Num país mais habituado ao biquíni do que à burka, Gisele Marie Rocha admite que o niqab, ocultando-a da cabeça aos pés, fez dela “atracção turística” no Brasil. Psicóloga de 42 anos, exímia no piano, que estudou desde os 8, e na guitarra, desde os 11, formou recentemente a sua própria banda de heavy metal. “O Islão é a minha religião e a música a minha profissão.” Entrevista por e-mail e Facebook. (Ler mais | Read more…)
Conte-nos um pouco de si…
Sou brasileira, nascida em São Paulo, a cidade onde resido atualmente. Tenho 42 anos e estudei Psicologia. O meu pai era advogado e a minha mãe foi professora. Tenho irmãos, mas não gosto de misturar vida profissional com a pessoal. Dedico-me agora integralmente à música, que é o meu trabalho. Sou divorciada, e tenho filhos.
O que começou primeiro no seu caso: o Islão ou a música?
A música. Estudo música desde os 8 anos de idade, e só me tornei muçulmana em 2009.
Antes do Islão, pertenceu a outro grupo religioso…
Sempre estudei muito e sempre fui apaixonada por cultura, literatura e tudo que sobre estes assuntos. Entre os assuntos que me despertam interesse, estão história e religião. Estudei muitas religiões também, como religiões antigas e a doutrina espírita.
Antes do Islam, integrava uma comunidade de praticantes da ‘Velha Religião’ ou ‘Bruxaria’. Os conceitos eram realmente interessantes e enriqueceram-me em termos de conhecimento, mas discordava deles, ao indagar se todas aquelas forças da natureza e divindades não poderiam ser diferentes aspectos da personalidade de um Deus Único.
Este aspecto também me fez distanciar do Cristianismo, porque eu não concordava – e queriam que eu não questionasse – o conceito de ‘Trindade’. Foi no Islam que reencontrei o conceito da Unicidade de Deus.
Foi por achar que você era “bruxa” que a sua mãe, católica, ficou contente por se ter convertido ao Islão?
Sim, a minha mãe ficou contente porque, assim, ela já poderia dizer-me coisas como: “Que Deus te abençoe”, que eu não ficaria brava. Isso era algo que ela pensava, porque na verdade nunca fiquei brava…
Como era sua vida antes da conversão, e por que escolheu este caminho?
Sempre trabalhei com música, apesar me ter licenciado em Psicologia. Durante algum tempo, pensei em dedicar-me exclusivamente à psicologia, mas acredito que a música é a minha vocação. Não me sinto bem quando estou longe. Tornei-me muçulmana porque li o Alcorão.
Com poucos meses de um curso de língua árabe, encontrei o Alcorão na Internet disponível para leitura. Como eu estudava a língua árabe, decidi ler o Alcorão, porque havia encontrado uma edição bilíngue (árabe-português).
Não conhecia nenhum muçulmano. Nunca havia estado antes numa mesquita. O Alcorão levou-me ao Islam [a forma que os muçulmanos consideram correcta de dizer “Islão”]. Sempre fui uma mulher religiosa, mesmo antes do Islam. Tinha fé em Deus. A minha família é católica, mas eu e os meus irmãos seguimos direções diferentes.
Disse, numa outra entrevista, que o seu pai era um católico “fascinado pela cultura árabe”. Até que ponto esse interesse influenciou a sua conversão?
O meu pai era um homem muito culto, inteligente que procurava sempre a construção do conhecimento. Dentro destas características, uma das coisas que ele admirava era o grande número de cientistas, estudiosos, e sábios que apareceram na era da Expansão Islâmica.
Foi quando surgiram grandes descobertas nas áreas de hidráulica, física, química, astronomia, o resgate da cultura clássica, tudo isto foi realizado por muçulmanos.
O Renascimento na Europa só aconteceu porque grandes estudiosos árabes muçulmanos redescobriram e resgataram a cultura clássica greco-romana. O meu pai admirava tudo isto, entre outros assuntos.
Aprender a língua árabe e, por consequência, ler o Alcorão, teve provavelmente ligação com o falecimento do meu pai [em 2009]. Mas tornar-me muçulmana, não teve nada a ver com isto.
Há muitos convertidos ao Islão no Brasil? Pode fazer-nos um retrato desta comunidade muçulmana?
Há muito convertidos, e este número vem crescendo constantemente [cerca de 25%, entre 2001 e 2011, como indicou a revisto “Isto é”]. Existem diversas e diferentes estatísticas [um censo demográfico em 2010 contabilizou, neste ano, 35.167 fiéis], mas não ligo muito para isto.
Os últimos números apontam para mais de 1 milhão e meio de muçulmanos no Brasil [de acordo com uma reportagem da rede Globo]. Há muitas mesquitas [cerca de 115]. Só na minha cidade, há 4 grandes mesquitas e uma infinidade de mussalas [salas de oração]. A grande maioria, como no resto do mundo, é formada por sunitas. Eu sou sunita.
Rezam segregados?
Seguimos a tradição de separar homens e mulheres durante as nossas orações – e acho isto muito certo. Quando você vai orar para Allah [ou Alá, que quer dizer Deus, em árabe] não é hora de se distrair com outros assuntos. Isso acontece, sim. Já vi noutras religiões, noutros cultos religiosos.
Por que decidiu usar o niqab e não apenas o hijab, por exemplo? Uma activista egípcia, Mona Eltahawy, rejeitou o niqab, justificando: “Não posso aceitar que quanto mais perto estou de Deus menos Deus me vê”. Qual o seu comentário a este respeito?
Bem, respeito a opinião dela, mas não acredito que Deus não possa ver através de um simples pedaço de pano…
Não há, no Alcorão, qualquer descrição de roupas como sendo as mais adequadas para usarmos. E também é errado aquele que pensa que devemos usar as roupas da época do Profeta Muhammad [ou Maomé], já que ele e os seus contemporâneos não usavam as roupas que usamos hoje, sejam femininas ou masculinas.
O niqab é minha escolha. Começou simplesmente porque me ofereci para ajudar uma amiga a vencer o medo de o usar quando regressou ao Brasil depois de morar alguns anos no Egipto. Eu acompanhei-a. Senti-me bem, e comecei a aprender como o deveria usar. Foi fruto de muita reflexão.
Quando comprei o meu primeiro niqab, determinei que levaria isto a sério. Desde então, sempre o usei com muito respeito.
Há várias interpretações sobre o que, para os muçulmanos, significa modéstia. Teoricamente, o objetivo é que as mulheres “não chamem a atenção”, mas num país como o Brasil, mais associado ao biquíni do que à burqa, uma mulher de niqab não chama muito mais a atenção sobre si própria do que o contrário?
Sim, é verdade, até certo ponto, mas, ao mesmo tempo, não me caracterizo por usar pouca roupa. O niqab é uma escolha pessoal, e usá-lo-ei até o fim dos meus dias, Insha’Allah [oxalá].
Embora sabendo que não se preocupa “nem um pouquinho” com a reacção dos outros, alguma vez se sentiu assediada devido ao niqab?
Algo de estranho acontece comigo e não sei explicar exactamente o motivo. Devo ser tão exótica que ultrapassei a barreira do preconceito. Tornei-me algo como uma atração turística, porque as pessoas, em geral, querem falar comigo.
Raramente presencio algum tipo de preconceito contra mim. Também acredito no factor individual como componente importante que modifica a relação da pessoa com o mundo que a rodeia.
Acredito que recebemos do mundo o que lhe damos. Como sou sempre atenciosa e simpática com todos, como gosto de conversar, as pessoas aproximam-se de mim. Os poucos casos em que fui vítima de preconceito mostraram-me que o problema não está em mim, mas nos preconceituosos. Em palco, a reacção é sempre positiva e óptima.
Só tenho experiências positivas. Nas ruas, lembro-me de uma ocasião em que eu passava em frente à famosa Galeria do Rock, em São Paulo e, de lá de dentro, três garotas roqueiras cercaram-me. Diziam que estavam muito felizes por conhecerem uma “mulher egípcia”!
Tiraram muitas fotos comigo, mas falavam tanto que foram embora sem que eu conseguisse explicar-lhes que sou muçulmana mas brasileira. Foi muito engraçado.
Não é um paradoxo usar um tipo de vestuário dos primórdios do Islão, como se tivesse parado no tempo, enquanto a sua música e os instrumentos que toca representam uma vanguarda de modernidade?
Bem, como já expliquei, o meu vestuário não vem dos primórdios do Islam. Também não acho que o metal e a guitarra sejam vanguarda de modernidade.
A música, a grande música, que é o meu foco, é intemporal e universal. Esta mistura de vários elementos é algo que me fascina, e que está também presente na cultura do meu país.
Num país como o Brasil, não é desconfortável cobrir o corpo dos pés à cabeça?
O segredo está no facto de a roupa ser exactamente larga, portanto confortável, e extremamente leve, já que os tecidos das roupas que eu uso são tradicionalmente muito leves e arejados. Desta forma, minhas roupas são muito mais confortáveis e arejadas do que calças jeans apertadas e camisetas e blusinhas justas.
Sobre a música, quando é que começou a tocar, e porquê heavy metal?
Comecei a estudar piano clássico aos 8 anos de idade. Sempre tive forte ligação com a música erudita, até hoje. Passei para o violão algum tempo depois de ter começado a estudar piano. Aos 11 anos, virei-me para a guitarra eléctrica. O heavy metal é o estilo que mais se aproxima da música erudita. Não é fácil tocar heavy metal. Estudo música durante 6 horas diárias, todos os dias.
Como sabe, muitos muçulmanos radicais, no Afeganistão ou na Arábia Saudita, por exemplo, renegam a música como haram, proibida no Islão. O que acha disto, e alguma vez se sentiu ameaçada?
Bem, em primeiro lugar eu sou muçulmana, e sigo o Islam tradicional, portanto, não tenho nada a ver com os Taliban e o wahhabitas. Em segundo lugar, e sinceramente, nem ligo para o que pessoas assim pensam. Não tenho medo.
Como escolheu a guitarra?
A Polka, a minha guitarra, é baseada na Karl Sandoval Polka Dot V, uma das principais guitarras de Randy Rhoads [1956-1982, tocou com Ozzy Osbourne e os Quite Riot], o músico que eu mais amo e que mais influência exerce sobre mim. Mas não é uma réplica da guitarra do Randy. É diferente em vários aspectos técnicos.
A guitarra do Randy é preta como com bolinhas brancas. A minha é preta com bolinhas rosas. A minha guitarra é uma das maiores homenagens a Randy Rhoads.
Por que pintou a guitarra com bolinhas pretas e cor-de-rosa, iguais às suas sapatilhas?
As sapatilhas vieram bem depois. Um amigo disse-me: “Sei que você é muçulmana, mas vou dar-lhe um presente de Natal.” E foram as sapatilhas por combinarem com a minha guitarra.
Quais são os temas das suas canções? Os Slayer, banda de trash metal, abordam questões satânicas embora os seus membros sejam cristãos praticantes. Até que ponto se podem dissociar as convicções religiosas das performances artísticas sem cair na hipocrisia?
Não acho que os Slayer sejam hipócritas por os seus membros serem cristãos e as suas letras falarem de temas satânicos. A arte tem de ser livre.
A criatividade não pode ser limitada por temas determinados, ou por qualquer outra restrição. Como compositora, quero sentir-me sempre livre para falar sobre o que eu quiser.
Música e lírica são arte. Os temas são e serão variados. Mas eu e a minha banda não vendemos a morte. “Vender a morte” é uma expressão que li num artigo sobre os Iron Maiden. Evitamos temas satânicos, não por motivos religiosos, mas porque não nos atraem. Eu prefiro a vida, mesmo quando escrevemos canções de crítica social. Prefiro a luz, e não as trevas.
Como se juntou aos Spectrus, e que banda é esta que agora decidiu abandonar? Podem eles sobreviver depois de perderem a sua frontwoman?
Spectrus foi muito importante na primeira leva de bandas de heavy metal no Brasil, surgida na década de 1980 – uma era de verdadeiro pioneirismo por aqui, onde nada existia em termos de metal. Muitas bandas dessa época tocaram apenas no Brasil.
Algumas ganharam o mundo, como os Sepultura. Outras tornaram-se de culto, como os Sarcófago. Alguns dos meus irmãos tocaram nesta banda.
Spectrus já havia terminado a sua carreira há muitos anos quando a Metal Soldiers Records, de Portugal, lançou um álbum Tributo ao Spectrus, gravado pelos Prellude, banda aqui do Brasil.
O vocalista do Spectrus pensou em reactivar a banda e convidou-me para esse renascimento, em 2012. Naquela altura, eu dedicava-me à Psicologia e há seis anos que não tocava, mas aceitei o convite. Desejo toda a sorte do mundo para eles [um fiel do rito umbundu, outro espírita e um católico], e sou grata por eu ter voltado a tocar profissionalmente.
Por que deixou o Spectrus e qual o seu novo projecto?
Diferenças profissionais levaram-me a sair. Toco agora numa nova banda [Eden Seed]. De momento, estamos concentrados nas músicas para o nosso primeiro álbum. Não posso falar muito mais do que isto até o lançamento. Esperamos tocar no mundo todo, especialmente em Portugal – me deixaria muito feliz.
Além de Randy Rhoads, quem são os seus artistas favoritos?
Randy Rhoads é, e sempre será, o Número Um. Foi o primeiro músico que me impressionou com a fusão entre música erudita e o heavy metal, como ele fazia.
Indirectamente, ele mudou a minha vida. É o músico que toca a minha alma mais profundamente, e isto transcende instrumentos e estilos musicais. Jimi Hendrix [1942-1970] é, também, uma forte influência, em especial pela interpretação enérgica, e pela liberdade que sinto na construção da sua música.
Paco de Lucía [1947-2014] é outra grande influência ligada à minha história pessoal. Ouço-o desde que eu era criança. Também está ligado a uma grande paixão pelo flamenco, e à minha atração por harmonias “arabescas”, já que o flamenco foi fortemente influenciado pela música árabe, em especial na Andalusia.
Yngwie Malmsteen [multi-instrumentista sueco nascido em 1963] é outra grande influência. E isto tem a ver com a minha ligação com a música erudita, sobretudo a música barroca, e compositores como Bach, Corelli, Handel, entre outros. Sou realmente eclética.
Sendo muçulmana, como olha para a crise dos refugiados, a incapacidade de os países islâmicos se libertarem de regimes ditatoriais e a sua recusa em aceitarem a separação entre Estado e religião?
Olho para a crise dos refugiados como pessoa, não como muçulmana. Vejo a sociedade humana global a entrar numa convulsão que já era previsível porque o modo como esta sociedade se organizou é simplesmente insustentável e canibal.
A crise dos refugiados tem origem na extrema exploração da miséria, na violência e nos conflitos resultantes desta exploração. Um dia, isto teria que acontecer.
Na minha modesta opinião, a ligação entre Estado e religião nos países do Médio Oriente Médio é útil para a supremacia de um grupo político selecto que tenta perpetuar o poder nas suas mãos, já que verdadeiramente nenhum país da região tem qualquer tipo de governo islâmico.
As suas interpretações do Islam são sempre adaptadas às necessidades dos governantes. Regimes ditatoriais são excelentes em propiciar as relações entre corrompidos internos e corruptores externos.
Como define a sua prática religiosa – segue uma escola de pensamento conservadora ou mais progressista, como a que aceita mulheres imãs [líderes que podem conduzir as orações], por exemplo?
Eu sigo o Islam tradicional. O que foi determinado por Allah, ensinado pelo Profeta Muhammad e minuciosamente estudado pelas escolas de jurisprudência islâmica, das quais apenas quatro [hanafita, shafita malikita e hanbalita] sobreviveram até os nossos dias.
Procuro aprender sempre. Tornei-me muçulmana em 2009 e, até hoje, considero-me apenas uma estudante. Esta construção do conhecimento é fundamental para se entender o Islam. É isto o que eu sigo.
Este artigo, aqui na versão integral e actualizado, foi publicado originalmente na revista SÁBADO, em 15 de Outubro de 2015 | This article, here in in the expanded and updated version, was originally published in the Portuguese magazine SÁBADO, on October, 15, 2015.