O massacre de quase 50 pessoas numa discoteca gay em Orlando expôs a vulnerabilidade das comunidades muçulmana e LGBTQ nos EUA. A activista Raquel Evita Saraswati explica o que é viver “na intersecção destas duas identidades”. (Ler mais | Read more...)
No dia 12 de Junho, quando ouviu as notícias sobre um tiroteio que causou 49 mortos e 53 feridos, numa discoteca gay em Orlando (Florida), Raquel Evita Saraswati, activista pelos direitos humanos, percebeu que se tratava de “alguma coisa diferente”.
Foi um massacre, o maior ataque em massa cometido por um só indivíduo nos Estados Unidos. E, rapidamente, se reacendeu o debate sobre livre acesso às armas, terrorismo e homofobia.
Omar Mateen, o atirador, era um muçulmano americano, filho de imigrantes afegãos. Não seria homem em paz com a sua religião e homossexualidade, segundo testemunhos posteriores. Sentir-se-ia discriminado. Teria um comportamento violento com colegas e a ex-mulher.
Manteve, alegadamente, encontros amorosos que desafiavam o seu machismo. Antes de descarregar sobre as vítimas uma semiautomática AR15, para a qual tinha licença de porte, ligou para o serviço de emergência 111 a jurar lealdade ao autoproclamado “estado islâmico” ou Daesh. Em 2013 e 2014, o FBI investigou-o, mas concluiu que não era suspeito.

Uma foto (sem data) de Omar Mateen, o assassino em Orlando, que ele terá partilhado na rede social MySpace
© Reuters
“O ataque foi cometido por uma pessoa da minha fé, (mas) a minha fé não é homofóbica, embora, infelizmente, haja uma homofobia crescente na minha comunidade”, diz-me, em entrevista por e-mail, Raquel Evita Saraswati, que pertence à direcção da Muslim Alliance for Sexual and Gender Diversity (MASGD, www.muslimalliance.org).
“Para alguém que segue este tipo de acontecimentos há mais de uma década, a narrativa à volta de Omar Mateen não me surpreendeu”, observou. “Há anos que venho estabelecendo uma ligação entre misoginia e ideologia extremista, notando que os que matam em nome da religião têm, quase sempre, um passado de violência contra mulheres.”
“As vidas de meninas, mulheres e pessoas LGBTQ [lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais e queer] têm menos valor na nossa sociedade do que as vidas dos que procuram oprimir-nos”, lamentou. “Depois do ataque em Orlando, autoproclamados ‘representantes’ da comunidade muçulmana apressaram-se a condená-lo, e alguns até fingiram apoio à comunidade LGBTQ.”
“São líderes de organizações que acolhem ‘estudiosos’ e pregadores para quem as pessoas LGBTQ são doentes, criminosos e merecedores da morte. Isto oferece-nos a oportunidade de os responsabilizar depois de os microfones e das câmaras se desligarem.”

Lágrimas por amigos e familiares vítimas do massacre na Discoteca Pulse, em Orlando
© Steve Nesius | Reuters
Além desta responsabilização, Raquel Evita defende, também, que se lute contra “a ignorância” dos que consideram mutuamente exclusivas as identidades muçulmana e LGBTQ. “Não são”, frisou. “Muitos de nós vivemos nesta intersecção de identidades complicada e profundamente dolorosa.”
“É preciso, ainda, salientar que algumas das vozes conservadoras que têm usado esta oportunidade para acusar de homofobia os muçulmanos e o Islão apoiam, elas próprias, medidas para restringir os direitos das pessoas LGBTQ.”
“A palavra ‘homossexual’ não aparece no Corão”, reconheceu Raquel Evita. “Na verdade, diz-se que a história corânica [e bíblica] de Lot [o ‘castigo divino’ da destruição de Sodoma e Gomorra], invocada para condenar as pessoas LGBTQ, não é sobre a atracção pelo mesmo sexo, mas sobre a maldição de um povo por ter recorrido à violência – incluindo a violência sexual – e outras formas de crueldade!”
“É um facto que existem interpretações do Corão baseadas no que acreditamos ser a natureza de Deus, misericordiosa e compassiva. E estas interpretações têm uma base teológica. Não são uma franja, e recuso que sejam consideradas ‘não-islâmicas’. No entanto, têm sido marginalizadas.”
“Isto acontece na nossa comunidade, com intenções malignas e políticas. É feito por governos que continuam a fazer negócios com os regimes que assassinam pessoas como eu!”
“Por que é que a Arábia Saudita [um dos 10 Estados islâmicos onde a lei prevê a pena capital para os homossexuais] condenou o ataque em Orlando? Porque os gays foram mortos a tiro e não decapitados? Porque se tratava de um clube privado e não da praça de uma cidade?”
O ataque de Omar Mateen permite que as comunidades muçulmana e de muçulmanos LGBTQ “se reposicionem, doravante, como parte interessada no debate social e político”, considerou a activista envolvida em causas como a luta contra os “crimes de honra” e a mutilação genital feminina.
Nos dias seguintes a Orlando, Raquel Evita Saraswati foi assediada na rua. “Primeiro, um não muçulmano empurrou-me e chamou-me ‘terrorista estúpida’; depois, um muçulmano acusou-me, aos gritos, de ser apóstata.”
“Embora sejam extremos, estes exemplos mostram bem o que é ser uma muçulmana que usa hijab e defende direitos humanos universais. Porque existo na intersecção da mulher muçulmana e da experiência LGBTQ, os últimos dias têm sido muito duros e penosos. Mas não sacrifico o que sou pela promessa de uma vida mais fácil. Escolhi viver no amor e lutar por uma libertação total.”
Este artigo, com um título diferente, foi publicado originalmente no jornal EXPRESSO em 25 de Junho de 2006 | This article under a different headline was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on June 25, 2016
Pingback: “Those who commit acts of violence in the name of religion often also have a history of abuse of women” – my interview with Margarida Santos-Lopes for Expresso (Portugal) now in English – Raquel Evita Saraswati
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