É provável que o número de ateus no Egipto possa ter ultrapassado o de cristãos. E que na Arábia Saudita eles sejam “a maior minoria”. Como explicar este fenómeno? Entrevistas com Khaled Diab e Brian Whitaker, autores de um ensaio e um livro sobre “os árabes sem deus”. (Ler mais | Read more…)

O Corão, livro sagrado dos muçulmanos, está reflectido nos óculos de um crente, em Amã, na Jordânia. Um interesse crescente por obras não religiosas, de autores como Sartre e Camus, tem contribuído para que muitos, no Médio Oriente, questionem velhas crenças, tornando-se agnósticos ou ateus. E não é um fenómeno exclusivo de países árabes, onde predomina a ortodoxia sunita, mas sobretudo no Irão, maioritariamente persa e xiita
© Mohammad Hannon | AP
As dúvidas de fé começaram quando ainda era miúdo. Diziam-lhe que se dissipariam com o tempo, mas apenas se multiplicaram. Durante anos, escapou a alguns dos dilemas descrevendo-se, em termos vagos, como muçulmano “laico, não praticante ou progressista”.
Chegou, porém, uma altura em que as tácticas de estar sempre a protelar se tornaram vãs. O egípcio-belga Khaled Diab decidiu enfrentar a verdade: “Eu já não acreditava no Islão nem em qualquer outra religião.”
“É muito difícil dizer se o número de ateus está a aumentar no Médio Oriente, porque não há estatísticas fiáveis a este respeito e porque os Estados árabes exigem que os cidadãos se registem como membros de uma comunidade religiosa, geralmente das tradições abraâmicas”, diz Diab, em entrevista por e-mail.
“No que diz respeito ao Egipto, as estimativas variam entre o número governamental ridículo de ‘exactamente 866 ateus’ até 10 a 15% da população. Ou seja: poderá haver no país quase tantos ateus como cristãos.”
[Os ” 866″ ateus, ou 0,001% da população, foram calculados por uma instituição oficial, Dar al-Ifta, que acompanha as tendências religiosas no Egipto. Aparentemente, segundo notou o site da “Deutsche Welle“, “nenhum outro país no mundo árabe tem tanta gente sem deus” Em segundo lugar estará Marrocos, com “uns 325”. Acrescenta a dw.de que os números da Dar al-Ifta contradizem em muito uma sondagem conduzida em 2014 pela Universidade de al-Azhar, no Cairo, considerada bastião do Islão sunita ainda que tinha construída por uma dinastia xiita (os Fatimitas). Tendo inquirido 6.000 jovens, o resultado foi de 12,3% de ateus – ou seja “10,7 milhões dos of 87 milhões de egípcios.]
Jornalista que, em 2014, ganhou o prestigiado prémio de imprensa da Fundação Anna Lindh, pelo seu artigo Without a God (“Sem Um Deus”), publicado pela revista libanesa The Outpost [e republicado no seu blogue The Chronikler], Khaled Diab vive actualmente em Jerusalém, dividindo o tempo entre o Médio Oriente e a Europa.
Foi difícil assumir-se como ateu numa região onde apostasia equivale a morte? “Nunca tive medo, mas sentia-me ansioso e apreensivo quanto às reacções que poderia gerar, sobretudo de familiares e amigos”, admitiu.
“Os primeiros a saberem foram os amigos, que me apoiaram, mesmo não partilhando as minhas convicções. Tal como acontece com os homossexuais que ainda ‘não saíram do armário’, havia familiares a par da minha descrença, sobretudo a minha mãe. Alguns tentaram persuadir-me a voltar à religião, mas todos têm a certeza de que não me transformei numa pessoa má.”

A cruz e o crescente, símbolos do Cristianismo e do Islão, são erguidos por um manifestante no exterior de uma academia de polícia, no Cairo, onde foi julgado o anterior Presidente Mohamed Morsi (afastado pelo Exército). A ascensão da Irmandade Muçulmana à chefia do Estado e o poder dos militares cada vez mais absoluto têm levado muitos egípcios a abandonar a religião
© Reuters
Ao escrever, há alguns anos, o primeiro artigo sobre o seu “ateísmo/agnosticismo”, no diário britânico The Guardian, Diab ficou surpreendido com as inúmeras reacções positivas. Em 2013, deu “o passo psicologicamente significativo” de se identificar como ateu num jornal árabe, o Daily News Egypt.
Apesar do “título provocador”, Confissões de um infiel egípcio, este artigo foi dos mais lidos e aplaudidos. “Talvez ajude o facto de escrever em inglês, língua que não preocupa os regimes, mas há, definitivamente, uma mudança de atitudes.”
Uma das “revelações” mais extraordinárias, para Khaled Diab, é “a larga minoria de ateus no berço do Islão – a Arábia Saudita”. Esta “aparente realidade” levou o governo fundamentalista do reino a classificar os ateus de terroristas, “o que é totalmente surreal”.
[Em 2012, uma sondagem Gallup revelou que “a proporção de ateus na Arábia Saudita é semelhante nos Estados Unidos e na Europa”. Esses ateus receiam cada vez menos expor-se, sobretudo nas redes sociais, em contas anónimas. A profanação do Corão, que tem sido defendida no Tweeter, com a hashtag #CampaigntoTearTheQuraninSaudiArabia (“Campanha para destruir o Corão na Arábia Saudita), é considera uma blasfémia punível com a morte.]
“O ateísmo numa geração mais nova pode ser, em parte, uma resposta às ideias reacionárias de muitos teólogos muçulmanos, especialmente na Arábia Saudita”, diz-nos, por seu turno, Brian Whitaker, autor de Arabs Without God, obra de grande erudição.
“Um outro factor é o das sublevações populares contra ditaduras: as pessoas tornaram-se destemidas e questionam mais. Ao questionar um sistema político também se questiona a religião – porque ambos estão estreitamente interligados no Médio Oriente.
É claro que, simultaneamente, há muitos para quem a solução é mais e não menos religião. A actividade ateísta na Internet ainda é mínima, se comparada com a vasta quantidade de material religioso que é colocado em árabe.”
“Houve um período, a partir dos anos 1970, e que durou cerca de quatro décadas, quando os árabes ateus eram quase totalmente invisíveis – sendo a razão principal uma crescente religiosidade e a ascensão de movimentos islamistas”, explicou Whitaker, repórter britânico cujo blogue, al-bab.com, é uma das mais importantes fontes de informação regionais.
“Recentemente, os árabes ateus tornaram-se mais visíveis devido às redes sociais. A Internet deu-lhes voz. Há imensos grupos no Facebook – alguns públicos, outros fechados – e há os que partilham no YouTube vídeos dos seus debates.”
“Os media árabes tradicionais também fazem mais referências ao ateísmo, mas consideram-no ‘problema social, tal como a toxicodependência e a homossexualidade’, que necessita de atenção dos governos.”

Uma jovem de 23 anos que se identifica como @Hafsa é uma das que mais usam, no Tweeter, a hashtag #CampaigntoTearTheQuraninSaudiArabia (“Campanha para rasgar o Corão na Arábia Saudita). A primeira vez que foi usada, teve mais de 7800 partilhas numa só semana. No cartaz lê-se: Pelo menos a minha mente é livre. Orgulho em ser ateia!
© vocativ.com
“As sociedades árabes são profundamente religiosas no sentido de que a religião é parte integral da esfera pública”, adiantou Khaled Diab.
“Neste contexto, admitir abertamente cepticismo ou descrença envolve riscos. Até nas sociedades árabes mais seculares os ateus são ostracizados ou desonrados pelas famílias se assumem [o seu ateísmo] publicamente. Alguns preferem, pois, manter-se na sombra para evitar perseguições.”
Brian Whitaker elogiou os que se declaram publicamente como ateus: “É um acto de bravura! Obviamente, cabe a cada indivíduo decidir e ninguém – seja ateu ou gay – deve sentir-se obrigado a uma exposição pública se não quiser. Dito isto, só quando números substantivos se assumirem é que os seus direitos começarão a ser reconhecidos.”
“No caso dos árabes ateus, ser preso ou não depende de alguns factores: quem são eles, o que dizem, como dizem, quem repara e quem se queixa”, explicou Whitaker. “Os julgamentos por blasfémia não envolvem ateus, na maioria dos casos, mas outras pessoas que disseram ou fizeram algo que acidentalmente ofendeu alguém, ou são vítimas de processos políticos.”
É o ateísmo exclusivo da geração mais nova e das classes média-alta? “Isso é um mito”, assegurou Khaled Diab. “Há ateus de todas as classes sociais, idades e género. As diferenças relacionam-se com as barreiras que se erguem contra os que querem assumir as suas ideias e o estigma social variável a elas associado.”
Brian Whitaker confirmou: “Os activistas ateus são, aparentemente, pessoas cultas, nos seus 20 anos, mas também há uma geração mais velha, talvez influenciada por ideias marxistas e de esquerda.”

Há milhões de ateus por todo o Médio Oriente, incluindo na Arábia Saudita e no Irão, países profundamente religiosos. Este artigo mostra como ateus e agnósticos estão a mudar o modo como muitos olham para a religião
© psmag.com
Em Arabs Without God, há um argumento interessante segundo qual enquanto os ateus ocidentais estão mais envolvidos num debate “ciência versus religião”, os árabes ateus tendem a centrar-se mais na “aparente injustiça divina”.
Khaled Diab concorda, com reservas. “A diferença mais importante não está na natureza do debate mas no facto de os árabes ateus terem de tomar a decisão consciente de abandonar a fé, ficando em contracorrente face à sociedade.”
“No Ocidente, a religião pertence, para muitos, ao foro privado e é até irrelevante. A ciência tem sido mais importante no Ocidente, embora eu conheça árabes ateus que abandonaram a religião devido à sua inconsistência científica e racional, e não por ser injusta.”
Brian Whitaker discordou: “Passei imenso tempo a tentar perceber por que é que alguns árabes se tornaram ateus. Muitos descreveram um afastamento gradual, e não uma súbita conversão ao ateísmo. A centelha era, quase sempre, determinado aspecto ilógico ou contraditório dos ensinamentos religiosos.”
“O que mais os incomodava é a imagem de uma divindade por vezes irascível e irracional que se comporta como os ditadores árabes – uma figura antropomórfica que toma decisões arbitrárias e parece ansiosa em castigar as pessoas à mínima oportunidade.”
Os “avisos assustadores repetidos no Corão” do que pode acontecer aos não crentes deixa cicatrizes profundas na infância. Na escola, Ahmed Saeed, um iemenita que Whitaker ouviu para a sua investigação, perguntou aos professores por que haveria Deus de castigar as pessoas só por não acreditarem nele.
As respostas desagradaram-lhe: “Diziam-me apenas que não podíamos questionar as palavras de Deus”. Saeed deduziu: “Se não tivesse nascido no Iémen ou noutro país do Médio Oriente, não seria muçulmano. Se tivesse nascido na Índia, haveria grande probabilidade de estar agora a adorar uma vaca. Ser educado como muçulmano não é escolha mas demografia da natalidade.”
Deus já não tem página no Facebook

O palestiniano Waleed al-Husseini, blogger “orgulhosamente ateu” , foi preso, torturado e forçado ao exílio, em França, por ter criado uma página de Facebook a que deu o nome de “Eu Sou Deus”
© laregledujeu.org
São ainda poucos os que se assumem publicamente como ateus no Médio Oriente, mas na sua investigação para o livro Arabs Without God, o jornalista Brian Whitaker encontrou histórias de grande coragem. Uma delas é a de Waleed al-Husseini, protagonista no primeiro capítulo.
Natural de Qalqilya, na Cisjordânia ocupada por Israel, Husseini, 25 anos, “decidiu que Deus deveria ter uma página no Facebook” [a exemplo desta, que se mantém activa]. Criou uma e chamou-lhe Ana Allah (“Eu Sou Deus”).
O jovem palestiniano anunciou também que “Deus passaria a comunicar directamente com o povo” através da rede criada por Zuckerberg porque, “apesar de há vários séculos ter enviado vários profetas, ainda não conseguira fazer passar a sua mensagem”.
Entre as instruções divinas que Husseini colocou no FB, uma delas, escrita no estilo dos versículos corânicos, proibia os fiéis de “misturarem whisky com Pepsi”. Deviam fazê-lo apenas com água.
A Autoridade Nacional Palestiniana não achou graça à paródia do informático desempregado desde que concluíra a universidade. Um dia, estava Husseini num café com amigos quando chegou a polícia secreta e o prendeu.
Passou dez meses numa cela, uma parte do tempo em isolamento. Agora, vive exilado em França, separado de familiares e amigos. Publicou um livro, Blasphémateur! Les prisons D’Allah, onde detalha a tortura a que foi submetido e outras condições humilhantes do seu cativeiro.
Estes dois artigos, agora actualizados, foram publicados originalmente na revista VISÃO em 5 de Fevereiro de 2015 | These two articles, now updated, were originally published in the Portuguese news magazine VISÃO, on February 5, 2015
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