Elias Khoury, a Nakba, Yarmouk e a porta do inferno

O escritor libanês e eterno candidato ao Nobel reflecte sobre o poder da literatura num mundo que permite tragédias como as que acontecem no mais estratégico campo de refugiados palestinianos na Síria, mas também na Faixa de Gaza, onde nada entra e sai sem licença de Israel. “Não tenho esperança”, diz o autor de A Porta do Sol, épico da história da Palestina. (Ler mais | Read more…)

© The National

É da sua casa em Beirute que Elias Khoury nos fala de Yarmouk, na Síria. Ao telefone, a voz de fumador é rouca, sensual e por vezes imperceptível. O modo como se exprime é delicado e generoso.

O libanês que escreveu A Porta do Sol (Ed. Quetzal, Série Mediterrâneo, 2012), o único dos seus livros traduzido para português e unanimemente considerado “magnum opus da história da Palestina”, não esconde a dor que o consome.

“As notícias mais recentes que recebo do campo indicam que a situação é cada vez mais grave”, diz-me, numa entrevista, explicando que sabe o que se passa do outro lado da fronteira “através de mensagens por Facebook” que, “quando há Internet”, amigos lhe vão enviando.

Yarmouk foi criado em 1957. Até 2012, aqui viviam cerca de 180 mil refugiados palestinianos (que fugiram após a divisão da Palestina dez anos antes) e seus descendentes. “Restam menos de 10%”, esclarece Khoury.

O cerco trouxe escassez de alimentos e água; abundância de fome e doenças. Milhares de outros refugiados chegaram após a guerra israelo-árabe de 1967, e depois da invasão iraquiana do Kuwait em 1990.

Contem-se também os trabalhadores e famílias renegados pela Líbia de Khadafi em 1995, e os que foram obrigados a novo exílio na sequência da ocupação do Iraque em 2003.

Esta foto do destruído campo de refugiados palestinianos de Yarmouk , de autor anónimo, foi publicada por vários media em todo o mundo e teve mais de oito milhões de partilhas no Twitter
© United Nations Relief and Works Agency (UNRWA) | Getty Images

“Esta é uma das maiores catástrofes do povo palestiniano, a continuação da Nakba de 1948 [o êxodo que se seguiu à criação do Estado de Israel]. Os palestinianos são os judeus dos judeus, os judeus do Médio Oriente. Os Estados árabes amam a Palestina mas não os palestinianos.”

“Yarmouk não é o único campo totalmente destruído, todos os outros e várias aldeias em redor têm sido devastados pelo cerco e bombardeamentos a que são submetidos desde há dois anos pelo regime.

Os palestinianos pagam o preço mais elevado da guerra na Síria. A dinastia Assad sempre impediu que os palestinianos se defendessem a si próprios.”

“A informação que me chega de Yarmouk é a de que, desde a entrada do ISIS [“Estado Islâmico” ou Daesh] a opressão perpetua-se”, com actos bárbaros como decapitações diárias, segundo organizações de direitos humanos.

O jornal International Business Times noticiou, a 13 de Abril, que o grupo terrorista terá, entretanto, delegado o poder ao Jabhat al Nusra, ambos ligados à al-Qaeda.

“Pelo menos 15% do campo estaria sob controlo do ISIS, e o regime, por seu turno, não cessa os bombardeamentos”, disse Khoury. “Há apenas pequenos grupos de palestinianos de autodefesa mas são impotentes.”

Em Yarmouk as rivalidades eram intensas. Aparentemente, o Qatar terá facilitado a entrada dos jihadistas da Frente al-Nusra, quando o chefe militar do Hamas, Khaled Meshaal, adversário de Bashar al-Assad, se acomodou num hotel em Doha.

“A facção dominante era a [Frente de Libertação da Palestina-Comando Geral/FLP-CG] de Ahmed Jibril, mas este sempre foi um agente secreto ao serviço dos Assad, tendo até ajudado no cerco”, denunciou Khoury. “A Autoridade Palestiniana, na Cisjordânia, é ainda mais inútil em Yarmouk do que nos territórios ocupados.”

Por que é que Bashar, o filho de Hafez Assad, decidiu seguir as pisadas do pai, o anterior Presidente que, entre 1985 e 1987, usara o movimento xiita Amal, no Líbano, para destruir a OLP?

Esta “guerra dos campos” como foi designada, causou mais vítimas (quase 4000 e mais de 6500 feridos) do que os massacres de Sabra e Shatila (entre 700 e 3500), levados a cabo por milicianos cristãos durante a invasão israelita em 1982.

Crianças do campo de refugiados palestiniano de Yarmouk recolhem ajuda alimentar no bairro adjacente de Jazira, em Fevereiro de 2015
© Rami al-Sayed | AFP

“Yarmouk tem grande valor estratégico”, explicou Khoury. “Está situado nos arredores de Damasco, nas proximidades do palácio presidencial e na estrada para o aeroporto da capital. Quando começou a revolta contra a sublevação popular [em 2011], Bashar temeu que o campo pudesse vir a ser usado como centro da oposição síria, e ele não podia permitir que a rebelião alastrasse.”

Inquirido sobre o silêncio do “mundo árabe” perante o drama de Yarmouk contrastando com os ruidosos protestos contra a guerra de 2014 na Faixa de Gaza, opondo Israel ao Hamas (“mais de 2000 mortos e 10 mil feridos” – relatório da ONU), o assumido “democrata laico” e “intelectual de esquerda” argumenta:

-“Não devemos comparar uma ditadura e uma potência colonial. Ambas são horrendas. Israel mata os palestinianos como se fossem ausentes; Assad mata o seu povo, como se este fosse ausente e escravo.”

Khoury sempre enalteceu os palestinianos que “lutam para não serem vítimas das vítimas”, e admite que pondera a publicação de um novo livro a eles dedicado, que pode ou não ser uma sequela de A Porta do Sol.

Numa primeira entrevista que nos deu, em Julho de 2014, quando infantaria e carros de combate, sob as ordens de Benjamin Netanyahu, iniciavam a ofensiva terrestre em Gaza, o escritor lamentava não entender por que “os primos” – israelitas – “insistem em fazer parte da Europa que cometeu o Holocausto, o maior crime”.

Um dos seus heróis, em A Porta do Sol, é Khalil Ayub, que “faz de conta que é médico” e vai contar a história “a partir do fim” a Yunis, um herói da resistência palestiniana que ele venera como pai.

Yunis está em coma, após uma embolia cerebral, no único quarto de uma clínica conhecida como “Hospital Galileia”, no campo de refugiados de Shatila, em Beirute.

Khalil, o narrador, deixa-nos ouvir a sua dor e humor, e os relatos de vida e morte de muitos outros personagens, desde a parteira Umm Hassan até Nahila, a mulher com quem Yunis viveu clandestinamente em Bâb al-Chams (“Porta do Sol”) a gruta que representa as aldeias extintas na Galileia onde se infiltrava, com grande risco, a partir do Líbano.

Um menino palestiniano durante um protesto contra os cortes na assistência alimentar, junto aos escritórios das Nações Unidas na Cidade de Gaza (Janeiro 2018)
© Mohammed Salem | Reuters

Khoury descreveu A Porta do Sol como “uma declaração de amor aos palestinianos” porque, embora contenha grandes morticínios, são mais de 500 páginas de histórias apaixonantes, como as de Yunis e Nahila, de Khalil e Chams. Mais ainda: é um tributo às mulheres, que ocupam aqui um lugar central.

Elias Khoury nasceu em 1948 – o ano da Nakba – no sector oriental, predominantemente cristão de Beirute, no bairro de Ashrafiyyeh ou “pequena montanha”, que inspirou o seu romance Little Mountain (1977).

Na pátria, onde quase cegou durante a guerra civil de 1979-1990, licenciou-se em História e Sociologia; em Paris (Sorbonne) completou um mestrado sobre o conflito de 1840-60 entre drusos e católicos maronitas, durante a administração otomana do Líbano.

Voluntário nos campos de refugiados no Líbano, onde recolheu a maioria das histórias de A Porta do Sol, Khoury alistou-se na Fatah, de Arafat, depois da guerra de 1967. Nunca foi propriamente um feday (combatente) e sim um activista político.

Ao contrário de muitos outros cristãos, renegou os clãs-milícias de extrema-direita, como a Kataeb/Falange, durante a guerra civil, e mudou-se para Beirute Ocidental, de maioria muçulmana, alinhando com o Movimento Nacional Libanês, do druso Kamal Jumblatt, a e a OLP, de Arafat.

Acima de tudo, o romancista e dramaturgo que iniciou carreira como crítico literário foi sempre um intelectual de mérito reconhecido por figuras ilustres, como o poetas palestiniano Mahmoud Darwish (1941-2008] e sírio Adonis.

Foi colega, na secção cultural do diário An-Nahar (onde continua editor), de Samir Kassir, professor e jornalista libanês, assassinado em 2005, supostamente por ordem de Damasco. Foi também grande amigo do argentino Julio Cortázar (1914-1984), quando viveu em França.

O estilo oral e coloquial, temporal e intemporal, da escrita de Khoury foi elogiado e recomendado pelo ensaísta palestiniano Edward Saïd (1935-2003), para quem A Porta do Sol “é uma massa de paradoxos brilhante”.

Em Israel, o libanês tem três livros traduzidos para hebraico: A Porta do Sol, Yalo e White Masks. Entre os escritores israelitas, mantém “bons amigos, sobretudo os não sionistas, aqueles que defendem justiça para a Palestina”, como Shimon Ballas [judeu de origem iraquiana a residir em Paris]. Com os sionistas, como David Grossman, tem “debates profundos”.

“Se leio livros de todo o mundo, naturalmente, também leio os de israelitas”, afirmou. “A Porta do Sol foi alvo de muitas críticas, porque falo muito de massacres, e os israelitas não admitem que cometeram massacres, mas cometeram-nos.”

“O que vemos agora é uma viragem de Israel ainda mais à direita e a ascensão do extremismo religioso. Isto cega os israelitas. Não compreendem que, se a ocupação continuar, estão a ameaçar as suas vidas.”

Crianças que fugiram ou foram expulsas da Palestina durante a guerra de 1948 com Israel fazem fila para receber alimentos num campo de refugiados em Amã (Jordânia, 1955)
©Three Lions | Getty Images

“A luta dos palestinianos tem sido a de tentar reapropriar os seus nomes, existência, dignidade, liberdade”, adiantou. “Houve uma tentativa de compromisso [em 1993 – Acordos de Oslo] para um Estado independente, mas os israelitas continuaram a construir colonatos na Cisjordânia, e o Estado palestiniano tornou-se impossível.”

“Os palestinianos são vítimas das vítimas e ninguém parece disposto a ouvi-los. A Porta do Sol foi um livro importante, porque marcou uma das raras vezes – se não a única – em que a história dos palestinianos foi contada por palestinianos: a vida diária, o sofrimento, a tragédia que ainda os acompanha.”

“A mim, o que me interessa é a questão moral. Como escritor, defendo os direitos palestinianos como uma obrigação moral. Durante a ocupação nazi de França, Marguerite Duras disse que era judia, e não era. Ela assumiu essa identidade porque era a sua obrigação. Pela mesma razão, eu digo que sou palestiniano.”

Qual é o poder da língua, perguntamos? “Eu sei hebraico. É muito parecido com o árabe. O facto de tantos palestinianos falarem hebraico – cerca de 90% contra só 2% de [judeus] israelitas que falam árabe – é uma das suas grandes conquistas, porque reforça a sua cultura. Acho que, um dia, os israelitas vão perceber que o poder não é a solução.”

“Quando entenderem isso precisarão de falar com os outros, compreender a tragédia dos outros, pedir desculpa pelos crimes que cometidos. Infelizmente, esse momento que pensámos ser possível no final do século XX foi apenas uma miragem, não uma verdadeira oportunidade. Temos de continuar a lutar por ela.”

E qual o poder da literatura e dos escritores? “O mais importante é a tradução. Os palestinianos traduzem muito da cultura israelita, mas os israelitas não. E isto é uma fraqueza. Se os israelitas não traduzem ‘o outro’, então, não o podem compreender e não se compreendem também a si próprios. ‘O outro’ é sempre o nosso espelho.”

Qual é o conselho de Khoury? “Podemos enganar a História durante um século, dois séculos, mas não podemos enganar a História para sempre. Nesta região, as catástrofes estão relacionadas com religiões e nacionalismos.”

“Os ‘deuses’ não morrem mas nós, seres humanos, morremos. Temos de acabar com esta estupidez de que a terra é prometida e santa. A única coisa sagrada é o ser humano. Tudo o resto não tem sentido.”

“Escrever, para mim, é uma combinação de memória e imaginação”, frisou. “A Porta do Sol é isso. O mais importante não é o escritor mas os seus personagens e heróis. Se escrevermos um livro maravilhoso as pessoas irão lembrar-se.”

“No caso de A Porta do Sol, as pessoas vão lembrar-se de Khalil, de Nahila, de Chahina… Ninguém vai ligar a Elias Khoury, figura secundária. As personagens vivem com os leitores. Os seus destinos perduram no tempo.”

“Os escritores morrem como todos os seres humanos. Sabemos mais sobre Hamlet do que sobre Shakespeare. Os escritores são apenas servos das palavras.”

Khoury tem sido várias vezes apontado como candidato ao Nobel da Literatura – até agora atribuído a um único árabe, o egípcio Naguib Mahfouz (1911-2006), em 1998. O libanês desvaloriza: “Isso não tem qualquer importância para mim.”

© arabicfiction.org

Este artigo, aqui na versão integral, foi originalmente publicado no jornal EXPRESSO em 9 de Maio de 2015| This article, here in the expanded version, was originally published in the Portuguese weekly newspaper EXPRESSO, on May 9, 2015.

3 thoughts on “Elias Khoury, a Nakba, Yarmouk e a porta do inferno

Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.