No Paraguai a “música do coração” vem do lixo

Num aterro sanitário, graças ao ecologista Favio Chávez, nasceu uma orquestra onde latas se transformam em violinos e tubos de plástico em flautas. Tocados por 25 meninos e meninas, foram expostos, em Abril (de 2013) no maior museu de instrumentos musicais do mundo – ao lado do piano de John Lennon. (Ler mais| Read more…)

A vida de Tania Vera, 15 anos, mudou de ritmo quando começou a tocar Mozart num violino emprestado por Favio Chávez, ambientalista e professor de música, que das 1500 toneladas de lixo diariamente despejadas no maior aterro sanitário do Paraguai formou a Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura.

Em Junho de 2012, a jovem obteve o seu primeiro documento de identidade: um passaporte para viajar até ao Brasil. “Foi a primeira vez que saí do meu país e entrei num avião. Nunca tinha visto o mar.”

Tania é um dos 25 elementos da orquestra que se tornou famosa em todo o mundo quando este vídeo de apresentação do documentário Landfill Harmonic foi partilhado em várias redes sociais na Internet. “Jamais esperámos esta repercussão”, confessa Chávez, em várias conversas que, desde Dezembro, temos mantido por e-mail, telefone, Facebook e Skype.

O êxito foi tão grande – até a rica Dinamarca já pediu assessoria para o Instituto de Recuperação das Crianças Vítimas de Tortura, que ajuda sobreviventes dos conflitos no Ruanda e no Burundi – que o maestro tem planos para criar uma organização governamental.

“Gosto do violino desde que o vi”, exulta Tania, num testemunho que Chávez transcreveu, porque ela não tem computador nem telefone. O seu povoado, Cateura, são sete bairros, ao longo do rio que nasce no estado de Mato Grosso e define parte da fronteira entre o Paraguai e o Brasil.

A maioria das 2500 famílias sustenta-se separando o lixo para a indústria de reciclagem; e a maior parte enfrenta as agruras da toxicodependência, do alcoolismo e da violência sobre cônjuges e filhos. O pai de Tania é viciado em crack e abandonou o lar. A mãe é empregada doméstica e, agora, a única fonte de subsistência.

Para entender a história de Tania, e as das irmãs Noelia e Ada Ríos e de Ronal Servian, que também aqui depõem, é preciso recuar a Carapeguá, a 83 quilómetros de Assunção, a capital do Paraguai.

Foi para aquela cidade que Favio Hernan Chávez Morán, nascido há 37 anos, em Buenos Aires (tal como os seus dois irmãos e irmã), foi viver quando os pais regressaram à pátria, depois de terem ido à procura de melhores empregos na Argentina.

Favio Chávez foi como ambientalista para o maior aterro sanitário do Paraguai, onde são despejadas diariamente 1500 toneladas de lixo. Ao ver, perdidos entre os detritos, filhos de pais toxicodependentes e alcoólicos, retomou a anterior actividade de professor de música e formou a Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura. @Creative Vision Foundation

Favio Chávez foi como ambientalista para o maior aterro sanitário do Paraguai, onde são despejadas diariamente 1500 toneladas de lixo. Ao ver, perdidos entre os detritos, filhos de pais toxicodependentes e alcoólicos, retomou a anterior actividade de professor de música e formou a Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura
© Creative Vision Foundation

“Vivi em Carapeguá dos 4 aos 29 anos”, afirma Chávez. “Aprendi desde muito pequenino a cantar e a tocar guitarra. Quando o professor de música no colégio onde eu estudava se reformou, o director da escola ‘contratou-me’ para ensinar o que eu aprendera aos meus colegas, incluindo jovens mais velhos, até que chegasse um substituto.”

“Eu tinha 12 anos, e senti-me o máximo perante todos! A partir dali, ganhei gosto pelo ensino da música e, embora fosse menor de idade, fui escolhido para ser director do coro da Catedral de Carapeguá.”

Chávez prossegue: “Tive sorte de aprender imenso com músicos populares locais, porque tenho um registo de voz muito agudo (sou tenor). Todos me incentivavam a cantar (e dizem que canto bem). Em 2002, depois de me inscrever no Conservatório de Assunção, comecei a dar aulas de música aos meninos de Carapeguá, e criámos uma pequena orquestra, que ainda existe – vou lá de 15 em 15 dias. Continuo a ser o director mas são agora alguns dos meus antigos alunos que ensinam os mais novos.”

“Só consegui tudo isto com o apoio dos meus pais, donos de um supermercado em Carapeguá: todos os meus irmãos seguiram a via do comércio ou finanças – sou a única ovelha negra”, explica o bem-humorado Chávez, casado com Nilda Ubeda, uma “formosa e paciente socióloga”, de 29 anos, ambos sem filhos.

E adianta, com júbilo que se apega: “Tenho sorte de fazer o que gosto; é gratificante ver crianças felizes graças ao nosso trabalho; porque o pouco que fazemos é sempre muito para elas, que nada têem.”

Em todo o caso, porque no Paraguai “não se pode viver só da música”, Chávez teve de seguir outras vias profissionais. Em Assunção, onde vive, num bairro próximo de Cateura, licenciou-se em Engenharia e Ecologia Humana (Universidade Nacional) e em Filosofia (Universidade Católica). “Em 2006, comecei a trabalhar no aterro como ambientalista – também já tinha esta tarefa em Carapeguá –, mas desde o início que senti o desejo de fazer algo mais.”

Cateura, são sete bairros, ao longo do rio que nasce no estado de Mato Grosso e define parte da fronteira entre o Paraguai e o Brasil. A maioria das 2500 famílias sustenta-se separando o lixo para a indústria de reciclagem; e a maior parte enfrenta as agruras da toxicodependência, do alcoolismo e da violência sobre cônjuges e filhos @

Cateura, são sete bairros, ao longo do rio que nasce no estado de Mato Grosso e define parte da fronteira entre o Paraguai e o Brasil. A maioria das 2500 famílias sustenta-se separando o lixo para a indústria de reciclagem; e a maior parte enfrenta as agruras da toxicodependência, do alcoolismo e da violência sobre cônjuges e filhos
© Creative Vision Foundation

Em Cateura, um lugar que o Rio Paraguai inunda a cada 6-8 meses, na região de Bañados Sur, onde vive um milhão de pessoas – os mais pobres entre os pobres – ou metade dos habitantes de Assunção, a missão inicial de Chávez era “orientar no sentido de uma mais organizada selecção dos resíduos.”

Desde logo, porém, deu-se conta de que muitas crianças recolhiam lixo e aqui procuravam comida. “Tentei oferecer-lhes uma alternativa, ensinar música, mas os cinco instrumentos que eu tinha não eram suficientes para todos; além disso, não podia deixar que os levassem para as suas casas, e isso causava brigas”, recorda o ecologista do Projeto Procicla, ligado ao Banco Interamericano de Desenvolvimento.

“Um dia, encontrei um reciclador, Nicolás Gómez, ou ‘Cola’, e perguntei-lhe se podíamos usar velharias para fazer instrumentos musicais”, revela Chávez. “Ele encontrou uma bateria abandonada e danificada, e arranjou-a. Como tinha sido carpinteiro, pedi-lhe que me ajudasse a montar um violino – usámos um tubo de plástico e um tacho.”

“O som era bom, e avançámos. Por exemplo, com latas fizemos tambores, e velhas chapas de radiografias serviram para membranas; também aproveitamos garfos e outros utensílios de cozinha. ‘Cola’ é o artesão, eu testo o que ele fabrica e aprovo. Hoje, além de violinos, temos guitarras, violas, violoncelos, contrabaixos, flautas, saxofones, clarinetes trompetes e percussão – já perdemos a conta ao que reciclámos.”

“Há muitos compradores interessados, mas isto não é um adorno – um violino, no Paraguai, custa mais do que uma casa; os nossos têm pouco valor comercial mas para as crianças representam tudo. É uma causa nobre”, orgulha-se Chávez, que só aceitou ceder parte do espólio saído das mãos de “Cola” ao (maior) Museu de Instrumentos Musicais, em Scottsdale (Arizona, EUA). Ficará numa exposição permanente, ao lado de um dos pianos de John Lennon e de guitarras de Eric Clapton.

A inauguração está prevista para Abril de 2013, e as documentaristas Alejandra Amarilla Nash e Juliana Peñaranda-Loftus planeiam exibir o seu vídeo em Los Angeles, Nova Iorque e outras cidades norte-americanas. Esperam com isso angariar apoios para vários concertos.

Até agora [Março de 2013] a, a Orquestra de Cateura foi apenas ao Brasil e à Colômbia, mas os convites para outros países (um festival em Oslo/Noruega está agendado para Setembro), e também algum financiamento (nacional e estrangeiro), começam a chegar.

[A Orquestra que se tornou famosa graças à partilha do vídeo viral e às várias entrevistas – da América à China – tem viajado , entretanto, por vários países do mundo.]

Os instrumentos reciclados são usados para as aulas, agora frequentadas por 75 meninos e meninas (incluindo os 25 da orquestra). “Os mais novos, um de cinco e outro de sete anos, chegaram em Janeiro”, informa Chávez.

“Vieram sozinhos, sem os pais, num acto de coragem, talvez influenciados pela fama que o vídeo nos deu. Estas crianças são como adultos. Muito cedo são largadas nas ruas ou confinadas a trabalhos domésticos, enquanto os pais trabalham.”

Ada Ríos, primeira violinista, 14 anos: A Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura deu sentido à minha vida porque não temos muitas oportunidades”. @Creative Vision Foundation

Ada Ríos, primeira violinista, 14 anos: A Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura deu sentido à minha vida porque não temos muitas oportunidades”. O projecto do ambientalista Favio Chávez deu-lhe novo sentido de vida
© Creative Vision Foundation

O pai de Tânia Vera ainda é “reciclador” no aterro. Ela, que habita uma barraca de madeira junto do rio contaminado, foi uma das primeiras alunas de Favio Chávez, juntamente com as suas irmãs: Jessica, que tem 18 anos, Larissa, de 16, e Nicol, de 10. “Íamos sempre juntas porque essa foi a condição para podermos sair”, conta a violinista.

“Foi difícil aprender a tocar porque só podíamos praticar uma a duas vezes por semana e, às vezes, muitos meninos usavam o mesmo instrumento. Também acontecia uma das minhas irmãs não lhe apetecer ter aula ou estar doente, e eu não podia ir sozinha à escola. Os instrumentos reciclados ajudaram-nos a praticar mais porque já podíamos levá-los para casa.”

Um dia, Favio Chávez mostrou um violoncelo a Jessica. “Ela gostou muito”, lembra Tania. “Fez parte da orquestra até nascer o seu bebé, há dois anos – sou a única das minhas irmãs que não desistiu.”

Este é um ponto que o maestro faz questão de realçar: “Jessica engravidou aos 15 anos e deixou de tocar, mas Tania, agora no 9º ano do secundário, tem planos para frequentar a universidade: ganhou um objectivo; o que mostra que a música altera o curso de vida.”

“As famílias também se orgulham e organizam. Se uma criança só tem um vestido ou calças sujos ou gastos, há sempre quem empresta outros limpos ou novos; se um pai está demasiado embriagado ou drogado, outros oferecem-se para acompanhar os seus filhos aos concertos, em zonas mais perigosas. Há um sentimento de companheirismo que antes não existia.”

Favio Chávez é uma peça fundamental nesta cadeia de solidariedade. “O professor ajudou-nos muito”, elogia Tania. “Arranjou trabalho para Jessica numa fábrica de roupas, e deu dinheiro para que ela tivesse o seu bebé. Ele aceitou, a pedido da minha mãe, ser padrinho da minha irmã Nicol, que nunca tinha sido registada. Com ele fui ao Brasil; antes mostrou-nos o filme Rio – e foi lindo conhecer todos aqueles lugares que tínhamos visto no écrã.”

Nicolás Gómez, ou ‘Cola’ era um carpinteiro que catava lixo; agora ajuda a fabricar os instrumentos. Começou por montar um violino com um tubo de plástico e um tacho. @Creative Vision Foundation

Nicolás Gómez, ou ‘Cola’ era um carpinteiro que catava lixo; agora ajuda a fabricar os instrumentos. Começou por montar um violino com um tubo de plástico e um tacho
© Creative Vision Foundation

Animação em 3-D, realizado por Carlos Saldanha, brasileiro radicado nos EUA e que colaborou na série A Idade do Gelo, o filme Rio aborda, de forma cativante, o problema do tráfico de fauna amazónica para os EUA, não admirando o fascínio que exerceu sobre os miúdos em Cateura.

Conta a história de Blu e Jade, duas araras macho e fêmea chamadas por um ornitologista carioca a travar, procriando, a extinção da sua espécie: eles são os últimos exemplares. Até lá, terão de se salvar dos contrabandistas que os capturaram – porque Blu, criado como bicho de estimação, não sabe voar.

Tania adorou voar até ao Rio e, do que aprendeu a tocar, não hesita em dizer que “Mozart é o mais difícil”, embora goste de tudo. “A música é, para mim o mais importante”, frisa. “Vou sempre à escola e depois volto para casa, para cuidar das minhas irmãs Larissa e Nicol, cozinhar e cuidar de tudo.”

“A minha mãe e Jessica têm orgulho em que eu faça parte da orquestra, mas nunca podem ver-me porque precisam de trabalhar. O meu pai continua no aterro, mas já não vive connosco, porque formou outra família. Gostava muito de ser uma artista profissional, para ajudar a minha mãe e irmãs com o dinheiro que ganhar a tocar violino.”

Na orquestra de instrumentos reciclados, que tem uma página no Facebook, há uma outra violinista com o mesmo sonho: Ada Ríos, 14 anos. E também ela, exprimindo-se num castelhano quase poético, usando o telemóvel de Chávez, descreveu-nos a sua aventura no Rio de Janeiro como “inolvidável”.

As palavras proferidas foram estas: “Foi uma maravilha estar na cidade maravilhosa, nas praias de Ipanema e Copacabana, com as ondas nos pés, e os pés no Corcovado”. Num concerto no Fórum de Empreendedorismo, tocaram tudo, de My Way, de Frank Sinatra, a Tico-Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu.

Tania Vera, 15 anos, foi uma das primeiras alunas de Favio Chávez; a música mudou a sua vida e ela, ao contrário dos irmãos, quer concluir um curso universitário. @Creative Vision Foundation

Tania Vera, 15 anos, foi uma das primeiras alunas de Favio Chávez; a música mudou a sua vida e ela, ao contrário dos irmãos, quer concluir um curso universitário
© Creative Vision Foundation

Num dia de aulas, com o maestro a seu lado, Ada exalta: “A orquestra deu sentido à minha vida, porque não temos muitas oportunidades, mas quando a minha avó me inscreveu na escola do professor Favio fiquei muito zangada por ela não ter pedido, antes, a minha opinião. Hoje, estou grata. O que mais quero é sair do Paraguai; ser reconhecida como uma violinista talentosa.”

“Começámos a assistir às aulas de música, há três anos, quando a minha avó, que é recicladora, passou um dia pela escola onde os meninos estavam a tocar”, confirma Noelia, 12 anos, irmã de Ada e membro mais jovem da Orquestra de Cateura (ela escolheu a guitarra). “A minha avó sempre gostou de música e aproximou-se para perguntar quanto teria de pagar.”

“Ao saber que era grátis, registou-nos logo. Quando chegou a casa e nos contou, ficámos furiosas porque nunca pensámos estudar música. A minha mãe também discordou, mas o meu pai ficou encantando, e obrigou-nos a assistir à primeira aula com o professor Favio, na semana seguinte.”

“A minha mãe faz tortilhas em casa, para vender fora, e o meu pai, que era reciclador, também foi inscrito pela minha avó num curso de costura e bordados à máquina; agora é essa a sua profissão”, alegra-se Noelia. “Porque o meu papá faz muito barulho com a máquina de coser, e a nossa casa só tem uma assoalhada, eu e Ada vamos para a rua praticar.”

“Desde que a orquestra se tornou conhecida, temos tido muitos concertos, com bilhetes pagos – esse dinheiro vai para um fundo que permite ajudar a nossa família. Por exemplo, com parte desse dinheiro, o meu papá comprou materiais para construir um anexo, onde eu e a minha irmã poderemos tocar mais tranquilamente.”

“Ao contrário dos outros meninos da orquestra, eu ainda não viajei porque sou novinha e porque não sei ainda todo o repertório – acompanho apenas os mais velhos que tocam melhor do que eu, mas estou a praticar intensamente para que, este ano, também possa sair do país”, enfatiza Noelia, admiradora de Agustín Pio Barríos Mangoré (1885-1944), “o maior guitarrista que o Paraguai teve”.

Sepultado no Cemitério dos Ilustres em São Salvador, onde morreu, este compositor é venerado pelas suas partituras para guitarra clássica, entre as quais La Catedral, inspirada na obra de Bach.

“Toda a minha família se orgulha de nós”, comove-se Noelia, cuja avó continua a ser recicladora em Cateura. “Um dos meus sonhos era conhecer uma das maiores guitarristas de hoje no Paraguai, Berta Rojas. Esse sonho foi cumprido quando ela veio visitar, recentemente, a nossa escola e me convidou a ser sua aluna. Quero ser célebre como ela [que lhe ofereceu uma guitarra clássica verdadeira] e poder viajar, como a minha irmã Ada.”

Mauricio, outro dos jovens que integram a Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura. Todos os instrumentos são feitos a partir de lixo reciclado. @Creative Vision Foundation

Mauricio, outro dos jovens que integram a Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura. Todos os instrumentos são feitos a partir de lixo reciclado
© Creative Vision Foundation

Seja Beethoven ou Beatles, os acordes que soam dos instrumentos reciclados parecem tão perfeitos quanto os tocados nas melhores orquestras, mas Favio Chávez explica.

“Quem conhece música repara logo que o timbre é diferente; os violinos, por exemplo, têm menos volume, porque são feitos com pedaços de metal; o violoncelo já se parece com um mais formal, talvez devido ao material, uma lata de azeite de 30 litros – nem mais nem menos.”

“Tentámos com latas de 20 e 40 litros, e não resultou. Tudo se resume à acústica. A lata é mais opaca do que a madeira.”

Já em comparação com os instrumentos de sopro fabricados na China, Chávez não hesita em classificá-los de “má qualidade”, elogiando os reciclados de Cateura, porque “são de latão, mais grossos, duram mais de três anos e têm, seguramente, um som melhor.”

Um instrumento de sopro é o que Ronal Servian, hoje com 19 anos ainda toca, embora já tenha deixado a orquestra, por necessidade económica.

“Toco trompete porque era o que estava disponível quando quis aprender, já que todos escolhiam violino ou guitarra”, disse, respondendo às nossas questões por intermédio de Chávez, tal como fez Noelia.

“Foi muito difícil aprender –primeiro porque não podia levar o trompete para casa; depois, porque vivendo numa só assoalhada o som prejudicava a minha mãe, vendedora ambulante que regressava muito cansada.”

Ronal é filho único e órfão de pai desde os 10 anos. “Fiz parte da orquestra até Maio de 2012, mas quando a minha mãe adoeceu e teve de deixar o emprego eu tive de ir trabalhar”, lamenta. “Comecei por recolher plástico nas ruas e, a seguir, fui ajudante de pedreiro mas, actualmente, sou funcionário numa loja de fotocópias.”

Para que não deixasse de tocar, Favio Chávez ofereceu ao rapaz um trompete. “Toco sempre que posso e ainda visito a orquestra, mas já não viajo com os meus companheiros porque não participo de forma regular.”

Quanto ao maestro, já só aceita “trabalhos esporádicos”. Desde 2008, que recusa um emprego a tempo inteiro porque isso o impediria de prosseguir as actividades com as crianças de Cateura.

Face à projecção mundial de Landfill Harmonic, Favio Chávez espera dedicar-se ao que mais gosta “música, ambiente e assistência social”.

Nicólas Gómez ("cola"), no processo de criação artística, a partir do lixo recolhido no aterro de Cateura. @Creative Vision Foundation

Criações artística de Nicólas Gómez (“Cola”), a partir de lixo recolhido no aterro de Cateura
© Creative Vision Foundation

Alejandra Amarilla Nash, o cérebro da organização não-governamental Creative Vision Foundation (Malibu, Califórnia), não imaginava que o seu documentário iria gerar tanta atenção, a ponto de receber, através da página de Facebook pedidos de consultoria do Haiti ao Quénia.

“Fomos tomados por um sentimento de glória, e há uma razão para mais de um milhão de pessoas se terem emocionado com a essência do filme: o poder do espírito humano transcende as situações de vida. Todos nos relacionamos com esta transformação e daí a reacção esmagadora.”

“Nasci em Assunção”, diz-nos Alejandra, numa entrevista por e-mail. “A família do meu pai está no Paraguai e ainda mantenho muitos laços com o meu país. A ideia de fazer este documentário [realizado por Jorge Maldonado, com direcção de fotografia de Tim Fabrizio e Neil Barrett] era uma espécie de sonho, para mim, porque sou muito visual e adoro filmes.”

“Pensei que a melhor maneira de alertar para dramas que envolvem crianças e mulheres era encontrar uma história que colocasse o Paraguai no mapa mundial, com um impacto positivo.”

“Tive conhecimento do projecto [de Cateura] quando fazia pesquisa, e fiquei logo fascinada”, refere Alejandra. “Em 2009, conheci Favio, quando ela ainda colaborava com o grupo Sonidos de la Tierra, que formou várias crianças como músicos profissionais. Os Reciclados de Cateura são agora independentes, mas continuámos a seguir a sua história extraordinária. A minha produtora, Juliana Peñaranda, acompanha-me desde o início.”

“Já estivemos em Cateura umas quatro ou cinco vezes”, salienta a produtora executiva. “O Paraguai é umas das nações menos desenvolvidas da América do Sul. Enfrentámos várias ditaduras tirânicas e, por isso, as cicatrizes de um povo oprimido continuam visíveis. O nosso país não cresceu como os vizinhos Brasil, Argentina e Chile.

Alguns dos instrumentos musicais feitos a partir da reciclagem de lixo e hoje expostos no Museum of Musical Instruments (MMI), em Phoenix, no Arizona (Estados Unidos), ao lado do piano de John Lennon.
© Creative Vision Foundation

Nos arredores da capital, a pobreza está á vista de todos em lugares degradados, como Cateura, onde chegam 1500 toneladas de resíduos sólidos todos os dias, segundo a UNICEF. Com uma elevada taxa de analfabetismo, são muitas vezes os jovens que recolhem e vendem o lixo.

A água fornecida está poluída e, quando chove, as cheias contaminam-na ainda mais Esperamos com este documentário mudar comportamentos no que diz respeito à educação ambiental e ao sistema de reciclagem, que são bastante arcaicos. A Orquestra dos Reciclados é um projecto criativo e de esperança.”

No documentário, a história segue não apenas Favio Chávez mas também outras três personagens: Maria, Ada e Tania, embora todas as crianças da orquestra apareçam. “Foi difícil escolher as crianças porque todas têm histórias interessantes”, refere Alejandra.

“As três raparigas são melhores amigas e as suas situações são, simultaneamente, diferentes e semelhantes.” Maria Ríos, 16 anos, é violinista, e tia de Ada. Ela nasceu quando a sua mãe, Miriam, com 14 filhos, tinha 45 anos.

“O argumento explora como é que surgiu a ideia dos instrumentos reciclados, mostra o povoado construído no topo de um aterro, e expõe vidas, sonhos e esperanças de futuro”, detalha Alejandra. “Continuamos a seguir todos os intervenientes, incluindo ‘Cola’ – o documentário só deverá estrear em 2014.”

Para o fazer e ajudar a comunidade de Cateura, Alejandra Nash investiu “algum dinheiro”, que não quantificou. Começou com uma pequena equipa que, entretanto, se expandiu com mais produtores (e donativos), para apresentar os trailers que aparecem no YouTube e outros sites de partilha de vídeos.

Um desses trailers, realizado por Alejandra e Juliana, é semifinalista para o Filmmaking and Audience Award – prémio máximo de 200 mil dólares.

“Este é, sobretudo, um trabalho de amor”, conclui Alejandra Nash, que cita, por seu turno, o maestro Favio Chávez: “O mundo envia-nos o seu lixo e nós retribuímos com música.”

[Após a publicação deste artigo, a Orquestra de Cateura já viajou por vários países do mundo, sempre com as salas de espectáculos esgotadas. Uma das experiências que os jovens músicos descreveram como “inesquecível” foi um concerto com a banda Megadeth, tocando Simphony of Destruction, em Broomfield, Colorado, EUA, a 2 de Agosto de 2013.] 

Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 4 de Março de 2013; This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on March 4, 2013

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