Mentor espiritual do novo secretário-geral da ONU, o antigo provincial português da Ordem Franciscana exalta o “modo exemplar” como ele “equilibra as convicções pessoais e o exercício não confessional de funções”. Este é o retrato do novo “líder do mundo” contado, na primeira pessoa (a partir de uma entrevista por e-mail), por um amigo inseparável: o padre Vítor Melícias. (Ler mais | Read more..)
Brilhante e solidário

António Guterres foi designado Secretário-Geral da ONU em Outubro de 2016. Incluiu entre as suas promessas o combate ao terrorismo e ao extremismo, à xenofobia e ao populismo
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“Conheci António Guterres quando ele teria uns 18 anos e era o mais brilhante, e até hoje mais bem classificado, aluno do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. [Terminou o curso de engenharia electrotécnica, em 1971, com 19 valores.]
Sendo eu, então, aluno de Direito na Universidade Clássica de Lisboa, onde acabara de entrar, vindo de Roma, com o curso de Direito Canónico, tive conhecimento de que um grupo de jovens universitários católicos liderados por Guterres desenvolvia, por sua própria iniciativa e com a designação de CASU (Centro de Ação Social Universitária), uma interessante atividade de voluntariado social nos bairros pobres de Lisboa, particularmente no Bairro da Curraleira.
Porque também eu, padre franciscano, e jovem, me começava a envolver em atividades de voluntariado social, designadamente no mundo da emigração e dos bombeiros voluntários, manifestei gosto em conhecê-los.
O meu colega de curso Carlos Santos Ferreira, amigo de infância de Guterres, promoveu um [primeiro] encontro num café, na esquina da Avenida de Roma com a Praça de Londres, no centro de Lisboa. Compareceram, também, Adelino Amaro da Costa [um dos fundadores do CDS] e, talvez, José Tribolet [criador do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores/INESC].
Todos falaram das suas atividades e sonhos de solidariedade. Percebi que era gente da mais elevada craveira intelectual e generosidade humana e cristã. Começámos, desde logo, a reunir-nos numa salinha da Capela das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, junto ao Campo Pequeno, onde eu ia celebrar aos domingos e o António [Guterres] fizera o infantário, quando menino.
Depois da missa, falávamos dos nossos projetos sociais e de problemas do país (pobreza, emigração, guerra colonial, censura), enquadrando-os num contexto de reflexão dos documentos do Concílio Vaticano II, e na necessidade de envolvimento social e político que o mesmo Concílio recomenda aos leigos.
O grupo começou, rapidamente, a crescer, sobretudo, com outros jovens de alta qualidade intelectual e humana convidados por Guterres. Foi preciso mudar para um sítio mais adequado e que não causasse suspeitas à omnipresente e sempre desconfiada polícia política (PIDE).
A luz de um grupo
Passámos então a reunir-nos no Convento dos Franciscanos, ao Largo da Luz, em Lisboa, onde eu residia. Normalmente, reuníamo-nos às terças feiras ou ao fim de semana. Por vezes, em fim de semana prolongado em casa ou quintas de pessoas amigas. Ou, episodicamente, na casa de algum dos jovens, do grupo, o que se verificou ser pouco recomendável, dadas as suspeitas presenças de pides, que, por vezes, rondavam a porta.
Nessas reuniões, nas quais eu celebrava eucaristias domésticas, vividas por todos com grande emoção, comentava-se o Concílio, partilhavam-se ideias e opções políticas. Comia-se o que cada um trazia para petiscar. Cimentavam-se amizades e cumplicidades.
No seio deste que ficou conhecido como “Grupo da Luz” se realizaram vários casamentos, se batizaram os respetivos filhos e se deu berço a grandes projetos e instituições que ainda hoje marcam a sociedade portuguesa.
As muitas lutas

A 10 de Outubro de 1999, Guterres foi reeleito primeiro-ministro, depois de o seu PS ganhar, nas legislativas, uma maioria relativa, com 44% dos votos. Nesse ano, tinha sido convidado para suceder a Jacques Santer na presidência da Comissão Europeia. Viúvo, com dois filhos e a poucos meses das eleições, não aceitou. O cargo foi ocupado pelo italiano Romano Prodi
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A 16 de Dezembro de 2001, o PS perdeu as principais câmaras do país em eleições autárquicas e António Guterres demitiu-se do cargo de primeiro-ministro. Queria evitar que o país caísse num “pântano político”, justificou. Mais tarde, iria dar explicações de Matemática, como voluntário, em “bairros problemáticos” da Área Metropolitana de Lisboa
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O “Grupo da Luz” foi muito importante para António Guterres [que seria primeiro-ministro entre 1995 e 2002]. Na área social, destaco o seu papel na fundação da Deco [associação de defesa do consumidor], da APAV [apoio à vítima] ou do Conselho Português para os Refugiados; e a criação de um grupo específico de reflexão sobre a pobreza no país.
Na área política, Guterres participou na fundação da [associação cívica] SEDES e da ASDI [partido criado por antigos dirigentes do PPD/PSD]; fez parte da movimentação junto dos sindicatos e confederações empresariais para criar instrumentos de concertação como o Conselho Económico e Social.
Reconheci em Guterres capacidades de liderança assim que o conheci, mas, sobretudo, quando ele, pensadamente, anunciou que, para poder ser mais útil à humanidade e servir os mais pobres e excluídos, iria abandonar uma carreira de professor que prometia ser uma das mais brilhantes em Portugal, para aderir à intervenção política ativa.
Na ocasião, disse-lhe que pensasse duas vezes, pois que as duas atividades seriam compatíveis. Mas ele estava absolutamente determinado e, agora o digo, ainda bem.
Humanismo cristão

A memória de Portugal em Timor-Leste, sob a forma de uma bandeira, ficou escondida mais de 25 anos dos ocupantes indonésios. Com a independência, António Guterres, à data primeiro-ministro português, recebeu o símbolo, protegido com risco da própria vida por José “Puto” Afonso (esq.), em 2000
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António Guterres [nascido em Lisboa há 67 anos] é de uma família católica profundamente religiosa, mas de espírito aberto e muito marcada pela proverbial bondade e solidariedade das gentes da Beira. Mais concretamente, da aldeia das Donas, no concelho do Fundão, de onde são naturais e onde ele passou parte da sua meninice feliz.
Assim, em toda a sua vida familiar, académica, eclesial ou política sempre se conduziu pelos valores essenciais do humanismo cristão, com normal prática religiosa. Mas sem escravização a formalismos rituais e com enorme respeito pela diversidade de crenças e práticas religiosas.
Guterres é radicalmente ecuménico e pluralista, um homem do diálogo inter-religioso, de acordo, aliás, com o que defendíamos no “Grupo da Luz”, ao abrigo dos textos do Concílio.
Julgo que, tanto no Parlamento como no Governo de Portugal, e nas funções de alto comissário para os Refugiados, Guterres soube manter, de modo exemplar, o equilíbrio entre as convicções pessoais e o exercício não confessional de funções, como se espera de qualquer servidor público.
Uma nova missão

António Guterres, quando chefiava o ANCUR, rodeado por refugiados somalis no campo de Dagahaley, nos arredores de Dadaab, no Quénia, em 10 de Julho de 2011
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Internamente, ele destacou-se, sobretudo, na prioridade que soube dar às políticas sociais sobre as políticas financeiras. Valorizou sempre primeiro as pessoas. Das suas políticas, saliento a generalização do ensino pré-primário, o rendimento social mínimo garantido a toda a população, o complemento social para idosos pobres, os cuidados continuados de saúde e a humanização dos hospitais.
Internacionalmente, recordo o papel decisivo para a independência e ajuda a Timor-Leste, a excepcional presidência da UE [em 2000] e o Tratado de Lisboa [2007], bem como as relações Europa-África.
Também no ACNUR, a grande marca que ele deixa, em tempos de tão grave crise, é a do humanismo solidário e a ímpar capacidade de diálogo e de mobilização de boas vontades, bem como a omnipresença ao lado de quem sofre.
[Guterres foi escolhido, por unanimidade, no Conselho de Segurança da ONU para secretário-geral da organização] graças à sua notável inteligência, enorme experiência política e dos meandros internacionais, excepcional capacidade de comunicação. Reconheceu-se a honradez do seu caráter e a sua capacidade de diálogo, ponderação e partilha nas decisões.
Penso que a paz mundial, os problemas da Síria e dos refugiados, o relacionamento entre blocos e potências, incluindo, porventura, a reestruturação da ONU, são assuntos que não poderão estar ausentes das suas preocupações [como sucessor de Ban Ki-moon, a partir de 1 de Janeiro de 2017].”

António Guterres, em 9 de Abril de 2001, dia em quem se casou com Catarina Vaz Pinto, na capela de Santo Amaro, em Lisboa. A cerimónia foi celebrada pelo padre Vítor Melícias (dir.), que também abençoara o seu primeiro casamento, com Luísa Melo, em 1972
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Este artigo foi publicado originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Novembro de 2016 | This article was originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, November 2016 edition