Shimon Peres (1923-2016): O vendedor de sonhos

Morreu o último dos “pais fundadores” de Israel. Ofereceu ao país um arsenal nuclear e o mais poderoso Exército do Médio Oriente. Foi o artífice do projecto colonial nos territórios palestinianos. Os Acordos de Oslo deram-lhe um Nobel. O seu legado é uma mistura de guerra e paz. (Ler mais | Read more…)

© The New York Times

Benjamin Oron, antigo embaixador em Portugal, dizia que os israelitas tinham dois carros: um Subaru para todas as horas e um Mercedes topo de gama que só retiravam da garagem em situações excepcionais. Yitzhak Rabin era o Subaru. Shimon Peres era o Mercedes.

A realidade era menos diplomática. “Os israelitas desconfiavam de Shimon Peres, e isso explica por que é que, embora tenha desempenhado os principais cargos políticos [primeiro-ministro, chefe da diplomacia, titular da pasta da Defesa], nunca tenha vencido uma eleição nacional”, diz o jornalista Gideon Levy, seu assessor entre 1978 e 1982.

“Só depois dos 80 anos, quando chegou a presidente, cargo meramente cerimonial e uma escolha do Parlamento, é que começaram a amá-lo – um amor que ele sempre procurou”, acrescenta Levy, numa entrevista, por telefone.

Shimon Peres morreu  a 28 de Setembro, aos 93 anos. Sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) a 13 de Setembro, e não mais deixou o hospital onde tinha sido internado. É o último dos “pais fundadores” de Israel. “Todos os homens têm direito a sonhos grandes”, dizia. “Eu não escrevo história – faço história”.

Para perceber o amor intenso de Shimon por Israel é preciso remontar à shtetl de Vishneva, aldeia judaica “no coração da Rússia Branca”, actual Bielorrússia. Foi ali que nasceu Szymon Perski (nome iídiche), “quando a noite se tornou dia, a 21 de Agosto de 1923, num mundo em transição”, como relata num dos seus livros de memórias, Battling for Peace.

Shimon Peres com o mentor, David Ben-Gurion (centro) e o general Moshe Dayan (esq.), antigo chefe de Estado-Maior, em Telavive, Fevereiro de 1955
© Reuters

Em Vishneva, ocupada pelos polacos entre duas guerras mundiais, Peres sabia que os judeus eram discriminados. O pai comerciava em madeiras, cereais, açúcar e outros produtos. Impostos pesados levaram-no à falência. Em 1932, emigrou para Telavive, na Palestina do Mandato Britânico.

A mulher e os filhos de Getzel (Yitzhak) Perski juntaram-se-lhe em 1934. Por esta altura, metade dos residentes judeus de Vishneva tinham fugido para o que chamavam Eretz Yisrael (“Terra de Israel”). Os que ficaram, incluindo os avós de Shimon, foram queimados vivos, na sinagoga local, por tropas invasoras da Alemanha nazi e seus colaboracionistas.

Mudar para Telavive representou uma mudança de mundos. “Os goyim [gentios] já não eram o objecto das nossas conversas ansiosas: foram substituídos pelo ‘árabes’, que, apesar de nossos inimigos, não eram os nossos governantes”, refere Peres na autobiografia.

Foi para lutar contra os árabes, e o Mandato Britânico, que se juntou ao movimento resistência judaica Haganah. A eloquência dos seus escritos chamou a atenção de Berl Katznelson e David Ben-Gurion, líderes do Mapai, predecessor do Partido Trabalhista.

31 julho 1972: Shimon Peres com Golda Meir, que fala com Richard Nixon usando o primeiro telefone satélite israelita
© Daniel Rosenblum | Getty Images

Em 1948, quando os árabes declararam guerra ao novo Estado criado pelas Nações Unidas, Peres não estava entre os que se alistaram nas unidades de combate. Ben-Gurion enviara-o ao estrangeiro para comprar armas. Quando voltou, o mentor nomeou-o director do Ministério da Defesa.

A “desconfiança popular” terá começado aqui, apesar de terem sido as armas de Shimon Peres que permitiram a Israel formar o mais poderoso Exército do Médio Oriente e ter um arsenal nuclear “dissuasor” das ameaças árabes.

“Peres não era um sabra [natural de Israel], um soldado e aventureiro, mas um judeu do exílio que nunca enfrentou as balas”, observou Gideon Levy.

Esta é uma opinião partilhada por Colette Avital, embaixadora de Israel em Portugal entre 1998 e 1992, a primeira mulher a concorrer à presidência (contra Peres, que depois apoiaria) em 2007.

“A definição de Benjamin Oron, do Subaru e do Mercedes, é muito simpática mas não é correcta”, observou a diplomata, em entrevista por e-mail.

“A verdade é que Rabin e Peres eram muito diferentes um do outro e, durante a maior parte das suas vidas, tiveram uma relação difícil.”

“Depois do primeiro mandato como primeiro-ministro, em 1974, Rabin publicou as suas memórias e aqui pintava um retrato problemático. Dizia que Peres era ‘um intriguista compulsivo’. Isso contribuiu para alimentar a antipatia das pessoas.”

“Peres não fazia parte do establishment militar – não foi general nem pertenceu a nenhuma clique. Era considerado um outsider.”

“Toda a sua maneira de ser era europeia, demasiado elegante para o gosto dos israelitas”, notou Avital. “No início dos anos 1980, o bloco direitista Likud, de Menachem Begin, [que em 1977 retirou aos trabalhistas o monopólio do poder], conduziria uma campanha contra Peres, o derrotado.”

“Isso colou-se a ele. Essa imagem só terá começado a mudar quando integrou o governo de Ariel Sharon [para apoiar a retirada de Gaza em 2005] e, depois, quando chegou a Presidente, com os seus apelos ao consenso. Tornou-se, então, uma figura paternal.”

Shimon Peres com Anwar el-Sadat, durante a visita do Presidente egípcio a Jerusalém em Novembro de 1977: esta viagem histórica tê-lo-á transformado de “falcão” em “pomba”
© ABC News

“Durante muitos anos, houve um fosso enorme entre o modo como Israel o tratava e o resto do mundo o admirava. Há uma frase bíblica, ‘Ninguém é profeta na sua própria terra’, que é triste mas verdadeira. E isto aplica-se a Shimon Peres, ainda que tenha acabado por ser amado como tanto desejava.”

Para Avital, Peres “foi um homem de futuro, um visionário e pragmático, um optimista que acreditava na possibilidade de encontrar sempre soluções. Um homem para quem a segurança de Israel sempre ocupou um espaço privilegiado, sabendo, todavia, que é impossível ter segurança sem paz com os palestinianos – e com outros países na região.”

Gideon Levy, que trabalhou com Peres “nos anos negros da sua carreira, quando enfrentava Begin e Rabin”, descreve-o como “uma personagem complexa”. O que mais o impressionava era o autocontrolo. “Nunca conheci um ser humano que controlasse tão bem as suas emoções.”

Terá sido entre 1978 – após a visita do presidente egípcio Anwar Sadat a Jerusalém – e de 1982 – ano da invasão israelita de Beirute – que Shimon Peres se transformou “de falcão em pomba”, constatou Levy. “Até então, ele apoiava os colonatos – foi um dos fundadores do projecto colonial – mas, depois, começou a perceber que a ocupação não podia durar para sempre. Que era imoral.”

“Essa transformação foi muito influenciada pela Internacional Socialista. Eram os tempos de Mário Soares e Willy Brandt. Não nos esqueçamos que Peres se opunha a qualquer contacto com a OLP, mas foi ele quem abriu caminho aos Acordos de Oslo”, em 1993, advogando uma solução de dois Estados.

Shimon Peres, Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, quando receberam o Prémio Nobel da Paz
© Politico

Oslo permitiu que Peres, Rabin e Yasser Arafat partilhassem o Prémio Nobel da Paz 1994, mas colocou numa “situação precária” o empresário palestiniano-americano Sam Bahour, que, para viver com a mulher em Ramallah, na Cisjordânia, teve de esperar de 1993 até 2009 por um cartão de residência emitido pelo exército israelita. Até então, “só podia entrar e sair do país com vistos de turista válidos apenas por três meses.”

“Não permitirem que eu e outros regressemos numa base permanente, de modo a contribuir para uma realidade diferente no terreno, diz bem da intenção de Israel prolongar o conflito”, lamenta, por e-mail, o empreendedor que ajudou a criar a Companhia de Telecomunicações da Palestina. “Peres nada fez para mudar este sistema de controlo. Na verdade, ainda impôs mais controlos repressivos.”

“Peres será lembrado pelos palestinianos como mais um líder israelita que jamais foi julgado pelas atrocidades e crimes de guerra”, acusa Bahour. “Ele falava de paz mas nunca se desligou da ocupação militar.”

Gideon Levy, actual colunista do diário Ha’aretz, concorda com Bahour: “Peres conseguiu o Nobel mas, hoje, estamos mais longe da paz do que há 20 anos. Oslo foi uma armadilha. O objectivo nunca foi resolver o principal problema: os colonatos, que foram o maior erro da sua vida.”

“Jamais foi corajoso para assumir publicamente a sua responsabilidade, quando era ministro da Defesa. Como Presidente, preferiu não afrontar a maioria [que se opõe à retirada dos territórios ocupados]. Optou por agradar a toda a gente, para não perder o amor conquistado.”

Datas de uma longa vida

© The Globe and Mail

Não há um líder mundial que possa reclamar a longevidade política do israelita Shimon Peres: 75 anos. Ocupou todos os principais cargos do seu Estado.

1941: Secretário do movimento juvenil sionista HNoar HaOved VeHaLomed;

1947: Militante do Haganah, movimento de resistência judaica que precedeu as Forças de Defesa de Israel; não foi soldado mas encarregado de comprar as armas que permitiram ganhar a primeira guerra com o árabes, em 1948;

1953: Director-Geral do Ministério da Defesa, cargo; neste posto, planificou a guerra do Suez de 1956, desenvolveu as Indústrias Aeroespaciais e pôs em marcha o projecto da central nuclear de Dimona;

1959: Deputado pelo Mapai, futuro Partido Trabalhista, fundado por David Ben-Gurion, seu mentor;

1969: Ministro da Absorção dos Imigrantes;

1970: Ministro dos Transportes e Comunicações;

1974: Ministro da Defesa, responsável pelo início da construção de colonatos judaicos nos territórios palestinianos ocupados na guerra de 1967;

1984-1986: Primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros num governo de rotatividade e unidade nacional formado entre os trabalhistas e o bloco direitista Likud de Yitzhak Shamir;

1993: Artífice dos Acordos Oslo, que permitiram o reconhecimento mútuo de Israel e da OLP;

1994: Ganha o Prémio Nobel da Paz, com o primeiro-ministro Yitzhak Rabin e o líder palestiniano Yasser Arafat;

1995-1996: Assume a liderança do Partido Trabalhista e, interinamente, a chefia do Governo após o assassínio de Rabin; mandou matar o chefe dos bombistas do Hamas em Gaza, provocando uma vaga de atentados suicidas;  lançou uma campanha militar no Líbano, durante o qual foi cometido um massacre num edifício das Nações Unidas, em Qana, mas nem assim conseguiu vencer Benjamin Netanyahu;

2001: Ministro dos Negócios Estrangeiros num governo com o Likud de Ariel Sharon;

2005: Abandona o Partido Trabalhista para se juntar ao Kadima, formado por Sharon, que também deixou o Likud, para poder levar a cabo uma retirada unilateral, de colonos e soldados, da Faixa de Gaza;

2007-2014: Nono Presidente de Israel, eleito pelo Parlamento.

Na primeira pessoa

© The New York Times

Não há, na história do Judaísmo, qualquer desejo de dominar outro povo. O que acontece agora [ocupação dos territórios palestinianos] é um desvio.

(Jerusalem Post, 1988)

Foram precisos 25 anos para que o sionismo corrigisse o seu maior erro – a tentativa de ignorar a existência dos palestinianos nesta terra – e [os Acordos de] Oslo foram o início acertado dessa solução.

(Ma’ariv 2003)

Os optimistas e os pessimistas morrem da mesma maneira. Apenas vivem de forma diferente. Eu prefiro viver como optimista.

(Newsweek, 2005)

Fui controverso a maior parte da minha vida. Subitamente [como Presidente], tornei-me popular. Não sei quando é que eu estava errado, se no passado se no presente.

(Ha’aretz, 2007)

A maior parte dos nossos vizinhos acredita que Israel tem a capacidade de os destruir – essa é a opção nuclear. A suspeição deles é a nossa força.

(Yedioth Ahronoth, 2009)

Não haverá paz sem dois Estados. E nações sem paz estão condenadas a viver uma tragédia terrível, totalmente desnecessária.

(TIME, 2016)

© Elad Malka

Este artigo foi publicado originalmente no jornal EXPRESSO em 1 de Outubro de 2016 | This article was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on October 1, 2016

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