Judia agnóstica e “teóloga por acaso”, a anglo-americana Lesley Hazleton publicou uma biografia do profeta do Islão que mereceu aplausos de crentes e descrentes. É o retrato de um homem – não o objecto de sublimação. (Ler mais | Read more…)

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Lesley Hazleton diz que não tem “qualquer afinidade com religiões organizadas” apesar de, em criança, ter sonhado ser rabi ou freira, quando era a única judia na escola de um convento.
Mas, depois de escrever sobre a mãe de Jesus (A Flesh-and-Blood Biography of the Virgin Mary); sobre a rebelde fenícia que se casou com um rei de Israel (Jezebel: The Untold Story of the Bible’s Harlot Queen); e sobre o cisma que desuniu os muçulmanos (After the Prophet: The Epic Story of the Shia-Sunni Split in Islam), decidiu revelar Maomé – “o ser humano completo”.
“A partir do momento em que acabei After the Prophet, tive a certeza de que iria escrever The First Muslim: The Story of Muhammad”, conta-me, numa entrevista por e-mail, a psicóloga de profissão, nascida em Inglaterra em 1945, com dupla cidadania (britânica e americana) desde 1994, repórter em Jerusalém de 1966 a 1975, estudiosa dos três monoteísmos e autora do blogue The Accidental Theologist e de um total de dez livros.
“After the Prophet é a história épica do cisma sunitas-xiitas, que, de certo modo, começou após a morte de Maomé, mas cujas raízes remontam ao seu tempo de vida”, explica Lesley Hazleton.
“Sabia que tinha de explorar esse tempo em profundidade. Queria responder, o melhor que pudesse, a uma questão enganadoramente simples: quem foi ele’? Como é que tantos de nós sabemos tão pouco sobre uma personalidade tão importante da História?”
Em The First Muslim, o que emerge de mais de 300 páginas de uma edição requintada de capa dura é uma figura multidimensional que, embora os seus fiéis venerem como símbolo de perfeição, “teve dúvidas e se sentiu deprimido”, quando “o divino” o chamou a revolucionar a sociedade tribal do seu tempo, transformando-a numa gigantesca Umma (comunidade).
Hoje, com 1.500 milhões de fiéis, o Islão quase se aproxima do Cristianismo (2.100 milhões) como maior religião do mundo.

Lesley Hazleton, uma agnóstica estudiosa das religiões
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Para “fazer justiça a um homem que mudou radicalmente o seu mundo e, de certo modo, continua a mudar o nosso”, Lesley Hazleton recuou “até às fontes primárias, biógrafos dos séculos VIII e IX”, onde encontrou “a vitalidade e o ‘sumo’ de uma vida real, sem interferência dos séculos de interpretação, compreensão e escrita” do que, para ela, é “um estilo irresistivelmente do Médio Oriente”. Demorou cinco anos neste processo.
Escrever a biografia de Maomé “foi como servir de intérprete cultural, entre a Arábia do século VII e o Ocidente do século XXI”, congratula-se a antiga jornalista, que vive num barco em Seattle (EUA) e “está sempre a fazer perguntas, não para encontrar respostas, mas para saber até onde as perguntas nos conduzem”.
“Foi a tentativa de uma outsider de entrar no mundo em que Maomé viveu e recriar a sua vivência e o contexto político, social e cultural dessa experiência”, precisou a autora. “O meu objectivo foi dar-lhe a realidade na íntegra.”
“Naturalmente que muçulmanos conservadores discordaram da minha abordagem, mas a reacção da maioria tem sido positiva e de apreço.”

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Um dos capítulos que Lesley mais dificuldade teve em completar refere-se ao confronto de Maomé com os judeus de Medina – para onde ele emigrou quando o expulsaram de Meca. “É claro que me causou uma dor horrível”, confessa.
“Das três tribos judaicas na cidade, duas foram expulsas e, por fim, todos os homens da terceira e mais pequena foram massacrados. A questão é: porquê?”
“A religião e a política sempre estiveram intrincadamente ligadas em todo o Médio Oriente, por isso, se olharmos para todo o contexto político, vemos que, naquela época, o que estava em causa não era tanto animosidade contra os judeus na forma de anti-semitismo mas as exigências políticas de impor liderança”, explicou Lesley.
“As tribos judaicas aceitaram a liderança política de Maomé – não a liderança religiosa, quando a realpolitik desses tempos lhe exigia que impusesse essa domínio.”
“É inevitável que, actualmente, estes acontecimentos sejam usados, por extremistas em ambos os campos para alimentar a ideia de um conflito irremediável entre judeus e muçulmanos. Eles tentarão sempre manipular a História para a encaixarem nos seus desígnios.”
Sobre as crescentes divisões na Umma, como o ódio entre sunitas e xiitas, palpável no Iraque e no Bahrein; a permanente hostilidade em relação a minorias, como os cristãos e os bahá’ís, Lesley afirma: “É evidente que há uma luta em curso pela ‘alma do Islão’, entre uma minoria de radicais e uma maioria moderada.”
“Esta luta é agravada por muitos factores, incluindo o legado pós-colonial no Médio Oriente e noutras regiões.”
“É preciso, porém, sublinhar que não há um monólito chamado Islão. Tal como há diferentes correntes do Judaísmo e do Cristianismo, também há correntes diferentes de Islão. Nem uma só pessoa nem um só grupo pode clamar que representa os muçulmanos em toda a parte, embora alguns se considerem únicos representantes do que chamam ‘A Verdade’.”

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“Tendemos a classificar a religião como uma questão de crença mas mais do que isso”, realça Lesley. “Eu sou agnóstica, mas ser judia é parte de mim, tal como ser escritora, psicóloga, mulher. Tirem-me um desses componentes e serei diferente.”
“Tudo influenciou o que sou. A crença num ser divino é comum a todas as religiões, por isso, ser ‘um crente’ não faz de nós, especificamente, judeus, cristãos, muçulmanos ou outra coisa.”
“Ser judeu, cristão ou muçulmano deve-se ao facto de uma determinada religião ter sido a que ajudou a moldar os valores de alguém, o seu modo de pensar, os símbolos que mais lhe importam. Tudo o que permite um eu singular – ou seja, a identidade.”
O que esperava e o que surpreendeu Lesley ao escrever The First Muslim? “Não tinha expectativas, mas o sentimento de estar a explorar algo. A biografia é uma expedição – uma viagem ao que é, inevitavelmente, o território estranho da vida de alguém. Como empreender então esta viagem?”
“Podemos agir como turistas e tirar as fotografias da praxe ou podemos permanecer durante um período mais longo, para tentar compreender o interior. Eu segui este caminho.”
Questões controversas como a obrigação de as mulheres ocultarem o cabelo com o hijab e/ou todo o rosto com o niqab, a promessa de “72 virgens no Paraíso” que recompensarão os mártires pela fé e outros supostos “dogmas” são desqualificados por Lesley Hazleton.
“Não são ‘os fundamentos’ das revelações originais” de Maomé, mas sim “o resultado de um longo passado de interpretações misóginas e machistas do Corão e dos Hadith” (palavras e actos atribuídos ao “Mensageiro de Deus”), frisa a biógrafa.

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Sobre as crescentes divisões na Umma, como o ódio entre sunitas e xiitas, palpável no Iraque e no Bahrein; a permanente hostilidade em relação a minorias, como os cristãos e os bahá’ís, Lesley afirma: “É evidente que há uma luta em curso pela ‘alma do Islão’, entre uma minoria de radicais e uma maioria moderada.”
“Esta luta é agravada por muitos factores, incluindo o legado pós-colonial no Médio Oriente e noutras regiões.”
“É preciso, porém, sublinhar que não há um monólito chamado Islão. Tal como há diferentes correntes do Judaísmo e do Cristianismo, também há correntes diferentes de Islão. Nem uma só pessoa nem um só grupo pode clamar que representa os muçulmanos em toda a parte, embora alguns se considerem únicos representantes do que chamam ‘A Verdade’.”
“Tendemos a classificar a religião como uma questão de crença mas mais do que isso”, realça Lesley. “Eu sou agnóstica, mas ser judia é parte de mim, tal como ser escritora, psicóloga, mulher. Tirem-me um desses componentes e serei diferente.”
“Tudo influenciou o que sou. A crença num ser divino é comum a todas as religiões, por isso, ser ‘um crente’ não faz de nós, especificamente, judeus, cristãos, muçulmanos ou outra coisa.”
“Ser judeu, cristão ou muçulmano deve-se ao facto de uma determinada religião ter sido a que ajudou a moldar os valores de alguém, o seu modo de pensar, os símbolos que mais lhe importam. Tudo o que permite um eu singular – ou seja, a identidade.”
“A perfeição não é humana”, adianta a escritora que se tornou celebridade online graças a um vídeo colocado no YouTube em que ela, numa conferência TED destrói com sentido de humor os mitos sobre o Islão.
“As muitas lendas sobre a vida de Maomé são lindas em vários aspectos, mas fazem dele um ser distante, porque perfeito. E é precisamente por causa disso que considero a sua vida real muito mais extraordinária do que a que lhe foi atribuída pela lenda devocional.”
“Ele emergiu da impotência para o poder, de um ser estranho para um ser íntimo. Quando nos apercebemos como fez isso – como é que uma criança órfã empurrada para as margens da sua sociedade acabou a liderar essa sociedade; como é que um mercador desafiou a ordem estabelecida através de uma nova visão de justiça social, como é que um pregador expulso de Meca transformou o exílio num recomeço vitorioso – damos mais valor ao que ele conseguiu e ao quão difícil foi.”
No final, pergunto à mulher que nos anos 1990 escrevia notícias sobre automóveis e tem brevet para voar se continua agnóstica ou se imagina a imitar o judeu Leopold Weiss, que se converteu no muçulmano Muhammad Asad, primeiro embaixador do Paquistão na ONU em 1947 – um ano antes da criação de Israel.
Lesley Hazleton não tem dúvidas: “É óbvio que permaneço agnóstica. De forma inabalável. Esta posição intelectual permite um olhar mais claro para uma arena vasta e volátil em que religião e política se intersectam.”
Este artigo foi publicado originalmente no jornal EXPRESSO, em 14 de Setembro de 2013 | This article was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on September 14, 2013