Os palestinianos de Israel fizeram história

A Lista Conjunta, que uniu quatro partidos árabes sob a liderança do advogado Ayman Odeh, tornou-se a terceira força política no Knesset. O palestiniano Rami Younis e a judia mizrahi Revital Madar explicam por que votaram numa aliança não sionista considerada “revolucionária”. (Ler mais | Read mo(re..)

Abdullah Talash, 74 anos, palestiniano de cidadania israelita escolhe um boletim de voto numa assembleia a aldeia de Umm Al-Fahm, no norte de Israel
© Muhammad Muheissen | AP

Residente na cidade a que chama Lyd, mas que retomou o nome bíblico de Lod após a criação de Israel, o palestiniano Rami Younis boicotava todas as eleições. Este ano, decidiu votar na Lista Conjunta – que se tornou a terceira força política no Parlamento –, mas mantém a convicção de que este Parlamento “representa tudo menos uma verdadeira democracia”.

“Votei, desta vez, apesar de a Lista Conjunta entrar no Knesset e não porque terá uma bancada parlamentar”, explicou o escritor e activista Younis, numa entrevista, por email.

“O discurso do boicote é importante, mas não oferece quaisquer alternativas de momento. Precisa de ser mais trabalhado. A nossa unidade é um passo na direcção certa.”

“Primeiro, mostramos que somos capazes de nos unir. Depois de termos a certeza de que atingimos um nível elevado de consciência política, podemos começar a pensar em outras alternativas de representação.”

A Lista Conjunta é uma espécie de “feitiço que se virou contra o feiticeiro”. Foi a resposta a uma provocação do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, o imigrante moldavo Avigdor Lieberman, que fez aprovar uma lei alterando o limiar de votos necessário para entrar no Knesset (de 2 para 3,25% dos votos), esperando excluir os palestinianos de cidadania israelita – 20% da população.

Todavia, num gesto sem precedentes, os principais partidos árabes (Balad, Ra’am, Ta’aal e Hadash) que sempre se mostraram divididos formaram uma aliança e conquistaram 13 lugares no Parlamento: resultado descrito como “histórico” e “revolucionário”.

Lieberman iria ainda mais longe no seu racismo quando sugeriu que os palestinianos de Israel “que não forem leais ao Estado deveriam ser decapitados”.

Ayman Odeh, o líder da Lista Conjunta, numa foto, com a mulher e os três filhos, partilhada na sua conta de Twitter © @Ayman_Odeh_TJL

Ayman Odeh, o líder da Lista Conjunta, numa foto, com a mulher e os três filhos, partilhada na sua conta de Twitter
© @Ayman_Odeh_TJL

O homem que conseguiu a proeza de união é um advogado de 40 anos, Ayman Odeh, dirigente do Hadash, a quem Lisa Goldman, directora da Iniciativa Israel-Palestina da New American Foundation, chamou “o mais estimulante líder árabe no Médio Oriente.”

Foi ele que conseguiu superar as divergências entre facções nacionalistas seculares, comunistas e islamistas, apresentando um programa centrado na defesa da igualdade e direitos sócio-económicos dos palestinianos de Israel, mais do que nas reivindicações dos palestinianos sob ocupação.

“Esta aliança é natural contra o fascismo e o sionismo”, disse Rami Younis, 30 anos, amigo do famoso rapper Tamer Nafer, dos DAM, que fez um vídeo, com o refrão “Nunca votei na vida – até agora”, para encorajar uma nova geração rebelde.

“Os palestinianos são perseguidos e espancados nas ruas de Israel. Há massacres em Gaza e dezenas de detenções diárias na Cisjordânia. O povo palestiniano está finalmente unido contra um inimigo feroz. Bem, pelo menos uma parte de nós.”

A aliança do muçulmano Ayman Odeh, que é agora, pela primeira vez na história do Estado de Israel um dos principais líderes da oposição, só atraiu “cerca de 2000” eleitores judeus, lamenta Younis.

“Creio que é ainda um sonho longínquo uma verdadeira coligação de judeus e árabes em luta pela justiça e a igualdade genuínas.”

© Rami Younis

© Rami Younis

Um dos judeus que votaram na Lista Conjunta foi Revital Madar, 32 anos, formada em Filosofia e colunista do suplemento cultural do jornal Ha’aretz. Filha de pais provenientes da Tunísia, ela pertence a um grupo que se considera também discriminado, os Mizrahim (judeus oriundos do Médio Oriente].

Sobre o seu voto, diz-me, por e-mail: “Não sei se a Lista Conjunta ‘mudou a face da história israelita’ [como escreveu o blogue +972], já que isso depende da capacidade de intervenção no Knesset. No entanto, criou uma grande mudança no discurso político e fez com que muitos [judeus] israelitas se apercebessem de que há um grande grupo de palestinianos em Israel e que estes se tornaram uma força importante.”

“A influência da Lista Conjunta [se Netanyahu não ganhasse] poderia ser exercida em comissões parlamentares como a das Finanças, impedindo que os dinheiros públicos sejam desviados para os colonatos em vez de investidos em habitação social.”

“Temos de nos lembrar que a sociedade palestiniana – tal como os Mizrahim em Israel – são os mais afectados pela pobreza, por isso muita da legislação que tem sido apresentada – mas não aprovada – pelos deputados árabes é de cariz social.”

Revital Madar escolheu a Lista Conjunta por considerar que o trabalhista Isaac Herzog não era uma alternativa. “O seu partido é sionista e o seu discurso durante a campanha eleitoral, não foi muito diferente do de Netanyahu.”

Ela lamenta a exclusiva e contínua hegemonia dos Askhenazim [judeus de origem europeia] nos centros de poder, ainda que a segunda e terceira gerações de Mizrahim já não sejam isolados como os seus antepassados em campos de trânsito (Ma’abarot) onde, à chegada, eram pulverizados com desinfectante para “purificar o seu Judaísmo”.

© Ravital Madar

© Ravital Madar

“Não queria contar histórias pessoais, mas basta ver que nunca houve um primeiro-ministro Mizrahi e que todos os postos elevados em Israel, nos tribunais, no Governo, na academia, são ocupados por Ashkenazim. E mesmo que mizrahi seja escolhido jamais será apresentados como tal a nível político. Precisamos de lutar por tudo se quisermos sair da estrada que pavimentaram para nós.”

Rami Younis, por seu turno, considerou lastimável que os Mizrahim mesmo os que não se consideram sionistas, tenham votado principalmente no [partido ultra-ortodoxo] Shas ou no Likud. “É uma vergonha. Basicamente, eles votaram em quem os mantém pobres.”

“A maioria dos israelitas é motivada pelo medo incutido nas suas mentes, sobretudo pelos sionistas da direita. Netanyahu foi uma vez mais capaz de canalizar em votos – e em muitos – o medo que ele instila.”

Há receios de que o ressurgimento de divisões possa conduzir ao colapso da Lista Conjunta mas Younis não está preocupado. “Não me interessava o número de deputados. Votei para demonstrar o meu apoio e impedir que leis fascistas sejam aprovadas. Também nós [palestinianos de Israel] estamos sob ocupação, uma ocupação que se prolonga desde 1948.”

“Não somos cidadãos iguais e sentimo-nos um alvo depois de as nossas famílias terem sofrido horrores com a Nakba [a primeira guerra Israelo–árabe e subsequente êxodo palestiniano]. Muitos de nós sabem que a Nakba nunca acabou.”

“É um processo que ainda dura e se arrasta lentamente. A Polícia dispara sobre nós nas ruas. O Governo destrói frequentemente as nossas casas e somos mantidos na pobreza. Não é por ter 14, 15 ou até 20 lugares num parlamento israelita de apartheid que a situação mudará.”

Uma foto de Benjamin Netanyahu misturada com panfletos eleitorais no chão da sede do Likud , em Telavive, depois da festa da vitória do partido, em18 de Março de 2015 © Amir Cohen | Reuters

Uma foto de Benjamin Netanyahu misturada com panfletos eleitorais no chão da sede do Likud , em Telavive, depois da festa da vitória do partido, em18 de Março de 2015
© Amir Cohen | Reuters

A vitória de “Bibi” e o fim da ocupação

Na segunda-feira, 16 de Março, Benjamin Netanyahu deixou bem claro que põe em prática o que o antigo ministro israelita da Defesa Moshe Dayan (1915-1981) disse um dia: “Os americanos dão-nos dinheiro e conselhos; nós ficamos com o dinheiro e ignoramos os conselhos”. Se reeleito, prometeu “Bibi”, não haverá criação de um Estado palestiniano.

“Penso que quem quer que tente estabelecer um Estado palestiniano e evacuar território [ocupado na Cisjordânia e Jerusalém Leste] está a ceder terreno a ataques de radicais islamistas contra Israel”, disse Netanyahu ao website NRG, de que é proprietário o seu maior financiador, o magnata judeu americano Sheldon Adelson. “A esquerda tem enterrado na cabeça na areia e há anos que ignora isto, mas nós compreendemos e somos realistas.”

Durante a entrevista, em campanha eleitoral e quando as sondagens atribuíam vantagem à União Sionista de Isaac Herzog e Tzipi Livni, Netanyahu acusou esta aliança de “se comprometer demasiado com as exigências da comunidade internacional” e de “cooperar com aqueles que pretendem o regresso de Israel às fronteiras de 1967”.

No próprio dia das eleições, um Netanyahu ainda mais nervoso escreveu na sua página de Facebook: “Os árabes [referência à Lista Conjunta] acorrem em massa às urnas. (…) Despertem, levem os vossos amigos e família, e votem no Likud para impedir o avanço da esquerda.”

As palavras de “Bibi”, perito em instilar medo num eleitorado para quem a segurança é o bem mais valioso, ofereceram-lhe uma vitória na qual ele próprio já não acreditava: 30 lugares no Knesset e um amplo leque de potenciais parceiros de coligação.

Hebron, na Cisjordânia ocupada por Israel: Crianças observam e são observadas por um soldado na cidade onde só os judeus têm liberdade de movimentos. Durante a campanha eleitoral, Netanyahu prometeu que, so a sua liderança, Israel jamais permitirá a criação de um Estado aos palestiniano. © Lior Mizrahi |Getty Images

Hebron, na Cisjordânia ocupada por Israel: Crianças observam e são observadas por um soldado na cidade onde só os colonos judeus têm liberdade de movimentos. Durante a campanha eleitoral, Netanyahu prometeu que jamais permitirá a criação de um Estado palestiniano
© Lior Mizrahi | Getty Images

Este cenário, que conduzirá, segundo alguns analistas, ao “governo de direita mais extremista de Israel”, terá causado calafrios na Casa Branca, em Washington, e em países europeus, sobretudo a Alemanha. A porta-voz do Departamento de Estado Jen Psaki admitiu que a Administração Obama (que Netanyahu tem abertamente hostilizado) “admite a possibilidade de uma mudança de posições [menos vetos] na ONU”.

Nem todos os palestinianos, sob ocupação ou no exílio, ficaram chocados e muitos até regozijaram pelo facto de, finalmente, Netanyahu ter posto fim à sua ambiguidade num “processo de paz” errático e moribundo.

Num artigo de opinião, publicado pelo New York Times (Netanyahu’s win is good for Palestine | “A vitória de Netanyahu é boa para a Palestina”), o escritor e analista político Yousef Munayyer, director executivo da campanha End the Israeli Occupation, mostrou-se optimista de que “Netanyahu ao leme irá acelerar o fim das políticas de apartheid de Israel”.

Em seu entender, os “maiores derrotados” foram os que acreditaram que “a mudança viria de dentro de Israel – não pode vir e não virá.” Porque os israelitas se sentem “muito confortáveis com o statu quo”. Porque num país que mantém milhões de pessoas sob ocupação – serão cinco décadas em 2017 –, “os maiores escândalos não são os colonatos, a morte de civis ou os crimes de ódio, mas coisas mundanas como o preço do queijo”.

Para Munayyer, “a única esperança de mudar a política israelita está em elevar o preço da ocupação.” E explica: “As sanções contra a África do Sul nos anos 1980 aumentaram o seu isolamento internacional e forçaram o regime de apartheid a negociar.”

“Quando os israelitas forem obrigados a decidir entre uma ocupação perpétua e serem aceites pela comunidade internacional, talvez elejam um líder mais moderado” que adopte um novo modelo de “direitos em troca de paz”.

Munayyer e outros palestinianos anseiam por um reforço do movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), por um papel mais activo na ONU, pelo fim da cooperação de segurança com o Exército e pela instauração de processos por crimes de guerra contra Israel no Tribunal Criminal Internacional.

Se isto fará ceder Netanyahu é difícil de antever, mas poderá constituir o fim da ineficaz Autoridade Palestiniana (AP).

Assembleia de voto em Kafir Qasim, uma aldeia palestiniana, na “linha verde” que separa Israel da Cisjordânia ocupada
© Amir Levy | Getty Images | NPR

Estes artigos, aqui na íntegra, foram publicados originalmente no jornal EXPRESSO em 21 de Março de 2015 | These articles, here in the expanded version, were originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on March 21, 2015.

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