte deste grupo de elite não têm qualquer voz. A minoria bahá’í continua a ser perseguida.

Quanto à condição da mulher, nada mudou – às mulheres ainda é negado o acesso a estádios desportivos para assistirem aos jogos, as mulheres não podem ser juízas ou viajar para o estrangeiro, sem autorização do marido, ou do pai se não forem casadas. E, é claro, as leis que impõem o hijab obrigatório continuam em vigor.

Quando eu vivia no Irão, pensava que os reformistas era a melhor alternativa a uma mudança gradual. Eu acreditava na reforma do sistema. Estava próxima da liderança reformista e tinha fé numa agenda progressista.

Fui forçada a abandonar o Irão em 2009, porque as forças de segurança me consideravam uma jornalista reformista. Mas, uma vez no exílio, percebi que os reformistas só cuidam deles próprios e dos seus próprios interesses políticos em vez de se preocuparem com todo o movimento da oposição.

Por exemplo, os reformistas não querem saber das minorias religiosas, como os judeus ou os bahá’ís. Só lhes importa os presos políticos reformistas, mas ficam em silêncio quanto ao destino de outros prisioneiros, sejam de esquerda ou monárquicos. Também ignoram a minoria curda.

Os reformistas não querem desafiar a ditadura inerente no sistema, como a ingerência religiosa no Governo. Interessa-lhes apenas ganhar poder para poderem distribuir cargos e riqueza entre os seus apoiantes.

À semelhança de muitos outros, como [a Prémio Nobel da Paz] Shirin Ebadi, cheguei à conclusão de que não é possível reformar o regime. A República Islâmica coloca o Corão acima da vontade do povo. Por outra palavras, não é possível uma democracia enquanto a classe clerical tiver a última palavra.

Esta fotografia de um encontro de Masih Alinejad com o secretário de Estado americano, em 4 de Fevereiro, levou muitos reformistas e seus apoiantes a criticá-la. Mike Pompeo é um dos artífices de uma dura política de sanções que penaliza sobretudo o povo iraniano. O chefe da diplomacia de Donald Trump agradeceu à activista “a coragem de condenar 40 anos de abusos de direitos humanos” por parte do regime em Teerão
© Robert Palladino | Twitter

Como jornalista, como avalia a oposição à teocracia? Há, de momento, alguma alternativa viável?

No Inverno de 2017 (Dezembro 2017-Janeiro 2018), vimos gigantescos protestos em mais de cem cidades [iranianas]. Embora as pessoas se queixassem da economia, a verdade é que elas sentem que, depois de 40 anos, a República Islâmica é uma experiência falhada.

Os protestos acabaram depois de mais de 20 pessoas terem sido mortas e umas 5000 detidas. Outra razão [para o seu fim] foi a falta de uma oposição unida aos clérigos. Há muita oposição, mas a sua falta de unidade impede-a de ter bem sucedida.

Há demasiada gente a querer ser chefe! Dito isto, tem havido esforços para unificar as forças da oposição. Ainda está tudo numa fase inicial, mas tem havido reuniões para formular uma série de políticas unificadas entre os grupos da oposição.

Na oposição há tantos grupos antagónicos, dos que apoiam Reza Pahlavi, o filho do último Xá, aos Mujahedin-e Khalq [MEK, odiados pela maioria dos iranianos por terem apoiado Saddam Hussein na Irão-Iraque de 1980-1988]. Como os unificar? Vê-se a si própria como futura presidente ou primeira-ministra do Irão?

Muito em breve espero lançar uma nova campanha, Every Woman is a Leader [“Todas as Mulheres são Líderes]. Eu quero dar poder às mulheres para que cada uma delas possa ascender a uma posição de liderança. Deste modo, eu serei redundante!

Em vez de me preocupar com cargos e posições futuras, a oposição precisa de se unir à volta de um conjunto de princípios e mostrar coesão e objectivo, de modo a convencer os que estão dentro do Irão. Eu já estou convencida de uma coisa – não haverá mudança política sem a participação das mulheres. 

Masih Alinejad com e sem véu, no Irão e no exílio
© Caroll Taveras | The Observer

Numa altura em que o Irão está sob a ameaça de uma nova guerra e pelo mundo impera a islamofobia, há quem questione os seus objetivos, dizendo que a Masih deveria lutar por outros direitos sociais e políticos antes de exigir o fim do hijab obrigatório. O que lhes responde?

No Irão, diziam-me para não levantar muitas ondas, quando denunciava casos de corrupção ou violações de direitos humanos, porque o Irão poderia enfrentar sanções ou porque eu poderia abalar a resistência popular ao Ocidente.

Durante as negociações sobre o programa nuclear [em 2015], avisavam-me constantemente para não escrever sobre as famílias dos que tinham sido mortos nos protestos, porque isso enfraqueceria a posição dos diplomatas iranianos.

Depois do acordo nuclear, advertiram-me para ficar quieta em relação ao hijab obrigatório, para não prejudicar oportunidades de negócios. Há sempre alguém que nos recomenda nada fazer, quando se trata de direitos humanos. Mas estou convencida de que é a aplicação de leis religiosas, antiquadas e desacreditadas, que fomenta a islamofobia.

O hijab obrigatório contraria a legislação do século XXI. O hijab obrigatório não é apenas um pedaço de tecido. É uma questão de dignidade humana e de escolha. É o meu corpo, a minha escolha. Se uma mulher não pode decidir como usar o seu cabelo, como poderá controlar o que vai dentro da sua cabeça?

As mulheres devem ter direitos iguais. Há 40 anos que nos dizem para ficarmos quietas até que as condições internacionais se acalmem e as tensões diminuam. Mas há 40 anos, desde a crise dos reféns na embaixada dos EUA em Teerão até agora, só tem havido tensões.

Não podemos continuar a adiar a reivindicação dos nossos direitos. Algumas pessoas dizem que o hijab obrigatório é uma questão menor que será resolvida assim que forem conquistados outros direitos mais importantes, políticos e sociais. Se é esse o caso, então comecemos por solucionar o problema mais pequeno.

Acontece que o hijab obrigatório faz parte do ADN da República Islâmica. É a pedra angular da teocracia. Eu sou porta-voz das mulheres vítimas de uma lei antiquada e contestada.

Antes da República Islâmica, tínhamos mais direitos do que temos agora. Não permito que me silenciem por me acharem inconveniente.

Na campanha contra o véu obrigatório que se seguiu à iniciativa My Stealthy Freedom, Masih Alinejad encoraja as mulheres iranianas a partilharem fotografias e vídeos nas redes sociais erguendo um hijab branco com a hastag #whitewednesdays
© Reuters

Como mede o impacto popular das suas campanhas My Stealthy Freedom e #WhiteWednesdays [que encorajam as mulheres a erguer um hijab branco em público, partilhando os seus vídeos nas redes sociais]? Quem são as mulheres que lhe enviam imagens de desobediência?

A minha conta no Instagram tem 1,8 milhões de seguidores, mas alguns dos meus vídeos têm cerca de 9 milhões de visualizações! Há várias maneiras de medir o êxito das minhas campanhas.

O número de ameaças de morte ou o volume de insultos que me são dirigidos são indicadores de como elas têm sido bem sucedidas. Até conseguimos que o Supremo Líder [ayatollah Ali Khamenei], muito desgostoso, se refere a elas.

O que aterroriza as autoridades é que estas mulheres, e alguns homens, pertencem a todos os estratos sociais. São ricos, pobres e de classe média. Vivem em grandes cidades, como Teerão [a capital], e em pequenas vilas e aldeias. É um movimento nacional genuíno. Não se limita às elites.

Quantos vídeos recebe por dia e como certifica a sua autenticidade?

Recebo dezenas de vídeos diariamente. Por vezes, este volume é avassalador! Quem me envia fotografias ou vídeos está consciente das consequências. Querem desafiar as autoridades e não têm medo.

Como garante a segurança das mulheres que confiam em si?

Eu faço todos os possíveis para proteger as suas identidades. Às vezes não divulgo certos vídeos por temer que sejam demasiado radicais ou perigosos para as minhas seguidoras. Mas elas zangam-se comigo e exigem a sua difusão, frisando que não são cobardes.

É minha responsabilidade ser mais cautelosa do que elas. Para mim, é fundamental impedir que lhes façam mal ou as prendam. Se são detidas, tento arranjar-lhes representantes legais – o que nem sempre é possível.

Deixo bem claro que elas são livres de dizer o que for preciso para saírem da cadeia [o regime recorre frequentemente a confissões forçadas]. Até agora, foram presas cerca de 50 mulheres. Pelo menos 30 ainda não foram libertadas.

Mulheres europeus como Ann Linde, ministra sueca dos Assuntos Europeus (à esq.), aqui numa visita oficial a Teerão, em 11 de Fevereiro, têm sido criticadas por Masih Alinejad, por “legitimarem a imposição do hijab obrigatório” ao não recusarem o véu
© aftonbladet-cdn.se

Se as mulheres iranianas que aderem às suas campanhas a deixam orgulhosa, as líderes políticas europeias e outras parecem envergonhá-la por aceitarem o hijab obrigatório quando visitam o Irão. Como espera convencê-las a mudar de atitude?

Espero embaraçar estas feministas ocidentais até elas agirem correctamente. Ainda há pouco tempo, num vídeo evocativo do primeiro aniversário do movimento #MeToo, o Supremo Líder aconselhou as mulheres ocidentais a usarem o hijab para não serem assediadas sexualmente ou violadas. Para ele, as mulheres são culpadas de serem assediadas e violadas porque não usam o hijab. Ele culpou a vítima!

É esta a mentalidade da República Islâmica, e eu espero que as feministas [estrangeiras] percebam claramente que não devem ter esperança de um diálogo sobre esta matéria.

Se o Governo português exigisse às mulheres de uma delegação iraniana que retirassem o hijab quando chegassem a Lisboa, decerto haveria protestos. Mas a República Islâmica continua a dizer às [mulheres em] delegações estrangeiras que têm de usar o hijab obrigatório, e ninguém mexe uma palha. Eu quero que as feministas e as mulheres políticas europeias defendam os seus direitos.

No dia 8 de Março de 1979, ano da revolução islâmica, mais de cem mil mulheres iranianas protestaram nas ruas contra a introdução do véu obrigatório – uma luta que dura há 40 anos
© Hengameh Golestan

A Masih descreve-se como “dupla vítima”, do Irão, que não lhe permite reencontrar os seus pais e irmãos, e dos EUA de Donald Trump, que a proíbem de visitar e receber a visita do seu único filho, a viver no Reino Unido. A sua luta vale todos estes sacrifícios?

A minha maior dor é estar separada do meu filho e da minha família, não poder regressar a casa. Mas conservo uma enorme esperança, porque o melhor está ainda para vir. Acredito num futuro melhor para o Irão, porque mais e mais pessoas, mulheres e homens, estão a defender as suas convicções e a reclamar os seus direitos.

Lembro-me frequentemente do exemplo de Rosa Parks, a ativista afro-americana que recusou ceder o seu lugar [a um passageiro branco, como exigiam leis segregacionistas] e ir para os bancos traseiros do autocarro. Isto aconteceu em 1955, mas deste protesto foram lançadas as sementes da presidência de Barack Obama.

Dá-me esperança o facto de algo tão pequeno como um lugar de autocarro, em Montgomery (Alabama), ter ajudado a transformar uma sociedade. A apatia das elites, por outro lado, causa-me desespero. Mas não tenho tempo nem posso dar-me ao luxo de me sentir desesperada.

“A minha mãe costumava dizer que a escuridão é um monstro, um demónio negro e disforme que alimenta o nosso medo. (…) ‘Abre bem os olhos o mais que puderes’, dizia-me ela quando eu era miúda.” Até que ponto este conselho, que refere no seu livro, influencia as suas decisões?

Mantém os olhos abertos sempre que algo de assustador te aparecer no caminho. O que a mãe me dizia tornou-se o lema da minha vida. Sinto pavor e terror, como outras pessoas, mas prefiro enfrentar o perigo de cabeça erguida do que fugir ou virar-lhe as costas.

Desde criança que sigo o conselho da minha mãe. Nem sempre resulta. Longe disso. Mas aprendi que lidar com o perigo e as dificuldades de cabeça erguida é muito mais fácil do que fugir.

Este artigo, aqui actualizado, na versão integral e com um título diferente, foi publicado originalmente na revista VISÃO, na edição de 10 de Janeiro de 2019 | This article, here an updated and extended version, under a different headline, was originally published in the Portuguese news magazine VISÃO, on January 10, 2019.

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