O Papa Francisco renova a influência política do Vaticano no Médio Oriente ao juntar, num jardim da Santa Sé, os presidentes de Israel e da Palestina.(Ler mais | Read More)

O palestiniano Mahmoud Abbas, o israelita Shimon Peres e o Papa Francisco, na reunião de oração nos jardins do Vaticano
© ANSA
Dois ateus – o judeu Shimon Peres e o muçulmano Mahmoud Abbas – encontram-se [a 8 de Junho de 2014] com o chefe da Igreja Católica Romana, Papa Francisco, numa oração colectiva. Não é uma tentativa de mediação do conflito israelo-palestiniano, garantiu o porta-voz da Santa Sé, mas todos os analistas reconhecem o peso político desta prece no Domingo de Pentecostes.
O convite para a reunião inter-religiosa (que incluirá também a presença do patriarca ortodoxo de Constantinopla, Bartolomeu I, e de líderes espirituais da comunidade drusa) foi endereçado aos dois presidentes durante a primeira, e histórica, visita do Papa à Terra Santa, de 24 a 26 de Maio.
Francisco voltou a surpreender e marcar a diferença ao começar a viagem, de carácter oficial, no Reino da Jordânia, de onde partiu, de helicóptero, para Belém, na Cisjordânia ocupada.
As duas anteriores visitas papais começaram em Telavive; por isso, este gesto simbólico de dar a primazia a Mahmoud Abbas não passou despercebido.
“O facto de ele ter vindo da Jordânia directamente para Belém, sem passar por Israel, foi um reconhecimento tácito do Estado da Palestina”, disse ao diário britânico The Guardian a cristã Hanan Ashrawi, influente figura política palestiniana.
“Estado da Palestina” foi, aliás, uma expressão que o sucessor de Bento XVI usou, por diversas vezes, não apenas em Belém, cidade-berço do Cristianismo, onde foi acolhido por milhares de fiéis, vindos de vários países do Médio Oriente, mas também durante a sua passagem por território israelita. Esta incluiu igualmente paragens emblemáticas: o memorial às vítimas de terrorismo no Monte Herzl e o Museu do Holocausto de Yad Vashem.

O Papa Francisco, num momento de oração espontânea, junto ao muro – “de separação”, para uns, “do aparthteid” para outros – que separa Belém, na Cisjordânia, de Jerusalém
© The Guardian
A simpatia que o Papa demonstrou para com os palestinianos não foi ignorada pelo lado israelita, que tentou retirar qualquer carga política aos seus gestos. Um dos mais extraordinários foi uma paragem espontânea junto ao que uns chamam de “barreira de separação” e outros condenam como “muro do apartheid”.
Junto ao campo de refugiados de Dheisheh, rodeado de crianças sorridentes e guarda-costas israelitas melindrados com a reduzida protecção pedida pelo antigo cardeal argentino Bergoglio, este encostou a sua cabeça a uma parte do cimento armado, numa súplica silenciosa.
À sombra de uma torre de vigia militar israelita, os grafitti que alguém pintou foram também um rogo: “Papa, Belém é o gueto de Varsóvia. Papa, queremos justiça. Palestina Livre.”
E “justiça” foi o que mais impressionou o influente comentador Peter Beinart, judeu de dupla nacionalidade, americana e israelita. Na sua coluna semanal no diário Ha’aretz, escreveu ele: “O Papa Francisco pediu a Israel e aos palestinianos que procurassem ‘uma paz estável baseada na justiça, no reconhecimento dos direitos de cada indivíduo e na segurança mútua’. Tive de ler esta declaração duas vezes. ‘Uma paz estável’ é suficientemente familiar. O que me intrigou foi a palavra ‘justiça’.”
“É um termo que os políticos americanos e judeus raramente aplicam ao conflito israelo-palestiniano”, adiantou Beinart. “‘Paz’, segundo o Dicionário Merriam-Webster significa apenas ‘a ausência de guerra ou de conflito’ Não diz nada sobre as razões da ‘ausência de guerra ou de conflito’.”
“[O escritor] David Grossman quer acabar com “a guerra ou o conflito” entre o rio [Jordão] e o mar [Mediterrâneo] ajudando os Palestinianos a concretizar as suas aspirações de um Estado. [O ministro da Economia e líder da extrema-direita] Naftali Bennett, pelo contrário, quer acabar com a ‘guerra ou conflito’ forçando os Palestinianos a abandonar essas aspirações.”
“Se falarmos apenas de ‘paz’ e nunca de ‘justiça’, não temos de escolher entre as visões de Grossman e as de Bennett; é isso que têm feito muitos membros do Congresso e líderes judeus na América”, acrescentou Beinart, frustrado com o fracasso de quase um ano de esforços de mediação do chefe da diplomacia de Washington, John Kerry.

Meninas palestinianas passam por um mural com a cara do Papa Francisco no campo beduíno de Jabal al-Baba, próximo do colonato de M’ale Adumim, na Cisjordânia ocupada, nos arredores de Jerusalém, em 23 de Novembro de 2017
© Ahmad Gharabli | AFP
Uma solução de dois Estados, que moderados israelitas, como o político (ex-trabalhista) Avraham Burg, e palestinianos, como o filósofo Sari Nusseibeh, já consideram impossível, foi repetidamente defendida pelo Papa.
Francisco está preocupado com os cristãos do Médio Oriente: constituem apenas 2% na terra que viu nascer Jesus. Em 1948, quando foi criado Israel, ascendiam a cerca de 10%. Em Belém, representam agora um terço da população, mas já totalizaram 75%.
A preocupação papal (que João Paulo II, em 2000, e Bento XVI, em 2009, também já tinham manifestado) ficou expressa nas refeições partilhadas com várias famílias palestinianas no campo de Dheisheh. O Papa comoveu-se com o relato de dramas quotidianos, consequência do mais antigo projecto colonial – a ocupação israelita que dura desde a guerra de 1967.
O encontro de oração do Papa com Peres e Abbas tem lugar num jardim, para respeitar o preceito judaico de não rezar em templos com símbolos religiosos.
No regresso de Telavive a Roma, Francisco, que já havia realçado o “direito de existência de Israel em fronteiras reconhecidas internacionalmente” e “o direito de os palestinianos terem um Estado soberano”, afirmou que “seria uma loucura” da sua parte querer servir de intermediário político.
“É preciso muita coragem e eu rezo ao Senhor para que estes dois líderes, estes dois governos, tenham a coragem de avançar. É o único caminho para a paz.”
Ninguém minimiza o potencial político deste encontro, que poderá revitalizar a influência do Vaticano no Médio Oriente, mas poucos acreditam em milagres.
Durante a mediação de John Kerry, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu (rival de Peres) fez tudo para afrontar os aliados na Casa Branca, expandindo sem vergonha a rede de colonatos que transforma os territórios ocupados em guetos.
Terá sido, desta vez, uma espécie de vingança pelo acordo entre os desavindos Fatah (que governa a Cisjordânia) e Hamas (que administrava a Faixa de Gaza) para formar um Governo de unidade nacional.

Uma rajada de vento fez subir o manto do Papa Francisco tapando-lhe o rosto quando ele visitava, na companhia do rabi Shmuel Rabinovitch, o Muro Ocidental (ou das Lamentações), em Jerusalém, considerado um dos lugares mais sagrados do Judaísmo
© Associated Press (AP)
Peres, que nem sequer acredita em Deus, terminará o seu mandato em Julho próximo. [O sucessor, eleito a 10 de Junho de 2014, foi Reuven “Ruby” Rivlin, membro do Partido Likud, de direita, opositor de um Estado palestiniano mas defensor de direitos iguais para os dois povos]. Mas quem sabe? Ninguém imaginava que o argentino Francisco fosse capaz de enfrentar a poderosa Cúria Romana para a reformar, e é isso que ele tem estado a fazer.
Passagens da Torá, do Novo Testamento e do Alcorão serão lidas no Domingo de Pentecostes, uma data importante para os cristãos. Conta o livro dos Actos dos Apóstolos:
Quando chegou o dia do Pentecostes, encontravam-se todos reunidos no mesmo lugar. De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde eles se encontravam.
Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas […]
Ora, residiam em Jerusalém judeus piedosos provenientes de todas as nações […] a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua.
Atónitos e maravilhados, diziam: ‘Mas esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa, então, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? Partos, Medos, Elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia Cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, Cretenses e Árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!” [Actos dos Apóstolos 2, 1-11)]
Talvez o Papa Francisco acredite que só o Espírito Santo conseguirá que os seus convidados se entendam falando uma mesma língua.

Francisco, Mahmoud Abbas, Shimon Peres e Bartolomeu I plantam uma oliveira, durante a oração pela paz, nos jardins do Vaticano, em 8 de Junho de 2014
© Franco Origlia | Getty Images
Este artigo, agora com um título diferente e actualizado, foi publicado originalmente no blogue Religionline a 7 de Junho de 2014 | This article, now updated and under a different headline, was originally posted on the Portuguese website Religionline, June 7, 2014