De traficante de cocaína às melhores universidades da América

Influenciado por Scarface e Miami Vice, o filho de um imigrante cubano nos EUA montou um esquema lucrativo de transacção de droga. Michael G. Santos foi condenado a 45 anos em várias penitenciárias. Aqui se licenciou e fez um mestrado. Em “liberdade vigiada”, começou a dar palestras com o objectivo de mudar um sistema que todos os anos coloca na prisão 2300 milhões de pessoas.  (Ler mais | Read more…)

Michael G. Santos, convidado pela Universidade de Berkeley, deu uma conferência, como convidado especial, sobre como corrigir o sistema penal nos EUA
© Cortesia de | Courtesy of Michael G. Santos

É num sábado à tarde, já com o “salvo-conduto” que lhe permite passar o fim-de-semana na casa da mulher, que Michael Gerald Santos responde às questões que lhe enviámos por correio electrónico – uma das tecnologias que o surpreendeu depois de um quarto de século encarcerado.

No dia seguinte, o preso nº 16377004 teria voltar à halfway house, um centro comunitário de recolher obrigatório nos dias úteis às 21H00, onde está a completar o último ano de uma sentença reduzida de 45 para 26 anos, por não ter cometido “infracções disciplinares”.

A partir de Agosto [de 2013], pela primeira vez desde que há uma década se casou com Carole Goodwin, na sala de visitas de uma prisão federal, passa a ter vida conjugal, embora ainda em regime de “detenção domiciliária”.

[Na sua página de Facebook, escreveu: ‘For the first time in longer than 10 years of marriage, my wife and I will go out to dinner and stay out past 7:30 in the evening. Wow! We’re finally grown ups”. No dia 12, anunciou: “It’s 5:00 am on my first day of true liberty in longer than 26 years. I’m excited to begin this day with a long run, and I’m going outside now.“] A liberdade total só deverá chegar “por volta de 2017”.]

Michael diz não saber se o seu apelido, Santos, tem origem portuguesa, mas lembra-se bem de ter sido a 11 de Agosto de 1987, depois de detido por agentes da Drug Enforcement Agency (DEA),unidade de combate ao tráfico de droga sob a tutela do Departamento de Justiça, que começou a cumprir 9135 dias de reclusão por compra e venda de cocaína.

Tinha na altura 23 anos. A sua pena, invulgarmente dura, coincidiu com a “guerra contra a droga” declarada pelo Presidente Ronald Reagan.

Reclusos numa prisão em Williston, Dakota do Norte, em 26 de Julho de 2013. Este estado americano tem sido abalado por vários casos relacionados como tráfico e consumo de droga
© Andrew Burton | Getty Images | observer.com

Hoje, aos 49, depois de ter investido tudo numa educação superior, Michael Santos é autor de sete livros, incluindo o aclamado pela crítica Inside: Life Behind Bars in America (sétima edição desde 2006) e o mais recente Earning Freedom: Conquering a 45 Year Prison Term, narrativa prisional, do primeiro ao último dia.

Colunista regular no site Huffington Post, Michael Santos tem sido convidado pelas mais prestigiadas universidades, de Berkeley a Stanford, para dar conferências sobre como reformar um sistema que “aposta mais no fracasso do que no êxito das pessoas encarceradas”. Esta é a sua história, contada na primeira pessoa, numa troca de e-mails:

O meu pai morreu em 2004 (não fui autorizado a assistir ao funeral) e, por isso, não posso recorrer a ele para saber sobre as origens da família. Sei apenas que os meus avós, que também já morreram, deixaram a Europa Ocidental para se instalarem em Cuba durante a guerra.

O meu pai nasceu em Cuba e o castelhano era a sua primeira língua. Viveu em Cuba até Fidel Castro ascender ao poder.

Quando começou o regime comunista, refugiou-se nos Estados Unidos, e aqui se casou com a minha mãe, norte-americana de ascendência espanhola.

Em 1970, abriu uma empresa de montagem de postes de iluminação pública. Trabalhei aqui desde que desde que deixei o liceu em 1992 até 1985, quando descarrilei.

Durante a infância – nasci em 1963 –, os negócios permitiram-nos um estilo de vida confortável. Residíamos num bairro de classe alta e beneficiávamos dos privilégios da segurança financeira. A nossa família era tradicional: o pai trabalhava na empresa a mãe cuidava da casa.

Tenho duas irmãs, Julia e Christina. Jantávamos juntos todas as noites e gozávamos férias várias vezes por ano. Dávamos festas frequentes em nossa casa porque os tínhamos uma vida social muito activa. Eu passeava por Miami num Porsche e um Rolex de diamantes no pulso.

Em meados dos anos 1980, apareceu Scarface, um filme muito popular, centrado na história de um refugiado cubano que, ao chegar a Miami, se torna no chefe de um cartel de cocaína. Protagonizado por Al Pacino, esse filme influenciou-me muito, pela ideia de ganhar dinheiro rapidamente.

A série de televisão Miami Vice, também teve impacto. Foi assim que, aos 21 anos, adolescente ganancioso e egoísta, enveredei por um caminho do qual só eu sou culpado – mais ninguém.

“Em 25 anos de cadeia, dei aulas a milhares de detidos e escrevi livros com o intuito de ajudar a compreender a disciplina necessária para superar ou vencer as indignidades da clausura”, diz Michael G. Santos. “Batalhei para que outros assimilassem o poder libertador e transformador da educação. Tentava ser um exemplo de cada palavra escrita ou dita por mim”
© Cortesia de | Courtesy of Michael G. Santos

Eu não abusava de drogas mas, como vivia numa área de pessoas ricas, conhecia quem consumisse socialmente. Também convivia com gente em Miami, porque passava férias aqui. Nos anos 1980, a cidade era um ponto de entrada para a cocaína nos Estados Unidos.

Em 1985, um amigo, que identificarei apenas como ‘Alex’, ofereceu-me a oportunidade de participar na transacção de vários quilos de cocaína, e eu aceitei.

Por estar envolvido nos negócios da família, tinha acesso a grandes quantias de dinheiro e usei uma grande parte, sem que os meus pais soubessem, para montar um esquema de aquisição de grandes quantidades do produto.

Eu e ‘Alex’ comprámos três quilos para revender e obter lucros: ficámos, à partida, com 40 mil dólares, para cada um, já depois de eu repor o que havia retirado da firma. Para facilitar o esquema e o ocultar da minha família, pagava a outros para que viajassem até Miami e coordenassem o transporte do que eu comprava para chegar a  Seattle.

As margens de lucro entre o que pagava e vendia eram enormes – dava para pagar a intermediários e não me envolver directamente, mantendo uma considerável compensação.

Relocalizei a base para a Florida do Sul em busca de melhores preços e, no início de 1986, já vivia em permanência em Key Biscayne.

Os meus pais desconheciam o que eu fazia, porque o meu estilo de vida, de início, não se alterou. À medida que os meus recursos financeiros aumentavam, concebi um plano, menti à família e continuei. A minha vida tornou-se numa teia de mentiras que se repetia incessantemente.

A 20 de Junho de 1986, agentes da DEA detiveram ‘Alex’. Quando o algemaram e encontraram um quilo de cocaína num dos bolsos, ele tomou consciência que estava em apuros.

Decidiu cooperar imediatamente com as autoridades, revelando tudo sobre a nossa operação e identificando o seu sócio. Ao aceitar testemunhar contra mim, em tribunal, foi condenado a quatro anos de prisão, mas só cumpriu 27 meses.

Eu não sabia que ‘Alex’ estava a colaborar com a DEA. Encontrámo-nos ainda várias vezes e decidimos manter o negócio, com o intuito de obter fundos para o ajudar quando fosse libertado. Em 1987, recrutei mais pessoas para a distribuição da cocaína em Seattle.

Vivia como se nada tivesse ocorrido. Mantinha-me em contacto com ‘Alex’ mesmo estando ele na prisão.

A 11 de Agosto de 1987, fui capturado – a minha organização ilegal distribuía, naquela altura, aproximadamente 150 quilos de cocaína, o que valia uns quatro milhões de dólares. Pelas minhas estimativas, calculo que, só eu, tenha lucrado um milhão. Todo o dinheiro que não gastei até ser preso foi usado na minha defesa ou desviado por pessoas que estavam ligadas a mim.

“Os contribuintes americanos pagam uma quantia superior a 75.000 milhões de dólares todos os anos para colocarem na prisão mais de 2300 milhões de pessoas”, diz Michael G. Santos
[Na foto, recluso na Prisão Estudual do Arizona, em Florence)
© Matt York | AP | The Washington Post

Sabia bem que corria riscos, por isso tinha ao meu serviço um advogado, que cobrava honorários elevados. Ele disse-me que havia uma grande diferença entre ser incriminado e condenado.

Garantiu-me que ganharia facilmente o processo em tribunal, porque eu era jovem e não tinha cadastro. Ingénuo, dei-lhe todos os meus bens, e fiquei sem tostão.

Era, naturalmente, uma causa perdida. Não beneficiei sequer da benesse de uma fiança, fiquei logo preso. No entanto, nem assim desisti.

Na cadeia, pessoas que trabalharam para mim disseram-me que, numa área de armazenamento, ainda havia vários quilos de cocaína, no valor de dezenas de milhares de dólares. Autorizei a que fosse vendida aos meus compradores em Seattle.

Embora se tratasse do mesmo lote de droga da primeira acusação, fui alvo de uma segunda acusação.

No julgamento da primeira, testemunhei em minha própria defesa: as autoridades não tinham confiscado cocaína em minha posse, não haviam interceptado quaisquer comunicações telefónicas e o caso contra mim baseava-se em depoimentos de informadores. Menti perante o grande júri, assegurando que estava inocente. Não convenci ninguém.

Apesar das mentiras que disse aos meus pais, eles não me negaram o seu apoio. Deve ter sido muito doloroso para eles, sobretudo porque eu continuava a mentir e exprimia remorso. Só quando me condenaram é que comecei a tomar consciência real das minhas más acções.

Um livro que me inspirou foi o Tratado da Filosofia, de Sócrates – ele empenhou-se em servir a sua pena de morte com dignidade, e eu assumi o mesmo propósito.

No que constituiu uma admissão sem precedentes, a Universidade de Connecticut, no topo 20 das 20 melhores instituições do ensino superior nos EUA, permitiu que Michel G. Santos completasse o primeiro ano de doutoramento. O sistema prisional impediu-o de prosseguir os estudos, ao proibir a biblioteca de lhe emprestar livros
© Cortesia de | Courtesy of Michael G. Santos

Escrevi ao procurador, aceitando responsabilidade total pela distribuição da cocaína. Confessei perjúrio e avoquei o meu comportamento criminoso. Fui condenado a um total de 45 anos de prisão e a uma multa de 500 mil dólares com juros anuais de 18%, até completar a sentença.

Os primeiros seis meses foram cumpridos na Penitenciária dos Estados Unidos (USP), em Atlanta, Geórgia. Mudaram-me depois para as Federal Correctional Institutions em McKean, na Pensilvânia, e mais tarde para Fairton, na Nova Jérsia. Permaneci nestas prisões de segurança média durante dois anos.

Fui posteriormente transferido para campos de segurança mínima, completando os últimos nove anos nas prisões de Florence (Colorado); de Lompoc, de Thaft e de Atwater (Califórnia).

Creio que fui transferido porque o meu nível de segurança diminuiu ou porque eles não gostavam do que eu escrevia sobre o sistema prisional.

Questiono-me se um crime não violento merecia uma pena tão pesada. Consultei dados do Tratado da Filosofia, de Sócrates e constatei o seguinte: os assassinos servem uma média de oito anos, dois meses; os violadores, cinco anos, oito meses; os assaltantes armados, menos de quatro anos; os traficantes de droga, uma média de um ano, nove meses; a média geral nas prisões federais é de dois anos e um mês.

Muitas pessoas atribuem muitos dos problemas da sociedade às drogas, e eu concordo que as drogas arruínam vidas.

Mas devemos condenar quem vende a cocaína por todos os crimes que os toxicodependentes cometem? Não responsabilizamos os vendedores de bebidas alcoólicas por acidentes de condutores embriagados; nem os de armas por um tiroteio numa estação de serviço.

“Precisamos de um sistema melhor numa sociedade mais aberta”, diz Michael G. Santos. “Estamos a falhar porque as prisões não estão a tornar-se lugares mais seguros”
© slate.com

Não vejo o meu papel como ‘homicida’ embora compreenda que outros o possam identificar desse modo. Como seres humanos, temos livre arbítrio e colhemos o que semeamos. Tomei decisões erradas e sinto vergonha de ter tido falhas de carácter que permitiram que essas actividades me seduzissem.

Eu traficava e vendia grandes quantidades a outros na cadeia de fornecimento, por isso, não fiquei exposto ao hediondo abuso de drogas nas ruas Também era demasiado ignorante quanto às implicações morais do que fazia. Apesar de tudo, só me envolvi no tráfico para adultos que o consentiam.

Lamento o meu envolvimento mas não me sinto responsável pelas escolhas dos que compravam. Talvez seja uma falha de personalidade que persiste.

Em vez de me conformar com as décadas de sentença que tinha de cumprir, centrei-me nos passos a dar para me educar. Queria emendar as más decisões e podia chegar lá através da escrita, provando que merecia as bênçãos de uma nova vida.

Essa autoconfiança guiou-me durante a minha odisseia homérica de preparação para regressar à sociedade. Mesmo nos momentos piores., aprendi a enfrentar os desafios e desenvolvi um sentimento de orgulho por os vencer.

Todos os meus dias na prisão foram passados de forma muito disciplinada: acordava cedo e trabalhava afincadamente para criar oportunidades que me poderiam ajudar a sair da cadeia como uma pessoa bem-sucedida. A minha relação com os outros detidos era distante, até certo ponto.

Nunca quis ser parte da subcultura da prisão porque reconheci-a logo como cultura de fracasso. Fiquei impressionado com o vazio de esperança e negativismo.

Não participava em actividades sociais, como desportos de equipa ou jogos de mesa. Não via televisão. Comia sozinho.

Escolhia criteriosamente as pessoas com quem queria estar. A cada passo que dava, calculava riscos e recompensas. Esta estratégia protegeu-me dos predadores, e dos abusos de que vários reclusos são vítimas.

Em 25 anos de cadeia, dei aulas a milhares de detidos e escrevi livros com o intuito de ajudar a compreender a disciplina necessária para superar ou vencer as indignidades da clausura.

Batalhei para que outros assimilassem o poder libertador e transformador da educação. Tentava ser um exemplo de cada palavra escrita ou dita por mim.

Eu já tinha elaborado um plano em três partes para sobreviver. A primeira, era educar-me; a segunda, contribuir para a sociedade; e a terceira, construir uma sólida rede de apoio. Três componentes interligadas.

Ao contactar universidades, encontrei professores dispostos a assistir-me. Enviavam-me livros, pelo correio, e eu completava longos ensaios e exames, atestando que dominava os temas.

No dia 24 de Junho de 2003, Michael e Carole, sua amiga de infância, enfermeira divorciada e com dois filhos, casaram-se numa sala de visitas da Prisão Federal de Fort Dix (Nova Jérsia)
© Cortesia de | Courtesy of Michael G. Santos

Licenciei-me em Ciência Política pela Universidade de Mercer, uma das mais antigas e notáveis universidades privadas da América, fundada em 1883, em Macon (Geórgia).

Posteriormente, conclui um mestrado na Universidade de Hofstra, no estado de Nova Iorque – uma instituição também privada e prestigiada, onde se realizaram os debates presidenciais de 2008 e 2012.

A minha tese de mestrado descreve o conceito de um sistema de justiça que mede o sucesso de acordo com os esforços do indivíduo para se reconciliar com a sociedade e se prepara para vir como um cidadão cumpridor da lei.

Este sistema é diferente do actual, que mede o número de páginas de calendário em que um indivíduo é deixado ao abandono num depósito humano.

No que foi uma admissão sem precedentes, a Universidade de Connecticut, no top 20 das melhores instituições de ensino superior nos EUA, permitiu-me completar o primeiro ano de doutoramento. O sistema prisional impediu-me de prosseguir os estudos, ao proibir a biblioteca de me emprestar livros.

Foi, assim, interrompido o meu caminho para encerrar mais uma etapa de educação formal. Não espero voltar à universidade, porque agora tenho de consolidar a minha carreira.

Aos 23 anos, quando entrei na prisão, estava casado, mas a minha mulher exigiu o divórcio. Quem a pode culpar? Eu tinha décadas de uma pena para cumprir; ela, uma vida inteira pela frente.

A minha segunda mulher, Carole, é maravilhosa. Conhecíamo-nos desde adolescentes, mas não éramos amigos.

Frequentámos o mesmo liceu, em Lake Forest Park, subúrbio de North Seattle. Quando completei os estudos na Shorecrest High School, em 1982, seguimos rumos diferentes, e perdemos o contacto um do outro.

Um dia, em 2002, já divorciada e com dois filhos, Carole Goodwin estava a organizar uma gala de finalistas de Shorecrest e viu alguns dos ensaios académicos que eu publicara. Eu cumpria o 15º ano da minha sentença.

Fiquei surpreendido quando um guarda me entregou uma carta dela, mencionando a reunião da escola e criticando as minhas aviltantes decisões. Achei-a presunçosa, porque ignorava os esforços que eu já fizera para me redimir dos meus erros.

Respondi à carta, lamentando o passado e explicando como estava a tornar-me num cidadão cumpridor das leis. À carta seguiu-se troca de correspondência e o romance. Apaixonámo-nos, mas sabíamos que não seria fácil, para nenhum de nós, porque Carole vivia em Lake Oswego, no estado do Oregon, Costa Oeste dos EUA.

Queríamos ficar juntos, mas eu preferia esperar que me libertassem. Receava que me colocassem em solitária ou transferissem para outra prisão.

Seria traumático para Carole. Ela insistiu, e mudou-se para Nova Jérsia, na costa Leste, no Outono de 2002, para me visitar, por poucas horas, três dias por semana – sem um minuto de privacidade.

Recluso na cadeia de Maricopa, em Phoenix, Arizona, em 30 de Julho de 2010
© Joshua Lott | Reuters | Newsweek

Os ensaios que eu enviava para a academia deram-me alguns recursos financeiros, mas não tinha possibilidade de os promover publicamente, e o casamento necessitava de estabilidade financeira.

Para não me sentir um fardo, comprometi-me em poupar para ajudar a pagar os estudos de enfermagem de Carole, e ela ter um bom emprego.

No dia 24 de Junho de 2003, casámo-nos numa sala de visitas da Prisão Federal de Fort Dix (Nova Jérsia), mas durante uma década só pudemos exprimir o nosso amor nestas salas, por carta e/ou telefonemas – constantemente sob o olhar vigilante dos guardas prisionais.

Carole trabalha num hospital a tempo inteiro e fez, entretanto, uma licenciatura e, em Janeiro último, registou-se para um mestrado na Universidade de São Francisco.

A sua ambição é chegar ao doutoramento e eu, para a incentivar, comecei a chamar-lhe Dra. Santos. Temos ambos 49 anos, e decidimos apostar nas nossas carreiras.

Respondi às suas perguntas de um computador que tenho na casa onde vive a minha mulher. É uma casa linda, totalmente mobilada, que nos foi oferecida por Lee Nobmann, patrão da Golden State Lumber, que eu conheci na prisão de Lompoc quando ele cumpria uma sentença de 13 meses por evasão fiscal.

Quando foi libertado, ele prometeu que me daria um lar e um emprego, mesmo que não estivesse relacionado com a actividade da sua empresa.

Eu e Carole estamos a construir agora uma ampla moradia num condomínio familiar, na idílica cidade de Petaluma, a cerca de 70 quilómetros de São Francisco. Mudaremos para lá, quando ficar pronta, em Março.

Na segunda-feira, 13 de Agosto de 2012, levantei-me às 3 horas da madrugada, mais cedo do que era habitual (cerca das 5h30). Eu estava confinado a um dormitório aberto na Prisão Federal de Atwater, na Califórnia. Há anos que ansiava pela minha libertação e esse dia chegara.

Sentei-me a uma mesa vazia, extasiado. Para manter a rotina matinal e a energia, fiz uma corrida que terminou às 06h15. Voltei á cela para tomar banho e me barbear. Tudo tinha um sabor diferente. Vesti-me e fui-me sentar no pátio. Precisava de ficar a sós com o meu pensamento: o que iria acontecer lá fora?

Às 7h15, ouvi o meu nome por um dos altifalantes. Despedi-me dos outros reclusos, peguei no meu saco com livros e deixei a penitenciária. As minhas pernas pareciam borracha ao caminhar por uma área que antes me estava vedada.

Michael e Carole, marido e mulher, já podem viver na mesma casa depois de quase uma década em que as comunicações se limitavam às visitas à cela, telefonemas e cartas
© Michael G. Santos

Atravessei vários portões, durante 30 minutos, até ver a minha mulher. Ali estava ela, radiante, as lágrimas a correrem pelo rosto, as mãos em forma de uma prece, olhando-me, como se não acreditasse, que iria ter com ela.

O sol da Califórnia brilhava. Abraçámo-nos e beijámo-nos, seguindo depois, de carro em direcção à grande cidade de São Francisco.

Carole ofereceu-me um iPhone. Nunca tinha tido um telemóvel e não sabia usá-lo, mas ela ensinou-me a desbloqueá-lo e a fazer chamadas, para toda a minha família. Tudo parecia irreal.

Enquanto a minha mulher conduzia, eu comia uma pizza. Posso agora comer tudo o que me apetece e vestir as roupas que mais gosto.

Muita coisa me surpreendeu, como as imensas pessoas com piercings e tatuagens – não esperava que esta arte corporal fosse parte da sociedade mas sim exclusiva das prisões.

Após um quarto de século, fui libertado para iniciar uma fase de transição durante um ano. Passei os primeiros seis meses numa halfway house, um centro prisional mais aberto do que a cadeia tradicional, com recolher obrigatório às 21h00. Parece um hotel no coração de São Francisco, o que alguns designam como “a parte má” da cidade.

No entanto, situa-se a pouca distância de lojas lindas e do bairro financeiro da cidade Todas as manhãs, às 05h30, deixo a halfway house e conduzo até ao local onde trabalho, um escritório emprestado por um dos meus patrocinadores, com uma secretária e um computador onde escrevo artigos e livros.

Aos fins-de-semana, sou autorizado a ir dormir a casa da minha mulher. A 12 de Fevereiro, terei feito mudança para detenção domiciliária.

Já poderei viver com Carole – pela primeira vez, numa década de casamento –, embora ainda sob a vigilância atenta do sistema prisional. Só poderei sair de casa para trabalhar, mas isso não me perturba. Não bebo álcool nem preciso de ir a festas, porque a minha vida gira muito à volta do meu trabalho.

Nos EUA, o Código Penal é muito complexo. Quando fui condenado, em meados dos anos 1980, o sistema em vigor permitia aos presos retirar anos às suas sentenças se eles não cometessem infracções disciplinares.

Nunca fui castigado e, por isso, permitiram-me completar os meus 45 anos num total de 26, o último em sistema comunitário. Prevejo que ficarei sob este regime de ‘liberdade condicional’ durante três a quatro anos. Só deverei recuperar a liberdade total por volta de 2017.

“Nunca quis ser parte da subcultura da prisão porque reconheci-a logo como cultura de fracasso. Fiquei impressionado com o vazio de esperança e negativismo”, diz Michael G. Santos
© New Yorker

No dia 6 de Fevereiro, dei uma palestra na célebre Universidade de Berkeley, na Califórnia, para uma audiência de cerca de 700 pessoas.

Adorei a experiência, e ver como os estudantes se mostraram interessados num maior activismo social na América. Senti-me encorajado. Estou vivo, sou parte do tecido humano, um preso que quebrou as correntes. Voltarei lá na Primavera.

Tenho outras conferências agendadas nas universidades de Stanford (uma das maiores instituições de ensino e investigação) e de São Francisco. Não, não acho extraordinário que os administradores das prisões me deixem partilhar a minha história em auditórios universitários.

Embora tenha publicado vários livros enquanto estive encarcerado, muitos tentaram bloquear-me e silenciar-me, mas consegui derrotá-los.

Considero a minha missão, de ajudar a mudar o sistema prisional na América, muito mais extraordinária do que os convites para palestras, ainda que estes me entusiasmem.

Os contribuintes norte-americanos pagam uma quantia superior a 75.000 milhões de dólares todos os anos para colocarem na prisão mais de 2300 milhões de pessoas – e têm o direito de saber como esses recursos estão a ser esbanjados num perpétuo ciclo de fracasso e não de sucesso.

Precisamos de um sistema melhor numa sociedade mais aberta. Estamos a falhar porque as prisões não estão a tornar-se lugares mais seguros.

[Em 2015, eram estas as estatísticas do sistema prisional americano, segundo a revista Newsweek:
  • Há mais de 2,2 milhões de pessoas nas prisões americanas – mais do que toda a população do Novo México e a maior população prisional do mundo;
  • Os EUA têm também a mais alta taxa prisional do mundo: 724 em cada 100 mil pessoas;
  • Metade da população prisional do mundo, cerca de nove milhões de pessoas, concentra-se nos Estados Unidos, na Rússia e na China;
  • Mais de 2,7 milhões de crianças nos EUA têm os pais presos;
  • Há mais de seis mil prisões nos EUA;
  • Em algumas regiões dos EUA, há mais pessoas na prisão do que na universidade;
  • A população prisional dos EUA mais do que quadriplicou desde o início dos anos 1980, quando entraram em vigor as leis contra o consumo e tráfico de droga; a sobrelotação das cadeias deve-se ao facto de criminosos violentos serem libertados mais cedo, parar abrir espaço a suspeitos não-violentos de crimes relacionados com drogas, obrigados a cumprir uma pena mínima independentemente do que disser o juiz – estes representam cerca de metade dos reclusos em prisões federais;
  • O custo anual médio de um recluso numa prisão federal é de cerca de 29 mil dólares; o sistema custa aos contribuintes americanos cerca de 70 mil milhões de dólares anualmente.]

Michael G. Santos numa palestra que deu na Universidade de Berkley, quando ainda em liberdade provisória, em 2013
© Cortesia de | Courtesy of Michael G. Santos

Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 24 de Fevereiro de 2013 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on February 24, 2013

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