Entrevistas com Hatton al-Fassi, a activista que abriu caminho às eleições municipais; Rasha Hefzi, uma das candidatas vencedoras, em Jidá; e Reem Asaad, que não escondeu a alegria de votar pela primeira vez. (Ler mais | Read more…)

Hatton al-Fassi, coordenadora geral da Iniciativa Baladi: Entre os próximos desafios das sauditas, diz, estão o fim da proibição de conduzir, a abolição do sistema do guardião masculino e a revisão docódigo de família
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Há pelo menos uma década que a historiadora, académica e escritora Hatoon al-Fassi esperava um dia assim. Ver as mulheres concorrerem e votarem em eleições. O resultado superou as expectativas: 21 eleitas para conselhos municipais, com a “bênção” do rei Salman e a ira dos líderes religiosos.
“Eu e o meu marido celebrámos, no domingo, ao pequeno-almoço, os esforços dos últimos anos, sobretudo o início, em 2004, quando eu tentava, incansavelmente, convencer o Estado e a sociedade a respeitar os nossos direitos”, conta-me Hatoon al-Fassi, numa entrevista por e-mail.
“Nessa altura, coloquei em risco a gravidez do meu primeiro filho. Tive de ser hospitalizada devido ao stress intenso. Estou, agora, naturalmente, muito entusiasmada.”
Se há alguém que pode reivindicar crédito pelo escrutínio do dia 12 de Dezembro é esta professora universitária em Riade (a capital e uma das cidades mais conservadoras), Em 2014, herdou de Fowziyah al Hani (ou Fawzia al-Hani) a liderança da Iniciativa Baladi, que formou e apoiou muitas candidatas no que muitos definiram como “processo histórico”.
Para estas eleições, aprovadas pelo defunto monarca Abdullah Abdulaziz e que mereceram luz verde do seu sucessor, registaram-se como votantes, 1.486.477 de homens e 124.544 mulheres. O número de candidatos totalizou 5938 e o de candidatas 979, todos competindo por 2106 lugares em todo o país.
Entre as mulheres, desistiram 450. Tinham apenas 12 dias para fazer campanha e enfrentaram vários obstáculos para concorrer. Mais de 100 foram eliminadas por decisão das autoridades que invocaram razões diversas.
Nem homens nem mulheres podiam usas as suas fotos em cartazes. As mulheres só podiam dirigir-se aos homens através de um “representante” masculino; qualquer contacto directo era punido com multas pesadas.
Hatoon al-Fassi explica por que ficou surpreendida – com o número de eleitos e a afluência (a das mulheres superou, em algumas regiões, os 80%, contra 50% dos homens). “Esperava o mínimo porque o ministério responsável fez o mínimo dos esforços e, como sociedade civil, a nossa capacidade de organização é limitada. As mulheres enfrentaram obstáculos permanentes a cada etapa eleitoral. Os resultados mostraram como as sauditas são determinadas. Já ninguém as pode parar.”
De uma família descendente de Maomé, profeta do Islão, mas seguindo uma escola sufi progressista e não retrógrada como a corrente wahhabita em vigor no país, Hatoon al-Fassi lamenta que alguns candidatos tenham recorrido a “termos religiosos fora de contexto para desencorajar os eleitores a votarem em mulheres”.
Um deles foi o mufti, a autoridade suprema em termos de interpretação dos textos sagrados, que emitiu um édito (fatwa), em directo na televisão, apelando a que o voto nas mulheres fosse boicotado.
Nem todos lhes deram ouvidos e os sinais parecem encorajadores: “Mulheres que são membros do Shura [conselho consultivo] foram insultadas por condenarem leis discriminatórias, mas os caluniadores foram processados judicialmente”, disse a historiadora saudita. “As queixosas recebem cada vez mais apoio de outras mulheres que vão ganhando maior consciência.”
Os próximos desafios, adianta Hatoon al-Fassi, serão “abolir o sistema do guardião masculino (ou muhrim – pai, marido, irmão ou filho(s) que “devem” acompanhar as mulheres em público, permitir que elas viajem, ser fiadores, etc..)., mudar o código de família, pôr fim à interdição de conduzir e nomeações para cargos de decisão, a nível ministerial, em particular”.
A saudita para quem outras olham como fonte de inspiração diz que não se importaria de seguir uma carreira política, mas admite que não tem muitas opções. “Decidimos dividir as tarefas entres grupos de mulheres. Por enquanto, estamos a festejar, mas não abdicamos de reclamar todos os nossos direito.”

Rasha Hefzi (à direita, com a sua directora de campanha, Hanaa Amer) venceu em Jidá, onde é empresária e uma activista influente
© Jordan Pix| Getty | NPR
Uma das candidatas vencedoras foi Rasha Hefzi, directora da Think N Link Cooperation, 38 anos, solteira e sem filhos. Vive em Jidá, principal entreposto comercial e “a cidade mais liberal”. A sua empresa fornece vários serviços, designadamente sondagens e campanhas para a promoção do desenvolvimento socio-económico. Não se estranha, pois, quando ela diz, em conversa telefónica: “Usámos todos os meios ao nosso dispor: redes sociais, cartazes nas ruas, call-centers, e-marketing, porta a porta…”
Desde os 15 anos que Rasha Hefzi milita activamente por causas como o feminismo, o diálogo inter-religioso e a democracia. Membro de várias organizações não governamentais, como a Assembleia Mundial para a Juventude Muçulmana, ajudou também a fundar diversas associações comunitárias. “A minha prioridade foi e continua a ser encorajar maior civismo”, declara.
“Interessa-me que as pessoas compreendam a importância de participar na vida pública. As mulheres já são activas em muitas esferas, em particular no sector privado [o número das que chegaram ao mercado de trabalho aumentou 40%, entre 2010 e 2015 mas ainda representam apenas 16% da força activa total, segundo a revista Fortune]. Na Câmara de Comércio de Jidá, são figuras notáveis, embora discretas, que não atraem atenções.”
A segregação de sexos permanece uma realidade, mas Rasha Hefzi, prefere valorizar o número crescente de mulheres no mercado de trabalho. “Fui eleita graças aos votos de muitos homens, muitos deles empresários”, garante. “Há indicadores de mudança, e quero contribuir para dar mais poder às mulheres, através do conhecimento, do know-how e da experiência. Os direitos vão-se conquistando. A Arábia Saudita não é um Estado monolítico. Cada região tem as suas especificidades.”

Reem Asaad, uma das mulheres árabes mais poderosas, segundo a Arabian Business Magazine, não exclui concorrer no futuro a um cargo político
© Cortesia de Reem Asaad | Courtesy of Reem Asaad
Aplicar um plano director que controle o ordenamento urbano foi uma das promessas eleitorais de Rasha Hefzi, das maiores críticas do sistema de saneamento quando, em Novembro, chuvas intensas romperam esgotos em Jidá causando mais de dez mortes.
Entre os que lhe deram o voto está Reem Asaad, conselheira financeira na Saudi Fransi Capital Corporation, aclamada pela Arabian Business Magazine como uma das “100 mulheres árabes mais influentes” (no 3º lugar).
Com um mestrado em Administração de Empresas e mais de 14 anos de experiência na área financeira, Reem Asaad foi uma das primeiras mulheres designadas para cargos outrora ocupados só por homens no poderoso National Commerce Bank.
Na manhã das eleições, fez-se acompanhar de uma das suas filhas, de 5 anos, para que fosse a menina a fazer “deslizar o boletim de voto” na urna. “Acredito que o meu país avança no sentido de ‘normas’ mais universais”, exulta, por e-mail.
“Ainda enfrentaremos momentos sombrios mas o sol brilhará. É assim que a história se faz. Isto é um processo. Desde há décadas que os sauditas têm estado ausentes da política e da participação pública. Não se pode esperar que mudem as suas atitudes em algumas semanas.”
O entusiasmo que as eleições geraram foi assim explicado por Reem Asaad, filha de um cirurgião e de uma gestora: “Tudo o que envolve mulheres gera opinião e debate. Alguns alegaram que as anteriores eleições pouco contribuíram para mudar os municípios e atingir os objectivos [prometidos durante as campanhas]. Há falta de fé numa mudança efectiva.”
Sobre se este acto eleitoral é tão só a continuação da luta das mulheres pelos seus direitos ou é também parte de um processo de transformação, social e político, mais vasto no reino, respondeu sem hesitar: “As duas coisas, claro!” E os desafios futuros? “Saberemos quando eles surgirem.”
Reem Asaad não exclui vir a concorrer a cargos políticos. “Mas ainda não; estou demasiado ocupada com a minha vida profissional.” Por enquanto, contenta-se em festejar uma vitória pessoal. Num tweet que se tornou viral, escreveu: “Votei! Pela primeira vez na minha vida adulta na #Arábia Saudita. Podem rir-se, mas é um começo. #saudiwomenvote.”
[As mulheres sauditas conquistaram o direito de conduzir em Junho de 2018, mas o príncipe herdeiro, Mohamed Bin Salman, proibiu que as activistas que lutaram por este direito reclamassem o mérito desta “revolução social”. Várias delas foram presas, uma delas Hatoon al-Fassi.]

© Wall Street Journal
As rainhas de Nabateia
Hatoon al-Fassi é autora do livro Mulheres na Arábia Pré-Islâmica. Neste seu estudo, ela prova que as mulheres no Estado beduíno e urbanizado de Nabateia, com capital em Petra, actual Jordânia, anexado pelo Império Romano em 106 d.C., tinham direitos que, posteriormente, foram retirados devido a uma interpretação masculina dos textos sagrados.
As rainhas nabateias, revela a historiadora saudita, eram livres, poderosas (sobretudo economicamente) e visíveis – os seus rostos, quase sem véu, eram gravados em moedas, por exemplo. “Foram teólogos muçulmanos que interpretaram erradamente as origens da lei islâmica”, explicou Hatoon al-Fassi, à agência Reuters.
“Muitas das práticas relacionadas com o estatuto [de submissão] da mulher baseiam-se em tradições locais. Não são necessariamente islâmicas. Nem são árabes, na essência. As mulheres gregas é que precisavam de tutores para firmar qualquer contrato. A lei saudita do guardião masculino nada tem de islâmico, é uma adaptação de leis greco-romanas.”
As principais regras da Shariah (lei islâmica) começaram a ser definidas no século IX d.C., em territórios conquistados pela espada onde uma elite árabe governava populações não muçulmanas e não árabes.
A base principal desta legislação deriva de tradições orais (Sunnah) atribuídas a Maomé, profeta do Islão, e impostas aos crentes, por juristas muçulmanos, como “divinas” e “inquestionáveis”.
Nabateia, cuja identidade árabe tem sido questionada por alguns conservadores, só começou a merecer atenção depois de, em 1812, ter sido “descoberta” pelo geógrafo suíço Johann Ludwig (ou Jean Louis) Burckhardt (1784-1917). Hoje, é um dos principais destinos turísticos do mundo, classificado pela UNESCO como património da Humanidade.

© Los Angeles Times
Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal EXPRESSO em 19 de Dezembro de 2015 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on December 19, 2015