De Goa para Caxemira: Pessoa e Saramago na biblioteca de um analfabeto

O indiano Latif Oata vive em permanente desassossego, tentando curar a cegueira da família, que lhe exige a venda a colectores de lixo de mais de 500 obras que ele não sabe ler, mas guarda como um tesouro. O primeiro emprego ensinou-o a “remar contra ventos e marés”. O primeiro livro inspirou-o a seguir “uma luz na escuridão”.  (Ler mais | Read more…)

© Cortesia de Majid Maqbool | Courtesy of Majid Maqbool

© Cortesia de Majid Maqbool | Courtesy of Majid Maqbool

Na loja de artesanato que alugara a um antigo patrão, em Goa, território indiano administrado pelos Portugueses durante 450 anos, Latif Oata recebeu, “por volta de 1990”, o seu primeiro livro.

Da autoria de um compatriota e oferta de uma turista britânica, cujos nomes não recorda, tem como heroína uma jovem pobre que transverte a seu favor um destino trágico.

Também não fixou o título, mas memorizou a história, quase autobiográfica. Pediu que lhe fosse contada. Não sabe ler nem escrever. E assim começou a Biblioteca do Viajante.

A colecção de Latif tem agora “uns 500 a 600 livros”, entre os quais dois de escritores portugueses: Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, e Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa/Bernardo Soares, nas versões em inglês (Blindness e The Book of Disquiet, respectivamente).

“Só os folheei, mas sei que um deles é de um Prémio Nobel [da Literatura 1998, Saramago]”, diz-nos Latif, numa entrevista por telefone, a partir da sua nova morada, nas margens do Lago Dal, no estado de Jammu e Caxemira.

“Entregaram-nos aqui”, refere o indiano, regozijando-se com o facto de os dadores serem oriundos de “diversos países, da América à Suécia”.

Esse contacto com estrangeiros faz com que este analfabeto fale “pelo menos sete línguas: hindi e caxemira [dois dos 450 idiomas e dialectos da Índia], inglês, alemão, francês, italiano, urdu… e até um pouco de pashto”.

Uma passagem dos fragmentos de Pessoa harmoniza com a narrativa de Latif: Todos têm, como eu, um coração exaltado e triste. Conheço-os bem: uns são moços de lojas, outros são empregados de escritório, outros são comerciantes de pequenos comércios. (…) Mas todos, coitados, são poetas, e arrastam a meus olhos, como eu aos olhos deles, a igual miséria da nossa comum incongruência. Têm todos, como eu, o futuro no passado. (Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Edição Richard Zenith, Obras de Fernando Pessoa/4, Ed. Assírio e Alvim, pp 92-93)

Sobre o primeiro livro, recebido em Goa e que já não é seu, “sem arrependimento”, exulta Latif: “Foi como se alguém tivesse recitado a minha própria vida. Gostava tanto de poder usar uma caneta e dar a conhecer este meu mundo de trevas, de ser também fonte de inspiração para outros”.

(Não presenciamos as lágrimas do homem que se expressa cortês e cândido, mas intuímos a emoção que, do outro lado da linha, o faz soluçar.)

“Já me desafiaram várias vezes, mas recuso vender as obras que fui reunindo – algumas são antiguidades, como a primeira edição, em capa dura, de Goldfinger [de Ian Flemming, autor de 007]”, explica Latif.

“Só empresto e troco. Quem quiser levar um livro tem de deixar uma caução de 200 rupias [pouco mais de dois euros]. Quando o vier devolver, receberá de volta o que pagou. Se me oferecer dois livros, dou-lhe um dos meus, como retribuição.”

A biblioteca funciona numa casa de madeira para onde Latif transferiu o que tinha na loja de Goa, e onde vive actualmente com a mulher e dois filhos, uma rapariga de 13 anos e um rapaz de 10. À entrada da porta principal, ele colocou uma placa: Reading is [to be] free. É uma frase com dois sentidos: “Ler é grátis” e “Ler é ser livre”, observa.

Em Jammu e Caxemira o ensino é gratuito, a todos os níveis, da primária à universidade. A taxa de literacia tem vindo a aumentar, de 55,52% em 2001 para 67,16% em 2011, segundo estatísticas oficiais mais recentes.

Permanece, porém, um fosso entre homens alfabetizados (mais de 7 milhões) e mulheres (menos de 3 milhões) numa população local superior a 12 milhões (aproximadamente 1% do total da Índia).

Perguntamos a Latif por que não retomou os estudos, interrompidos aos 10 anos, se os livros se tornaram no seu “tesouro”, agora aos 44. Ele responde: “Oh Madam, don’t make me cry…” (Oh senhora, não me faça chorar..).”

“Nunca tive qualquer apoio; não é fácil”, explica. “Talvez não saiba, mas a maioria das famílias indianas aqui só se interessa por dinheiro. Os meus pais e irmãos cortaram relações, quando recusei vender os livros ou deitá-los na lixeira.”

“A minha mulher, que é dona de casa, também não me compreende. Só os meus filhos se interessam, e farei tudo para que sigam um caminho diferente do meu.”

© Cortesia de Majid Maqbool | Courtesy of Majid Maqbool

© Cortesia de Majid Maqbool | Courtesy of Majid Maqbool

O primeiro emprego de Latif foi conduzir pequenas embarcações, “tipo táxis”, na Caxemira. “Era muito duro, mas creio que me ajudou a remar contra outros ventos e marés que depois apareceram”, afirma. Em 1987, mudou-se para Goa, onde trabalhou por conta de outrem, primeiro, e própria, depois.

Esteve uma década no estado onde a maior cidade se chama Vasco da Gama (o navegador que desembarcou em Calecute em 1498) e que a Índia anexou em 1961. “Ficava por lá dez meses por ano, até o calor se tornar insuportável e procurar o clima mais fresco no Vale de Caxemira” diz.

Em 1997, Latif instalou-se em Karnataka, capital e maior cidade de outro estado, o de Bangalore, no Sudoeste. Em 2007, assentou então em Srinagar, a “jóia da coroa” de Jammu e Caxemira, atraído pelo número crescente de turistas, por seu turno, cativados pela beleza cénica da “Veneza do Oriente”.

“Arrependo-me muito de ter deixado Goa, onde todos eram afáveis”, confessa o comerciante. “Em Caxemira, talvez, devido às tensões políticas e religiosas [quatro guerras entre a Índia e o Paquistão – 1947, 1965, 1971, 1999], há maior frieza e desconfiança. Sou indiano e muçulmano, mas acho que muitos muçulmanos têm medo de que os livros possam contaminar o Islão. Isso é ignorância.”

Ou cegueira, como Saramago retrata, no seu ensaio/metáfora, uma sociedade doente que se contagia e se deixa aprisionar num manicómio. É como se Latif representasse, de certo modo, a mulher do médico (um dos protagonistas), que não fecha os olhos e mantém a esperança.

O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos. (José Saramago, “Ensaio sobre a Cegueira”, Ed. Caminho/LeYa, p. 173.)

“Provavelmente, haverá quem me considere herege por um dos livros de que mais gostei ter sido O Código da Vinci, de Dan Brown”, revela Latif Oata, voz agora sorridente, ao telefone. “Apreciei aquela mistura de misticismo e conspiração.”

“Tenho muita pena de que família e outras pessoas na Caxemira não se interessem pela minha modesta biblioteca”, queixa-se. “Quando Majid [Maqbool] publicou o artigo no New York Times [Illiterate, but in Love With Books/”Analfabeto mas apaixonado por livros”, 10 Janeiro, 2014; ], alguns escritores indianos foram ter com o meu pai e disseram-lhe: ‘Você devia valorizar o seu filho; merece ser apoiado’.”

“Ele já tem 70 anos e manteve-se intransigente. Continuamos afastados, cada um para seu lado, sem qualquer contacto. Carrego uma grande tristeza.”

Mais do que o negócio de souvenirs, o que Latif aprecia mesmo, confessa, é juntar clientes numa sala, ao lado da biblioteca, escutando-os a historiar os livros, a maioria destes em inglês e em alemão, enquanto bebem chá.

Três amigos, um francês, um canadiano e um neo-zelandês, ajudaram-no a arrumar as prateleiras, abauladas com o peso, alinhando por ordem alfabética os nomes dos autores.

O “espaço sagrado” de Latif Oata está aberto das 9h00/10h00 às 21h00/22h00. “A primeira coisa que faço quando acordo e a última antes de me deitar é olhar para as cores nas estantes”, declara, no final desta entrevista. “I am a believer: there is a light in darkness (Sou um crente; há luz na escuridão.)”  

As coisas sonhadas só têm o lado de cá… Não se lhes pode ver o outro lado… Não se pode andar à roda delas… O mal das coisas da vida é que podemos ir olhando por todos os lados… As coisas de sonho só têm o lado que vemos… Têm uma só face, como as nossas almas. (“Livro do Desassossego”, p. 319)

© Cortesia de Majid Maqbool | Courtesy of Majid Maqbool

© Cortesia de Majid Maqbool | Courtesy of Majid Maqbool

Este artigo foi publicado originalmente na edição de Junho de 2014 da revista LER | This article was originally published in the Portuguese magazine LER, June 2014 edition

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