É ambiciosa a agenda de António Guterres. Eliminar em cinco anos décadas de “machismo institucional” na Organização das Nações Unidas. O primeiro passo foi nomear uma nigeriana, uma brasileira e uma sul-coreana para cargos de chefia reservados a homens. O secretário-geral ganhou o apoio de grupos feministas, mas Donald Trump ameaça as suas promessas e o seu legado. (Ler mais| Read more…)

Amina J. Mohammed, da Nigéria, é secretária-geral adjunta, 2º posto mais importante da ONU
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Jean Krasno não queria mais um homem – o nono em 71 anos – na liderança das Nações Unidas. Por isso, quando os 15 Estados membros do Conselho de Segurança escolheram António Guterres, a presidente da Campanha para Eleger uma Mulher Secretária-Geral da ONU (WomanSG) protestou, horrorizada.
“É difícil encontrar palavras que exprimam o quanto [esta decisão] é repugnante e ultrajante.”
Foi uma reacção dura. Não contra o português que, de 2005 a 2015, conseguiu estabelecer a paridade na hierarquia do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Sim contra um sistema burocrático e patriarcal em que “as mulheres nunca são valorizadas”.
“O tecto da ONU não é de vidro, é de aço”, queixou-se Susana Malcorra, ministra argentina dos Negócios Estrangeiros e uma das sete mulheres que, num total de 13 candidatos, aspiravam ao cargo que o primeiro secretário-geral, o norueguês Trygve Lie, descreveu como “o mais difícil do mundo”.
Para trás, além de Malcorra, ficaram também Irina Bokova e Kristalina Georgieva, da Bulgária; Helen Clark, da Nova Zelândia; Natalia Gherman, da Moldávia; Christiana Figueres, da Costa Rica; e Vesna Pusić, da Croácia. Nenhuma mereceu a confiança dos 13 homens e da única mulher que, em Outubro, lideravam o Conselho de Segurança, para suceder ao sul-coreano Ban Ki-moon.
“Ficámos muito desapontadas”, reafirmou Jean Krasno, professora de Ciência Política nas universidades americanas de Columbia e Yale, numa entrevista por e-mail. Mas o desapontamento rapidamente deu lugar ao contentamento.
“Reunimo-nos [antes da tomada de posse, em Janeiro] e acredito, agora, que António Guterres será um excelente secretário-geral.”
Não só porque reiterou a defesa da igualdade de género numa instituição onde “apenas 21% das mulheres ocupavam, em 2016, cargos de chefia”, mas porque as suas primeiras nomeações foram “extraordinárias”.

Maria Luiza Viotti, do Brasil, foi escolhida por António Guterres para chefe do seu gabinete
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Amina J. Mohammed, da Nigéria, secretária-geral adjunta, e Maria Luiza Viotti, do Brasil, chefe de gabinete, são dois dos “mais de 60 nomes” de uma lista de “mulheres com elevadas qualificações, talento e experiência” que a WomanSG entregou a Guterres, para o ajudar no “desafio da paridade absoluta”, revelou Jean Krasno.
Ainda que não constando da lista, foi também elogiada a recém-designada conselheira política, Kang Kyung-wha, da Coreia do Sul. “Extremamente inteligente, ela presidiu ao grupo que preparou a transição de Guterres. Como já tinha sido secretária-geral assistente, contribuirá com o conhecimento adquirido na anterior administração.”
“Estas são mulheres excelentes, não apenas pela sua enorme experiência em assuntos internacionais, mas também por dominarem muito bem o funcionamento interno da ONU”, sublinhou a líder da WomanSG, movimento da sociedade civil criado em 2015.
Guterres já anteriormente as tinha louvado: “”São o alicerce da equipa que continuarei a formar, respeitando o meu compromisso para com a igualdade de género e a diversidade geográfica.”
A nova secretária-geral adjunta, por exemplo, 55 anos, ministra do Ambiente da Nigéria, foi conselheira especial de Ban Ki-moon, tendo desempenhado um “papel crucial” nas negociações e aprovação dos (17) Objectivos do Desenvolvimento Sustentável para acabar com a pobreza extrema em 2030.
Foi também coordenadora, entre 2002 e 2005, da Task Force para a Educação e Género, do Projecto Milénio da ONU. Serviu três presidentes nigerianos, aconselhando-os sobre várias áreas, da protecção dos recursos naturais à reforma do sistema público. Foi CEO do Centro para o Desenvolvimento de Soluções Políticas, um think tank que envolve o governo, o Parlamento e o sector privado no mais populoso país de África, frequentemente agitado por tensões étnicas e religiosas.

Kang Kyung-wha, da Coreia do Sul, ocupa o cargo de conselheira política do novo secretário-geral
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Amina Mohammed integra ainda os conselhos consultivos de várias instituições internacionais, entre elas o Programa de Desenvolvimento Global, de Bill e Melinda Gates, e o Instituto de Informação Técnica e Científica da China.
Nenhuma biografia, oficial ou não, e ao contrário do que acontece com todos os outros funcionários da ONU, especifica, porém, o grau académico da mulher que vai substituir o diplomata sueco Jan Eliasson. Refere-se apenas que “estudou na Nigéria [onde ela e o pai nasceram] e no Reino Unido”, de onde é originária a mãe. Também é apresentada, sem pormenores, como professora adjunta na Universidade de Columbia, em Nova Iorque.
Sobre a brasileira Maria Luiza Viotti, a futura chefe de gabinete ou, como diz Jean Krasno, “o braço direito” de Guterres, “por falar português e ser fluente em inglês”, a informação é mais abundante. Nasceu em Belo Horizonte há 63 anos. Formou-se em 1976 no Instituto Rio Branco, academia do serviço diplomático, e licenciou-se em Economia na Universidade de Brasília.
Quando Guterres a chamou, Maria Luiza era subsecretária para a Ásia e Pacífico no Ministério das Relações Exteriores, responsável pelas relações com os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Entre 2007 e 2013, foi a representante permanente do seu país na ONU. Em Fevereiro de 2011, presidiu ao Conselho de Segurança. Já tinha anteriormente desempenhado outros cargos, designadamente, directora-geral para os Direitos Humanos e Assuntos Sociais (2004-2008) e directora-geral para as Organizações Internacionais (2006-2007).
Tal como Maria Luiza Viotti, a sul-coreana Kang Kyung-wha é uma diplomata de carreira. Além de assistente de Ban Ki-moon, foi “número dois” do Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA). Em 2o06, um outro secretário-geral, Kofi Annan, promoveu-a a alta comissária adjunta para os Direitos Humanos.
Licenciada em Ciência política pela Universidade de Yonsei, em Seul, Kang, que fará 62 anos em Junho, completou também um mestrado em comunicação social e um doutoramento em comunicação intercultural, ambos na Universidade de Massachusetts, nos EUA.
Começou por produzir programas culturais para rádio. Seria depois jornalista e editora num serviço noticioso bilingue (inglês-coreano) numa estação televisiva. Antes de entrar na ONU, foi assistente do presidente da Assembleia Nacional (Parlamento) e colaborou com organizações feministas – em 2006 ganhou o prémio “Mulher do Ano.
Kang foi ainda embaixadora para os Assuntos Multilaterais e directora para as Organizações Internacionais no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Nas Nações Unidas, foi representante permanente na missão do seu país, e presidiu à Comissão para os Estatutos da Mulher, nas sessões anuais de 2004 e 2005.
Apesar destes currículos excepcionais, a académica e activista Jean Krasno receia que a influência deste trio nomeado por Guterres seja mínima na promoção de outras mulheres a lugares cimeiros. Que Amina, Maria Luiza e Kang tenham sido escolhidas “é um passo importante na direcção certa, em termos de igualdade de género, mas é ao secretário-geral que cabe a responsabilidade de avançar ainda mais.”

Irina Bokova, da Bulgária, directora-geral da UNESCO, foi uma das sete mulheres candidatas ao lugar agora ocupado por António Guterres

Helen Clark, administradora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [cargo que ocupou até Abril de 2017] e ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, foi também candidata a secretária-geral da ONU

Vesna Pusić, ex-vice-primeira-ministra e ministra dos Negócios Estrangeiros da Croácia, foi também candidata a secretária-geral da ONU

Susana Malcorra, ministra dos Negócios Estrangeiros da Argentina. Foi ela quem disse: “O tecto da ONU não é de vidro, é de aço”
Numa década como alto comissário para os refugiados, Guterres tomou medidas concretas para reparar desigualdades. “O que eu tentei fazer no ACNUR foi acabar com uma cultura predominantemente machista e pôr em prática uma genuína paridade de género”, disse ele à plataforma digital OpenDemocracy.
Os números não o desmentem. Em todas as áreas dependentes da decisão do alto comissário, e apesar de “muita resistência interna”, os progressos foram assinaláveis: Em Dezembro de 2005, num total de 211 funcionários nos escalões mais altos, 30,8% eram mulheres e 69,2% homens. Em Dezembro de 2015, quando Guterres terminou o seu segundo mandato, num total de 255, havia 58,4% homens e 41,6% mulheres.
Como secretário-geral, o objectivo de António Guterres é ainda mais ambicioso: conseguir “uma paridade 50-50” em cinco anos. É quase uma missão impossível. As estatísticas mostram que, em 43 anos, a percentagem de mulheres no topo subiu de 0 para 21%.
Até Junho de 2016, só 34,8% dos 40.131 funcionários no Secretariado eram mulheres, segundo a WomanSG. E, embora haja 63,2% de mulheres nos escalões de base, só há 21% entre os 80 secretrários-gerais assistentes e 79 subsecretários.
Nos 71 anos de existência da ONU, apenas 28 mulheres – contra 424 homens – presidiram a uma das seis principais comissões da organização. Na presidência da Assembleia Geral estiveram já 68 homens (um deles o português Freitas do Amaral) e apenas três mulheres.
Em 1996, a ONU prometera chegar à “paridade absoluta” em cargos de decisão e administração, até 2000. Com Ban Ki-moon, a percentagem de mulheres em posições de chefia estagnou ou até diminuiu, a partir de 2012.
Guterres disse a Jean Krasno e à WomanSG que tenciona nomear mulheres “altamente qualificadas” para cargos políticos, “a nível de secretária-geral adjunta, subsecretária-geral, vice-secretária-geral, representantes especiais e enviados do secretrário-geral.” Mas a feminista paquistanesa Shazia Z. Rafia alerta para os obstáculos que ele tem pela frente.
Escreve ela num artigo publicado no site Women’s Media Center, que tem entre as fundadoras a actriz americana Jane Fonda: “Comecemos pelas leis do trabalho dos países membros da ONU, incluindo a legislação do país anfitrião, os EUA. Quando enfrentam discriminações de género, as funcionárias das Nações Unidas podem apresentar queixa e recorrer a comissões administrativas, mas não podem levar a ONU a tribunal.”
Uma segunda barreira: “Os postos mais elevados são atribuídos segundo regiões/países. A prioridade máxima da ONU é, por isso, satisfazer posições de poder regionais/nacionais.” E uma terceira: “Muitos cargos na ONU dependem dos fundos de doadores específicos que privilegiam funcionários desses países.”
Shazia Z. Rafia adverte ainda para a falta de transparência: “Quando muitos cargos são publicitados, há indivíduos já exercê-los como consultores temporários”. Também pode acontecer que “alguns governos apresentem directamente os seus candidatos e negoceiem em seu nome – e a listagem dos nomeados permanece secreta.”

Christiana Figueres, uma experiente diplomata da Costa Rica, desempenhou um papel crucial para que a conferência sobre o clima em Paris fosse bem sucedida, mas fracassou na corrida ao cargo que agora pertence a António Guterres

Natalia Snegur-Gherman, filha do primeiro Presidente da Moldávia e ex-ministra dos Negócios Estrangeiros e Integração Europeia, foi escolhida pelo seu país para ser a sucessora de Ban Ki-moon, mas sem êxito

Kristalina Georgieva, da Bulgária, foi a última e a mais séria candidata a derrotar Guterres, mas o português acabou por ser o mais votado. A antiga comissária europeu para o Orçamento e Recursos Humanos é agora directora executiva do Banco Mundial
Como é que António Guterres pode contornar estes obstáculos, quando estão em causa centenas de cargos? Recomenda Shazia Z. Rafia: “Terá de pressionar os governos a fazer nomeações assentes na igualdade de género, e ameaçar expor, publicamente, as desigualdades nas listas de cada governo. Há cargos para os quais nunca foram nomeadas mulheres – no Comando da Força de Manutenção da Paz, na Direcção do Departamento de Assuntos Políticos. Guterres tem de exigir aos governos que, se querem estes cargos, devem nomear mulheres.”
Shazia Z. Rafia deixa outro conselho: é preciso que mais mulheres sejam nomeadas para os ministérios dos Negócios Estrangeiros, incluindo embaixadoras para as missões permanentes na ONU. Mais de duas décadas depois da Conferência de Pequim de 1995 ter prometido a igualdade, “só 15% das embaixadoras nas Nações Unidas são mulheres. E entre os “capacetes azuis” só 3% são mulheres, porque governos e militares as desencorajam de se candidatarem.
Seria mais fácil defender os direitos das mulheres se uma mulher fosse secretária-geral? Jean Krasno não respondeu a esta pergunta. Mas admite que a derrota de Hillary Clinton, que queria “estilhaçar o telhado de vidro” nas presidenciais americanas, dificulte a “missão quase impossível” de António Guterres.
“Talvez só nos próximos meses se possa determinar o impacto, mas a eleição de Trump não parece bom prenúncio”, comentou a autora de The United Nations: Confronting the Challenges of a Global Society.
“Ele, que não respeita as mulheres e desvaloriza o assédio e abusos sexuais, reactivou uma ordem executiva que reduzirá ou eliminará o financiamento de organizações de planeamento familiar, proibindo o direito das mulheres ao aborto. Com isso afectará profundamente agências como a UN Women. E os efeitos serão devastadores, em termos de desenvolvimento, saúde ou direitos humanos.”
Outras agências, como a UNICEF (apoio à infância) e a FAO (Fundo para a Alimentação), poderão também ser prejudicadas. Porque a contribuição dos países membros nestes casos é voluntária, e Trump prometeu “acabar com os gastos excedentários”.
“No dia 21 de Janeiro, a Marcha das Mulheres, que mobilizou cerca de 5 milhões de pessoas [em numerosos países] foi uma resposta às ameaças de Trump”, exultou Jean Krasno. “As mulheres provaram que estão determinadas a manter viva a resistência. E a ONU, sob a liderança de Guterres, deve ser uma luz de esperança para as mulheres, na América e no resto do mundo.”

António Guterres, na sede da ONU, acompanhado de Maria Luiza Viotti (à esq.), Amina J. Mohammed e Khang Kyung-wha
O secretário-geral não comentou o protesto global das mulheres, mas fez-se ouvir quando Trump fechou as portas aos refugiados e imigrantes de sete países de maioria muçulmana (Iémen, Iraque, Irão, Líbia, Síria, Somália e Sudão), uma medida que poderá manchar o seu legado na liderança do ACNUR.
“Os países têm o direito, mesmo a obrigação, de controlar as suas fronteiras para impedir a entrada de membros de organizações terroristas, mas as medidas adoptadas não podem ter como base qualquer forma de discriminação em função da religião, origem étnica ou nacionalidade. Medidas cegas tendem a ser ineficazes.”
A nova embaixadora de Trump na ONU, Nikki Haley, deixou um aviso assim que foi confirmada pelo Congresso: “Apontaremos os nomes de todos os que não nos apoiarem.” Guterres sabe certamente o que aconteceu ao seu predecessor Boutros Boutros-Ghali. O egípcio foi o único secretário-geral da ONU (1992-1996) a quem foi negado um segundo mandato: os EUA não gostaram das suas críticas.
[No início de 2018, antes do prazo de cinco anos que António Guterres estabelecera, “as Nações Unidas atingiram, pela primeira vez em sua história, a paridade de género num alto escalão da organização, o da liderança”, anunciou o porta-voz do secretário-geral, Stephane Dujarric. “A ONU tem 23 mulheres e 21 homens em altos postos, e até o fim deste mês [de Fevereiro], ganhará mais uma mulher.” Num encontro com o seu gabinete, o ex-primeiro ministro português realçou a importância de “continuar a combater a exploração e o abuso sexuais dentro da organização, e de atingir a paridade não apenas na liderança da casa, mas a todos os níveis” – até 2028.]
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente na revista MÁXIMA, edição de Março de 2017 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese magazine MÁXIMA, March 2017 edition