Quem melhor do que a sobrinha de um poeta, o sírio Nizar Kabbani, e ex-mulher de outro, o palestiniano Mahmoud Darwish, para nos oferecer um guia do que ela considera serem as mais importantes figuras literárias do seu país? Conversa com Rana Kabbani, autora de Imperial Fictions: Europe’s Myths of the Orient. (Ler mais | Read more…)

O poema Voice (“Voz”), da poeta síria Rasha Omran, escrito segundo a caligrafia árabe diwani jali
Voice: He didn’t say anything. / It was I, who chose to listen to him
© everitte.files.wordpress.com
Adonis é um eterno candidato ao Nobel da Literatura, mas Rana Kabbani não o estima: “É um escritor sobrevalorizado e apoiante imoral do fascismo”.
Este parecer negativo é partilhado por outros opositores de Bashar al-Assad. Estão furiosos com o “profeta pagão” de 85 anos, louvado como “o expoente máximo da poesia árabe do século XX,” por não apoiar a revolta popular de 2011 que degenerou em guerra civil, com facções internas e externas.
Sobrinha do sírio Nizar Qabbani (1923-1988), “poeta do erotismo árabe”, e ex-mulher de Mahmoud Darwish, poeta nacional palestiniano, Rana foi também casada com Patrick Seale (1930-2014), jornalista britânico e biógrafo/amigo de Hafez al-Assad.
“Por gentileza, esqueça isso. Não me interessa comentar sobre esse shabbih [como são designados, no singular, os milicianos do regime]”, pediu. “Eu já o esqueci.” Quem nunca deixou de amar foi Darwish.
Rana era filha de um embaixador sírio nos Estados Unidos. Darwish tinha 34 anos e ela 18 quando foram apresentados numa festa. Ele pediu-a em casamento.
Ela aceitou, e a união consumou-se nessa mesma noite. Viveram juntos seis meses, em Beirute, em condições deploráveis num campo de refugiados – ele sempre em reuniões com dirigentes da OLP, a organização a que pertencia; ela, habituada ao conforto e luxo, cada vez mais sozinha.
Separaram-se e voltaram a casar-se seis meses depois. Instalaram-se em Paris. Sem filhos, sob ameaças de morte – e pressionado por Yasser Arafat a desligar-se da companheira –, ambos concordaram em divorciar-se.
Em Write Down, I am an Arab (“Escrevam, sou um Árabe”, inspirado no poema Bilhete de Identidade), documentário escrito, produzido e dirigido por Ibtisam Mara’ana, cineasta palestiniana de cidadania israelita, Rana emociona-se ao ler uma das cartas de Darwish que incluiu no livro que ela traduziu para inglês, “In Sand and Other Poems”:
As tuas palmas das mãos/ A minha voz / O teu amor / A minha espada / Os teus olhos / Dois rios / A tua presença/ Eu moribundo/ A tua ausência / A minha morte.

Nizar Qabbani e a sua mulher, Balqis al-Rawi, morta num atentado bombista que destruiu a Embaixada do Iraque em Beirute, em 1981
© moutarjam.com
Rana Kabbani nasceu em Damasco. Formou-se em História na Universidade Americana de Beirute e em Jesus College, em Cambridge. Foi crítica de arte em Paris e geriu uma editora em Londres. Aqui se tornou escritora a tempo inteiro, em 1986.
Nesse ano, publicou Europe’s Myths of the Orient: Devise and Rule, que haveria de se intitular, em 1994, Imperial Fictions: Europe’s Myths of the Orient. É cronista do diário britânico The Guardian, e também colabora com a BBC.
“O meu livro é sobre estereótipos, hoje mais presentes do que nunca”, especifica Rana Kabbani, após um primeiro contacto pelo Twitter a que se seguiu uma troca de mensagens por e-mail.
“A história da revolução síria, por exemplo, tem sido contada através de um prisma ideológico distorcido daqueles estereótipos [da cultura muçulmana], que muitos media ocidentais propagam de maneira fácil e absurda, não deixando margem para as histórias humanas mais simples.”
“Ignoram um povo corajoso que tenta libertar-se de um totalitarismo horrífico que há meio século acorrenta um país.”
O tio Nizar é idolatrado por Rana “como o maior poeta popular árabe”, cujos versos eróticos ainda hoje são cantados no Médio Oriente.
When I love/ the water gushes from my fingers/grass grows on my tongue/ when I love/ I become time outside all time. (In: “On Entering the Sea”).
Venera-o como “um dos maiores críticos dos regimes árabes”, com obras “premonitórias” da violência que está a conduzir ao êxodo de milhares de sírios. Há um poema, em particular, que prenuncia desgraça:
We reached the point/ Where we did not know what to say/All subjects became the same /The foreground merged with the background. /We reached the peak of despair/ Where the sky was a bullet,/ Embracing was retaliation, /Making love was the severest punishment. (In: “Arabian Love Poems”)

Nizar Qabbani, aclamado como “o poeta do erotismo árabe”
© syrianhistory.com
É inegável que Nizar Qabbani, também nascido em Damasco, em 1923, simbolizou a luta contra “as forças do mal”, influenciado pelo pai, dono de uma fábrica de chocolates, preso várias vezes por resistir às forças coloniais francesas.
Quanto ao filho, começou a escrever os primeiros poemas ainda na universidade – versos de sedução que aludiam a corpos femininos, fazendo estremecer uma sociedade conservadora.
Inspirou-se numa irmã que se suicidou tinha ele 15 anos, quando a obrigaram a casar-se com um homem que ela não amava. “O amor e o sexo são prisioneiros no mundo árabe e eu vou libertá-los”, prometeu, no dia do funeral.
Após concluir a licenciatura em Direito, em 1945, Kabbani foi designado cônsul e adido cultural em várias cidades, do Cairo a Madrid.
Quando o Egipto e a Síria se fundiram na República Unida Árabe, foi enviado para a China como secretário da embaixada daquela entidade que apenas durou de 1959 a 1961. Cinco anos depois, mudou-se para Beirute onde abriu uma editora a que deu o seu nome.
Em 1967, a derrota dos árabes na segunda guerra com Israel teve um impacto profundo na sua obra, que se tornou menos romântica e mais política. Excerto do poema Sultan (“Sultão”):
(…) You have lost two wars/ and no one tells you why. /Half your people have no tongues./ What good their unheard sigh?/
The other half, within these walls, /run like rabbits and ants,/ silently inside./ If I were given safety/ from the Sultan’s armed guards/
I would say, O Sultan,/ the reason you’ve lost wars twice/ was because you’ve been walled in from/ mankind’s cause and voice.
(In: “Notes on the Book of Defeat”)
O azedume de Nizar Kabbani foi crescendo a partir de 1981, quando a segunda mulher, a professora iraquiana Balqis al-Rawi, foi vítima de um atentado bombista, na capital libanesa. Dedicou-lhe um poema, Balqis (ver vídeo acima), no qual responsabiliza todo o mundo árabe pela morte da amada. Não voltou a casar-se.
Trocou Beirute por Londres, onde viveu os últimos 15 anos, sempre escrevendo poesia incómoda. Em 1994, publicou o provocador “When would they announce the death of the Arabs?”
For fifty years, I have been watching the state of the Arabs. /And they thunder, but never rain…/They enter wars, but never leave…/ They keep chewing scraps of wisdom /But never digest it…/
For fifty years, I have been trying to draw a land/ Called – remarkably – the land of the Arabs;/ I drew sometimes in the colour of arteries/And sometimes in the colour of anger. / And when the drawing was finished, I asked myself:/
If someday they announced the death of the Arabs…/ Then where would they be buried)/ And who would cry for them?/They have no daughters…/ They have no sons…/And there is no grieve!
Aos 75 anos, em 30 de Abril de 1997, Kabbani morreu, de ataque cardíaco, em Londres. No seu testamento, redigido na cama do hospital, pediu que fosse sepultado em Damasco, “o útero da [minha] poesia”. E assim aconteceu, quatro dias depois. Recebeu honras de Estado e milhões de árabes choraram a sua partida.
Perguntámos à musa de Darwish – o seu primeiro amor foi a judia Tamar Ben Ami, para quem ele escreveu um poema (Rita and the Rifle / “Rita e a espingarda”) que muitos julgavam ser dedicado à Palestina (Entre Rita e os meus olhos / há uma espingarda…), como é que Nizar e Mahmoud olhariam hoje para a tragédia da Síria:
-“Os dois abominavam e condenavam a máfia dos Assad”, garantiu Rana. “Se eles tivessem vivido para testemunhar os últimos quatro anos e meio, seriam vozes importantes ao lado desta sublevação admirável contra um ditador psicopata.”

Adonis, o poeta sírio que reescreveu e modernizou a literatura árabe, vive exilado entre Paris e Beirute desde 1956. Admirado pela sua obra, tem sido muito criticado por se ter distanciado da “revolução que sai das mesquitas”
© Middle East Eye
Voltemos, agora, a Adonis, natural da aldeia de Qassabin, no reduto xiita-alauita de Latakia. Foi um dos maiores entusiastas das sublevações na Tunísia e no Egipto. Também ele antigo prisioneiro político forçado ao exílio, em 1956, o sírio-libanês foi tímido nas críticas ao líder em Damasco. Profundamente secular, não se juntou aos protestos.
“Nunca aceitaria participar numa manifestação que saísse de uma mesquita”, justificou, invocando as seguintes razões: não há “Islão moderado” e a vida das minorias sírias será “muito pior” após a queda de Assad.
Aos ouvidos dos críticos, as palavras de Adonis reproduziam a oratória de Assad, que apostava no medo. A realidade daria, porém, razão a Ali Ahmad Said Esber, o filho de um camponês que foi obrigado a adoptar um pseudónimo para que os seus versos, escritos desde os 13 anos, fossem publicados.
O que ele temia aconteceu: a Síria fracturou-se em grupos confessionais outrora aliados e agora inimigos, e as milícias mais poderosas e extremistas emergiram do campo sunita.
Numa entrevista à Paris Review, em 2014, Adonis afirmou: “Há muito tempo que o mundo árabe vive uma era de escuridão. A Síria é parte dela. (…) Esta autoproclamada revolução tornou-se numa amálgama. Para destruir o regime é necessário destruir a Síria. A destruição de um país é um acto selvagem. A culpa é do fundamentalismo.”
“(…) Escrevi uma carta aberta a Bashar [nunca se encontrou com ele, nem com Hafez], porque queria que ele mudasse, ouvisse o povo, secularizasse a sociedade. Sou contra a violência, ingerências externas e uma religião politizada – não contra a fé individual.”
“(…) A religião é antidemocrática, porque ser democrata significa aceitar que ‘o outro’ é diferente. Sou contra a tolerância, porque oculta sentimentos racistas. A democracia exige igualdade, não tolerância.”
Um dos poemas mais simbólicos de Adonis, que pode ser lido como uma homenagem aos sírios que hoje fogem da morte nas águas do Mediterrâneo, chama-se “O Falcão”.
Os cavalos aproximaram-se e da margem chamaram-nos:/ Voltem para trás pois nada de mal vos acontecerá./ Mas eu nadava, e o meu irmão mais novo nadava igualmente./
Virei-me para o encorajar, mas ele não me ouviu./ E com medo de se afogar deixou-se encandear pela garantia/ daquela palavras. E nadou, à pressa, para trás, enquanto eu atravessava o Eufrates./
Então, eles correram na direcção do meu irmão, que de boa fé/ se dirigia para eles, e quando olhei para ele, decapitaram/ aquele jovem de treze anos e levaram-no. Eu, porém,/ corria, corria sempre em frente, sentia-me como um pássaro/ – assim tão rápido corriam as minhas pernas.

Colete Khoury, primeira embaixadora da Síria no Líbano, escandalizou a sociedade damascena, em 1959, com um romance, Ayyam Maahou (“Dias Com Ele”), inspirado num affair com o poeta Nizar Kabbani
© alchetron.com
Além de Adonis, na prateleira dos “proscritos”, Rana Kabbani coloca também a damascena de 84 anos Colete Khoury, autora de uma obra vasta centrada no “amor e erotismo das mulheres”.
A oposição síria não suporta que ela, neta de Faris al-Khoury, primeiro-ministro de 1944 até 1954, e deputada entre 1990 e 1995, se mantenha uma aliada de Bashar.
O Presidente designou-a “conselheira literária”, em 2006, e mais tarde embaixadora em Beirute, em 2008, quando Damasco reconheceu, pela primeira vez em seis décadas, a soberania do vizinho Líbano – até então os Assad nunca desistiram da ambição de incluir o “País do Cedro” numa “Grande Síria” (onde também integravam a Palestina).
Não deixa de ser irónico, face ao antagonismo de Rana, que um dos livros de Colete Khoury que mais escandalizou a Síria, em 1959, tenha sido um romance, Ayyam Maahou (“Dias Com Ele”), inspirado num affair com Nizar Kabbani.
A protagonista e narradora, Rim, é uma mulher hostil ao casamento, que “não se deixou cegar pelo amor”, porque isso enfraqueceria a sia identidade.
Dois anos depois, em 1961, foi publicado o ainda mais polémico Layla wahida (“Uma noite”), o encontro fugaz de Rasha, personagem principal, com um piloto francês durante a II Guerra Mundial. A controvérsia foi maior por introduzir o adultério na equação.

Hanna Mina: escritor do do realismo social. Os seus livros centram-se na luta de classes. Usou as experiências pessoais como sem-abrigo, estivador e barbeiro para descrever a existência de gente comum e analfabeta (ele tem apenas a instrução primária)
© The National
Rana Kabbani também não admira Hanna Mina, apesar do reconhecimento internacional como “decano dos romancistas sírios”, galardoado com o Prémio dos Escritores Árabes em 2005.
Os seus livros, catalogados como pertencendo ao movimento do realismo social, centram-se na luta de classes. Usou as experiências pessoais como sem-abrigo, estivador e barbeiro para descrever a existência de gente comum e analfabeta (ele tem apenas a instrução primária).
Em encontros com jornalistas no seu estúdio decorado com retratos de Gorki, Dostoeivski, Tchekov, Hemingway e Estaline, o nonagenário Mina conta a “infância atribulada, encontros com mulheres misteriosas, e mares distantes de ondas tumultuosas” – principal inspiração.
Recusa escrever a autobiografia, alegando que as suas memórias já polvilham todos os seus livros, desde Blue Lanterns a The Swamp.
Para Rana, as personalidades literárias e filosóficas sírias mais extraordinárias são Abd al-Ghani al-Nabulsi (1641-1731), “que escreveu Interpretação dos Sonhos – dois séculos antes de Freud”; Ahmad Budairi al-Hallaq, cronista do século XVIII, “das muitas invasões que Damasco sofreu até à data presente”; Abu Khalil al-Kabbani (1835-1902), “o criador do teatro musical e primeiro dramaturgo do mundo árabe”; e Ulfat Idilbi (1912-2007).
As primeiras histórias de Ulfat centravam-se no movimento de resistência sírio pela independência, mas depois dedicou-se a denunciar as pressões e obstáculos que as mulheres enfrentam para ocuparem o seu lugar devido na sociedade.

As primeiras histórias de Ulfat Idilbi centravam-se no movimento de resistência sírio pela independência, mas depois dedicou-se a denunciar as pressões e obstáculos que as mulheres enfrentam para ocuparem o seu lugar devido na sociedade
© abracocultural.com

Ghada al-Samman descreveu assim o seu trabalho: “Sonhos, loucuras, alucinações são instrumentos literários que me ajudam a provar as profundezas da Humanidade. O que é mais importante num pesadelo é a obstinação do indivíduo em despertar do sono e acordar, para se livrar do pesadelo. Aos árabes falta essa vontade de despertar
© http://www.lorientlejour.com
Outra escritora recomendada por Rana é Ghada al-Samman (da família Kabbani), “a primeira escritora feminista síria”, nascida em Damasco em 1942. É autora de mais de 40 livros de géneros diversos.
Inovadora e controversa, com um estilo comparado ao do colombiano Gabriel García Màrquez, e admiradora de T. S. Eliot [curiosamente, Adonis, que Rana tanto detesta, é comparado a este escritor, por ter modernizado a literatura árabe, como Eliot fez com a literatura inglesa], sobretudo da sua Canção de Amor de J. Albert Prufrock (1917), tem atraído atenção mundial. As suas obras foram traduzidas para uma dezena de línguas, do italiano ao japonês, do russo ao farsi.
Em inglês e em prosa, estão disponíveis The Square Moon, The Night of the First Billion e uma trilogia sobre a guerra civil libanesa e a invasão israelita de 1982 – Beirut 75, Beirut Nightmares e The Night of The First Billion.
Aqui denuncia as “deploráveis condições sócio-económicas e políticas enraizadas num feudalismo machista e corrupto”. Podemos lê-la também nas antologias poéticas Opening the Gates: A Century of Arab Feminist Writing e Middle Eastern Muslim Women Speak.
[Em 2018, Ghada publicou Farewell Damascus e, em 2019, Capturing Freedom’s Cry: Arab Women Unveil Their Heart.]
Numa entrevista ao jornal Al Itihad, Ghada al-Samman descreveu assim o seu trabalho: “Sonhos, loucuras, alucinações são instrumentos literários que me ajudam a provar as profundezas da Humanidade. O que é mais importante num pesadelo é a obstinação do indivíduo em despertar do sono e acordar, para se livrar do pesadelo. Aos árabes falta essa vontade de despertar.”

Mustapha Khalifa (à dir.) habitou-se de tal modo a “viver numa concha” que optou por “erguer um muro” à sua volta, numa busca existencial
© gramha.net
Igualmente respeitado por Rana Kabbani é o escritor Mustapha Khalifa, autor de Al-Qawqa (“The Shell”/ A Concha, 2008), “a história verídica dos anos tortuosos que passou, de 1982 até 1994, na temível prisão de Tadmour, em Palmira” – cidade que seria depois destruída pelos terroristas do Daesh, ou autoproclamado “estado islâmico”.
Cristão acusado de colaborar com a Irmandade Muçulmana, os guardas prisionais consideravam-no “um traidor duplo”. Quando se declarou ateu, foi ostracizado pelos colegas de cela como apóstata. Também o olhavam com a suspeita de que ser “espião ao serviço de Assad”.
As memórias da prisão, onde o terror dominava todo o seu ser, incluem também o período pós-libertação. Habitou-se de tal modo a “viver numa concha” que optou por “erguer um muro” à sua volta, numa busca existencial.

Em 2013, o busto de Al-Ma’arri, um dos maiores poetas clássicos árabes, orgulhosamente ateu, foi “decapitado” por jihadistas da Frente al-Nusra, ou al-Qaeda no Levante, cujo desígnio é transformar a Síria num Estado islâmico. (Na foto, em 1944, a estátua intacta e o seu escultor, Fathi Muhammad)
© historyanswers.co.uk
No final da entrevista que me deu, Rana Kabbani identificou o seu autor favorito: o pensador ateu Abu’l-ala al-Ma’arri, poeta, filósofo e romancista, comparado a Tito Lucrécio Caro, autor do épico Sobre a Natureza das Coisas (“De Rerun Natura”), para quem “a alma é mortal”.
Nascido em 973 na aldeia que tem agora o nome de Maraat Al-Numan, nos arredores de Aleppo, Al-Ma’arri estudou aqui mas também em Trípoli (Líbano) e em Antioquia (actual Turquia)
Assumia-se como “pensador pessimista”, citando a razão como principal fonte da verdade. Via-se a si próprio como duplamente recluso: por ser cego e viver isolado. Atacava os dogmas de qualquer credo religioso (dos zoroastras aos cristãos) e rejeitou o Islão.
Defendia a justiça social e dava o exemplo vivendo como asceta. Vegetariano assumido, recusava alimentar-se com “a carne de animais sacrificados”. Ele, que nunca se casou até à sua morte aos 83 anos, desencorajava igualmente a natalidade, alegando que os filhos “deveriam ser poupados às agruras da vida”.
Entre as principais obras de Al-Ma’arri – que ele nunca quis vender – estão A Necessidade Desnecessária e A Epístola do Perdão – considerada “percursora da Divina Comédia, de Dante. Em 2013, a estátua deste que foi dos maiores poetas clássicos árabes, foi “decapitada” por jihadistas da Frente al-Nusra, ou al-Qaeda no Levante, cujo desígnio é transformar a Síria num Estado islâmico.
“Há um poema muito conhecido de Al-Ma’arri que aprendíamos na escola, e eu gostaria que um dos versos fosse o epitáfio no meu túmulo”, concluiu Rana Kabbani. “Pode ser traduzido mais ou menos assim: Life is but care, so nothing astounds as much as he longs for more.”
Embora o seu nome não conste do “guia” de Rana Kabbani, seria injusto não incluir Hani al-Rahib (1939-2000) entre os maiores vultos da literatura síria: dos pioneiros do romance no seu país, dizia que os livros o deixavam imune à loucura.
Durante quatro décadas, desde os anos 1960, Rahib (ou Raheb) confrontou os poderes políticos árabes, criticou a passividade dos intelectuais, protestou e revoltou-se contra a abundância de corrupção e a escassez de justiça social e democracia no Médio Oriente.

Hani al-Rahib (ou Raheb), à direita, e a capa do seu Al-Waba (“The Epidemic”/ A Epidemia), considerado pela União dos Escritores Árabes (que o expulsou duas vezes) “um dos 105 melhores livros do século XX”
Nascido em Latakia, em 1939, Rahib só pôs fim às batalhas e combates pela liberdade quando um cancro lhe roubou a vida, em 2000. Uma das suas obras mais notáveis é Al-Waba (“The Epidemic”/ A Epidemia, título da tradução para inglês).
“É um dos 105 melhores livros do século XX”, proclamou a União dos Escritores Árabes, que o expulsou duas vezes. Retrato de três gerações em cem anos de história síria, os personagens são gente marginalizada e incapaz de confrontar quem os governa. Não admira que os presos políticos de Assad adulassem este romance como “uma bíblia”.
A descrição que, em Al-Waba, Rahib faz da sua aldeia em 1916, no final da I Guerra Mundial, quando os exércitos turcos em retirada semearam a destruição, é hoje, de certo modo, a imagem da Síria despovoada e despedaçada por múltiplos inimigos.
O lugar é lindo./ Talvez o lugar mais lindo de que há memoria,/ e seguramente o mais bonito (…). Ninguém se lembra quando é que o transformaram num lugar para os mortos./
(…) As pessoas vagueavam perdidas, tentando fugir da morte./ Dezenas de milhares./ Quanto mais pessoas, mais vítimas.
O primeiro romance de Rahib, Os Derrotados, foi publicado em 1961. Ele tinha 22 anos e ainda frequentava a Universidade de Damasco – onde daria aulas, até ser despedido e despromovido a professor de liceu, devido aos seus ideais.
O herói é aquele que perde. Uma escolha intencional pois só nos livros seria possível condenar ditaduras. Rahib aborda o “estado de confusão, desorientação e perda da juventude árabe”. E ataca “a traição dos nacionalistas apenas leais aos seus interesses”.
“Os meus romances tentam documentar a luta entre os elementos da derrota e a forças que procuram elevar a nossa humanidade”, disse o escritor à revista Al Jadid.
Uma das razões que levaram a União dos Escritores Árabes a excluir Rahib, foi ele ter defendido, alegadamente, a “normalização” dos laços com Israel.
Numa entrevista à publicação Al Wasat, defendeu-se: “Se falarmos com o inimigo como ignorantes acabaremos numa posição de submissão; mas se falarmos armados com o conhecimento poderemos encontrar uma solução.”
Outra declaração controversa, de apelo a estudantes para se rebelarem contra “valores decadentes”, forçou-o a sair da Universidade do Kuwait, onde também foi docente.
Não mencionou qualquer governante do emirado; lamentou apenas o marasmo que impede o desenvolvimento humano na região. Toda a sua obra – oito romances e três colectâneas de contos – reflecte um desalento infindável.
No livro, com marcas autobiográficas, Traçar uma Linha na Areia, Rahib insurge-se contra os três grandes tabus árabes: religião, sexo e política.
“Ao submetermo-nos continuamente a estas proibições temos dificuldade em erguer mais alto as nossas cabeças, para dizer ‘não’ e exigir novo começo. (…) Somos um povo mandrião com duas expressões predilectas: ‘amanhã’ [Bukra] e tanto faz’ [Maalesh]. A preguiça é responsável pelos nossos desaires.”
Em Mil e Duas Noites (1977), Rahib analisa sem piedade o modo como os exércitos árabes perderam, em seis dias (ou “seis horas”), na guerra de 1967, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, a Península do Sinai, a Faixa de Gaza e os Montes Golã.
Não foi uma “catástrofe militar”, avaliou, mas um “cataclismo cultural”. Justificou assim o título: “A nossa sociedade está profundamente fracturada. Usa a linguagem do presente com a mentalidade do passado. O mundo árabe permanece onde Xerazade o deixou em Mil e Uma Noites.”
Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente na revista LER, edição Outubro-Novembro-Dezembro de 2015 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese magazine LER, 2015 October-November-December edition