Entrevista com um assassino: “Rabin colocou Israel em perigo”

Em 1995, Hagay Amir calibrou as balas para garantir que o seu irmão perfurava o colete que protegia o primeiro-ministro israelita. Este artigo resulta de três meses de “diálogo”, através do Facebook, onde o cúmplice do crime abriu uma página assim que saiu da prisão. (Ler mais | Read more…)

Um ilustração de Amitai Sandy, com o rosto de Yitzhak Rabin, publicada pelo diário Ha'aretz. Em tribunal, o cúmplice do seu assassino, Hagay Amir, declarou que fez abortar duas tentativas de o irmão, Yigal, matar o primeiro-ministro. Garantiu também que este não o avisou de que iria usar as armas por ele calibradas para consumar o crime. © Amitai Sandy | Ha’aretz

O rosto de Yitzhak Rabin (numa ilustração publicada pelo diário Ha’aretz), o primeiro-ministro que os irmãos Yigal e Hagay Amir mataram
© Amitai Sandy

Com a ajuda de Ami Kaufman, co-fundador do site +972 Magazine, o único que até agora lhe fizera uma entrevista, chegámos à página de Facebook de Hagay Amir, libertado da prisão de Ayalon a 4 de Maio de 2012, após cumprir uma sentença de 16 anos e meio por ter ajudado o seu irmão, Yigal, a matar o primeiro-ministro israelita Yitzhak Rabin, em 1995.

Não há foto de perfil e o nome está em hebraico. Era difícil encontrá-lo. Várias dúvidas surgiram de imediato: Pedimos “amizade” ou enviamos apenas uma mensagem com o pedido para ele nos detalhar a sua história? E como nos dirigimos a um assassino: “Caro Senhor”? E como terminamos: “Cordiais saudações”?

Optámos por não seguir o exemplo de Kaufman, que se tornou “amigo” em Julho – assim que Hagay criou a sua página “para ajudar Yigal” – e conseguiu a entrevista dois meses depois. Nós encetámos o diálogo, pela via privada do Facebook, a 13 de Setembro.

“Sr. Hagay Amir”, assim iniciei a minha mensagem enunciando as razões do contacto. Terminei com “cumprimentos”. Não esperava resposta, mas valia a pena tentar.

No dia seguinte, surpreendentemente, o destinatário reagiu: “Olá, Senhora Santos Lopes. Obrigada pelo seu mail. Antes de lhe dar uma resposta, gostava de saber como é que esta entrevista vai ser conduzida: através de e-mails, por telefone ou pessoalmente? Não falo inglês, por isso, as minhas respostas teriam de ser traduzidas. Obrigada. Hagay Amir.”

Era sábado ou Shabbat, dia de descanso semanal para os judeus, e temendo que o devoto Hagay pudesse desistir, enviámos sem hesitar um conjunto de dez perguntas para ele reflectir, no domingo: a primeira sobre as razões para matar Rabin; a última sobre qual a solução que os irmãos Amir propõem para o conflito com os palestinianos.

Hagay (de T-shirt branca sob camisa azul escura), com o irmão, Yigal (à dir.), em tribunal admitiu que ambos tiveram “muitas conversas com os líderes do Hamas”, movimento islamista que governa Gaza. Na cadeia, “eles respeitavam-nos e nós respeitávamo-los – cá fora, continuamos a ser inimigos”
© VICE France

A 15 de Setembro, Hagay comunicou: “Olá Senhora Santos Lopes. Infelizmente, esta semana não será possível [responder] porque são os nossos feriados [de 17 a 18 o Ano Novo Judaico ou Rosh Hashanah; de 25 a 26, o Yom Kippur, ou Festa da Redenção].”

“Terei gosto em olhar para as suas perguntas e responder assim que terminarem as nossas celebrações (dentro de duas semanas). Uma vez que estas questões exigem reflexão e têm de ser traduzidas, não quero fazer isso apressadamente.”

A 18 de Outubro, outra mensagem, menos formal: “Olá Margarida. Desculpe não ter podido responder mais cedo. O meu computador avariou e agora estou a escrever no da minha irmã. Entrarei em contacto consigo assim que o consertar, nos próximos dias. Já comecei a trabalhar na tradução. Obrigada. Hagay.”

Finalmente, a 24 de Outubro, chegou um primeiro conjunto de respostas, sem seguir o guião das perguntas, com menos cordialidade e maior contenção: “Olá. As questões que coloca são demasiado complexas para uma entrevista como esta, e não sei até que ponto você entende a situação israelita.”

“Notei que obteve informações de Ami Kaufman, que tem opiniões muito de esquerda e é, naturalmente, tendencioso no modo como dá as notícias; além disso, na minha opinião, ele também é influenciável e está desligado da realidade.”

Kaufman, que foi editor em dois jornais israelitas, o Ha’aretz e o diário financeiro Calcalist, além de correspondente da rádio israelo-palestiniana 93.6 RAM FM, ficou ofendido quando lhe contámos o que Hagay escrevera.

“Ora, era o que mais me faltava, ser analisado por um psicopata”, comentou, já que ele próprio admitira ter sido muito duro “pedir amizade a um assassino”, ainda que tenha “a opção de o “desamigar” quando quiser”.

Não o fez, talvez porque Hagay tem vindo a partilhar, sempre em hebraico, na sua página com mais de 600 seguidores, o “diário” que escreveu na prisão – algo que evitou abordar na entrevista à revista 2.

Hagay também se esquivou a descrever como foi voltar à casa dos pais, judeus provenientes do Iémen, em Herzliya – cidade no Centro de Israel e que deve o seu nome a Theodor Herzl, o ideólogo do Sionismo, a que, ironicamente, se opõe a dupla de assassinos (que não aceitam o ideal de um “Estado dos judeus” secular).

Hagay Amir diz que não sente remorsos. Após ser libertado, voltou a casa dos pais, judeus iemenitas, em Herzliya, no Centro de Israel, cidade que deve o nome a Theodor Herzl, o ideólogo do sionismo, a que se opõem, ele e o seu irmão
© Ori Golan

Uma das vizinhas, Allison Kaplan Sommer, publicou um artigo crítico no Ha’aretz: “Eu até teria estômago para aceitar a sua liberdade, depois de cumprida a pena, se ele tivesse saído com um pouco de humildade, mas Amir deixou a cadeia em triunfo, fazendo com os dedos o “V” da vitória, declarando que não se arrependia do que fizera, que estava orgulhoso e que repetiria o crime (estranho, dado que, em tribunal, jurou que nada fez).

“Quem sou eu para culpar uma mãe ou irmã, jubilantes por o verem sair da prisão, mas deveriam ter celebrado dentro de portas, por respeito à família de Rabin.”

Em tribunal, Hagay Amir declarou que fez abortar duas tentativas de Yigal matar Rabin e garantiu que o irmão não o avisou de que iria usar as armas por ele calibradas para consumar o crime.

Hagay, 45 anos, e Yigal, de 42, são oriundos de uma família profundamente religiosa. A mãe, Geula, é educadora de infância, e o pai, Shlomo é um sofer, escriba dos rolos da Torah (Antigo Testamento).

Tendo frequentado yeshivot (escolas onde se ensina o Talmude, um dos livros sagrados do Judaísmo), era natural que os dois irmãos não aceitassem as “concessões” que Rabin estaria disponível para fazer aos palestinianos, sobretudo na Cisjordânia, considerada pelos mais devotos como território sagrado da “Judeia e Samaria”.

O assassínio de Rabin, a 4 de Novembro de 1995, no final de um comício pela paz, antecedeu uma campanha da extrema-direita de incitamento ao ódio, com cartazes comparando o primeiro-ministro a Hitler.

Hagay admite que ele e Yigal (que ele trata por “Gali”) planearam matar Rabin e confessou, após 16 anos e meio de isolamento, não sentir remorsos. Nas audiências em tribunal e nos diários da prisão que tem vindo a publicar no Facebook, insiste em que um agente do Shin Bet (serviço de segurança interna) obteve informação prévia sobre o que os irmãos urdiam, e nada fez para impedir o crime.

“Tudo poderia ter ocorrido de forma diferente, sem termos sido apanhados”, lamentou Hagay, manifestando-se “desapontado com os sionistas religiosos ashkenazim“. Estes são os judeus de origem europeia, a elite que tem governado Israel, enquanto os mizrahim (de origem no Médio Oriente e Norte de África), como os dois irmãos, se sentem de “segunda classe”.

Yigal Amir (na foto a ser conduzido por polícias a uma sessão no tribunal) e Hagay provêm de uma família profundamente religiosa e não aceitavam as “concessões” de Rabin aos palestinianos
© Nati Harnik | AP | The Guardian

Na nossa troca de mensagens, Hagay só exprime desprezo pelo homem que reconheceu a OLP, de Yasser Arafat, em 1992: “Yitzhak Rabin podia falar muito de paz – como toda a esquerda neste país – mas, de facto, não fez nada para a conseguir.”

“Apenas complicou a situação na região ao trazer mais tropas armadas; e quando se tem mais soldados e mais armas num lugar pequeno como Israel daí só pode resultar mais violência, como toda a gente pode observar hoje.”

As “tropas” a que se refere são os cerca de 9 mil polícias da Autoridade Palestiniana, os quais, segundo os Acordos de Oslo – e depois de Arafat ter deixado o exílio na Tunísia, em 1994 –, foram autorizados a ser portadores de armamento ligeiro, no enclave de Jericó (Cisjordânia) e na Faixa de Gaza, “para garantirem a segurança de Israel”.

No entanto , perante a imparável expansão dos colonatos judaicos e crescente influência dos islamistas do Hamas, também a Fatah, de Arafat, começou a recorrer a ataques terroristas. Para muitos israelitas, e para os irmãos Amir, em particular, Rabin tornou-se um rodef, ou alguém que, segundo a lei judaica, coloca a vida de outro em perigo. Neste caso, um país.

Hagay considera que “a actual situação não se deve aos Acordos de Oslo, mas à insistência de Rabin em não resolver a raiz do conflito, que ainda persiste: “O problema dos refugiados de 1948.” E enquanto este problema não for resolvido as guerras continuarão.”

“Em 1994, quando vimos que Rabin se mostrava indiferente ao problema real, tomámos consciência de que ele só nos emaranharia em guerras que iriam agravar-se porque são travadas numa pequena área do país.”

“É preciso compreender que a esquerda nunca resolverá o problema dos refugiados porque a maioria dos esquerdistas vive nas casas e nas terras roubadas que pertenciam aos refugiados – e não há maneira de eles devolverem essas propriedades tão valiosas, nem sequer pela causa da paz. E não há hipótese de uma pessoa a quem foi roubada a casa e a terra dos seus antepassados aceitar o usurpador sem que este recupere o que era seu”.

Esta resposta gera perplexidade, porque parece indiciar que Hagay Amir favorece o retorno dos refugiados palestinianos da guerra de 1948 às suas terras no que hoje é Israel, um regresso que religiosos e laicos consideram “o fim do Estado judaico”, mas ele não clarifica.

Yitzhak Rabin (à dir.), chefe de Estado-Maior do Exército, acompanhado de Moshe Dayan (ao centro) e Uzi Narkiss, entra em Jerusalém Leste depois da vitória israelita na guerra de 1967
© National Photo Collection of Israel, Photography dept. Government Press Office

Calcula-se que o total de refugiados e seus descendentes seja superior a quatro milhões – embora sondagens recentes indiquem que a maioria dos palestinianos na diáspora aceitaria compensação financeira (uma das propostas da ONU) em troca do património perdido desde 1948.

Igualmente enigmática foi a resposta que o soldador que aspirava a estudar Física e agora pretende seguir Engenharia de Estruturas deu a Ami Kaufman quando este lhe pediu que explicasse a menção a uma “lenta mas inexorável desintegração do Estado”.

Assim falou o irmão de Yigal Amir, a cumprir uma pena perpétua pelo assassínio de Rabin (mais seis anos por ter ferido um guarda-costas do primeiro-ministro e outros oito por conspiração para homicídio): “Se houver um acordo para um Estado binacional, os judeus poderão viver aqui; mas sem este acordo, [Israel] vai acabar como no tempo das cruzadas.”

Hagay refere-se ao tempo em que, há 200 anos, os Cruzados, seguindo o apelo do Papa Urbano II, foram da Europa para a “Terra Santa” reconquistá-la aos “infiéis”. Nesse período, a maioria dos não cristãos de Jerusalém foram massacrados. Barricados nas suas sinagogas, os judeus defenderam-se, mas acabaram mortos pelo fogo ou vendidos como escravos.

“O Estado judaico é importante, mas não há justificação para um Estado dos judeus [como defendia o sionista Herzl]. Um Estado judaico é o que respeita os valores judaicos – o Shabbat, o estudo da Torah e por aí adiante.”

“O Estado dos judeus é governado por pessoas que apenas são judeus, sem obrigações para com o Judaísmo, que é, basicamente, o actual Estado. Foi assim que Herzl o definiu e ele sabia bem distinguir um do outro.”

Ami Kaufman disse-nos que não ficou surpreendido com estas afirmações: “Esta é a opinião de muita gente da extrema-direita que não é sionista e quer criar um Estado teocrático, semelhante ao Irão ou à Arábia Saudita.”

Na sua primeira e longa resposta às nossas perguntas, Hagay afirma: “Rabin seguiu este caminho sem saída, apesar de tudo, ao mesmo tempo que reforçava o inimigo e punha em risco o seu próprio povo. Concluímos que só havia uma maneira de o travar, e agimos para evitar banho de sangue maior.”

“Segundo o Judaísmo, se um homem arriscar a vida de outro homem, temos de o impedir de todas as formas que pudermos, mesmo que isso lhe custe a vida, mais ainda, portanto, quando esse homem coloca em perigo a vida de milhares de pessoas. Não agimos motivados por ódio ou outro motivo pessoal, mas para salvar o povo judaico que vive em Israel.”

Em 1948, na sequência da guerra que acompanhou a criação de Israel, 85% da população árabe da Palestina histórica foi forçada a abandonar as suas casas e terras, segundo dados da UNRWA

Hagay prossegue: “As pessoas da esquerda tentaram atacar o que fizemos como um acto de egoísmo, apenas para não terem de discutir os nossos argumentos. Além disso, se achassem que matámos só por matar, não teriam dado tanta importância às nossas opiniões e não se teriam esforçado tanto para nos silenciar e nos deixarem na prisão sem voz durante tantos anos.”

“Evidentemente, as poucas vezes que eles tentaram ouvir o que tínhamos para dizer não conseguiram responder, com razoabilidade, aos nossos motivos”, acrescenta.

“Escolheram, portanto, a via mais fácil, que foi a de nos calarem e fazerem, simultaneamente, uma lavagem ao cérebro a todo o povo israelita, com disparates baseados em mentiras, como as de que fizemos aquilo [o crime] porque discordávamos das opiniões de Rabin.”

Ami Kaufman crê que Hagay lhe deu a primeira entrevista precisamente porque “não confia nos media tradicionais, que terão, talvez, distorcido as suas palavras no passado”. Por outro lado, “ter-se-á também deixado seduzir com a ideia de “falar com o inimigo”, o que lhe daria prazer ou até a esperança de convencer alguém [como eu] a mudar de ideias”.

A maior surpresa do blogger ocasional do site Half & Half e um dos mais influentes analistas políticos de Israel foi “constatar até que ponto Hagay é eloquente e organizado, como as suas posições sobre o mundo são muito claras, como ele justifica as suas acções e como tem uma resposta para todas as perguntas que lhe são formuladas”.

A 3 de Novembro, continuando a mensagem que, a 24 de Outubro me enviara, Hagay escreveu como se não tivesse havido um interregno: “Muitos seguidores da esquerda no país alegam que se Rabin estivesse vivo teria concluído os Acordos de Oslo e haveria paz no Médio Oriente.”

“Acredito plenamente que o principal problema, hoje, é o problema dos refugiados árabes de 1948 – e enquanto este problema não for resolvido para satisfazer os refugiados, porque são eles que combateram contra nós, o conflito permanecerá.”

Ignorando o pedido que lhe tinha sido feito para ser mais claro quanto ao retorno dos refugiados – um dos mais espinhosos do “processo de paz” –, enfatizou: “A esquerda em Israel não pensa em resolver esta questão porque, simplesmente, a ignora, por dois motivos: 1) Muitos deles ocupam as terras dos refugiados e não as vão devolver. 2) Sabem que caso os refugiados regressem às suas terras não haverá uma maioria judaica em Israel e perderão o seu poder como governantes – a única razão por que vieram para Israel.”

“Portanto”, adianta, “é claro que, mesmo se Rabin continuasse a pôr em prática os Acordos de Oslo, ele teria chegado ao mesmo beco sem saída de Ehud Barak [incapaz de, em 2000, concluir um acordo com Yasser Arafat e Bill Clinton, numa cimeira em Camp David], mas seria em condições piores do que as actuais.”

Mulheres na Faixa de Gaza enfrentam soldados israelitas durante a primeira Intifada (1987-1994), quando Yitzhak Rabin prometeu “quebrar os ossos” dos palestinianos
© Middle East Monitor

Nas declarações a Ami Kaufman, Hagay admitiu que ele e o irmão tiveram “muitas conversas com os líderes do Hamas”, o movimento islamista que governa Gaza e é rival da Autoridade Palestiniana, que controla a Cisjordânia.

“Sobre as coisas mais importantes, naturalmente que discordávamos”, referiu. “Já muito sangue foi derramado. Do ponto de vista deles, não é possível que este Estado [Israel] exista aqui. Eu próprio não tenho a certeza se os judeus, como indivíduos, podem viver aqui. Em todo o caso, o ambiente [na prisão] não era de tensão; eles respeitavam-nos e nós respeitávamo-los, e é óbvio que, cá fora, continuamos a ser inimigos.”

Inquirido sobre se esta proximidade com os detidos islamistas se podia explicar por Hagay e Yigal defenderem um Estado judaico e o Hamas renegar Israel, o entrevistado comentou: “Respeitamos as opiniões de cada ser humano, por mais extremistas que sejam, por nisso, não havia qualquer problema em falarmos com os líderes do Hamas na prisão.”

A Kaufman dissera: “Se ser de direita é odiar os árabes, não somos de direita. Nunca tivemos problemas com os árabes. Para nós, eles são adversários ou inimigos nesta terra, e por isso os respeitamos.”

“Isso afasta-nos ideologicamente do rabi Meir Kahanne [assassinado em Brooklyn-EUA e cujo grupo foi ilegalizado por Rabin em Israel], embora eu concorde com uma parte da sua doutrina, que não conheço na íntegra.”

“Assassinámos Rabin pelas suas acções e pelo perigo que ele representava para o povo de Israel, não por causa das suas opiniões”, frisa Hagay na entrevista que nos deu.

“Os nossos opositores têm dificuldade em lidar connosco, ideologicamente, e culpam-nos de o termos atacado por discordamos das suas ideias, mas defender as suas acções seria ainda mais difícil quando estava à vista de todos ao que elas conduziriam o país e toda a região.”

“Deixe-me agora responder às suas restantes questões: decidimos que Rabin tinha de ser travado a qualquer preço dois anos antes da assinatura dos Acordos de Oslo em 1993 – já nessa altura nos tínhamos apercebido das consequências ruinosas que este acordo iria ter.”

“O que mais nos incentivou [a matar Rabin] foi ver o quanto os políticos enganavam a opinião pública, quando era óbvio para toda a gente com um pouco de inteligência no cérebro que tudo não passava de mentiras.”

Residentes de Hayovel no colonato judaico de Eli, na Cisjordânia Ocupada. Os palestinianos queriam que os Acordos de Oslo contemplassem o congelamento da colonização, mas Yitzhak Rabin não aceitou e até expandiu estas comunidades
© Jewish Telegraphic Agency

Os Acordos de Oslo nunca foram um tratado de paz, semelhante aos que Israel assinou com o Egipto e a Jordânia. Limitaram-se a ser um pacote de medidas com vista à resolução do conflito, tendo sido constantemente adiados os pontos mais contenciosos: a delimitação de fronteiras, a descolonização, a partilha dos recursos de água, o estatuto de Jerusalém e o “direito de retorno” dos refugiados.

Inicialmente, os palestinianos obtiveram autonomia na Faixa de Gaza e em Jericó, um enclave da Cisjordânia. Este território foi depois dividido em três áreas: A) controlo exclusivo da Autoridade Palestiniana; B) administração conjunta; e C) domínio exclusivo de Israel – cerca de 60% e onde se encontra a maioria dos colonatos judaicos.

m 2005, numa decisão unilateral. Israel retirou soldados e colonos de Gaza, mas todos os acessos por terra, mar e ar estão restritos.

“Apesar das muitas oportunidades que tivemos [para assassinar Rabin], não avançámos logo porque não bastava acreditar que tínhamos de o fazer”, continuou Hagay.

“Precisávamos também de provas de que não estávamos errados. Assim que se tornou claro que o terrorismo aumentava à medida que o acordo era aplicado, com centenas de pessoas a serem mortas, concluímos que um louco estava a conduzir-nos à destruição e que tínhamos de o parar a qualquer custo. Quando foram assinados os Acordos de Oslo II [em Setembro de 1995], tomámos a decisão.”

“Avaliámos muitas opções, usando o conhecimento que eu tinha obtido quando servi no Exército, mas muitas das nossas opções eram impossíveis [de pôr em prática] porque receávamos colocar em risco a vida de inocentes”, explica Hagay, que calibrou as balas de modo a que perfurassem o colete à prova de balas que Rabin usava.

“Estávamos dispostos a ficar na prisão o tempo que fosse necessário mas não queríamos ser mortos, até que, um dia, o meu irmão me informou que não se importava de morrer e que isso abria inúmeras oportunidades.”

“É necessário entenderem que a vontade de nos sacrificarmos não era uma declaração vã, mas uma convicção íntima que nos manteve fortes na cadeia, em condições extremamente difíceis, sem nunca quebrarmos. Jamais mudámos as nossas opiniões.”

Hagay Amir (aqui numa cerimónia em Jerusalém, em Novembro de 2012) não está arrependido de ter ajudado Yigal a matar Rabin. Uma grande maioria de israelitas está disposta a perdoá-los. “É preciso ter em conta que muitos concordam com as ideias dos Amir, de que os Acordos de Oslo foram um crime que só trouxe destruição e morte a Israel”, diz o jornalista Ami Kaufman
© Times of Israel

Sem contrição, Hagay revela: “O que o meu irmão fez era o mais simples e eu não concordava com ele, porque havia poucas hipóteses de ser bem sucedido, porque os guarda-costas que protegiam Rabin estavam treinados para este cenário.”

“Nessa noite [a 4 de Novembro de 1995], o meu irmão saiu de casa, sem eu saber, e o que depois aconteceu é mais ou menos conhecido.”

No final de um comício organizado para apoiar os Acordos de Oslo, na antiga Praça dos Reis, em Telavive, que hoje tem o seu nome, Rabin dirigia-se para o seu carro quando Yigal Amir disparou três balas com um revólver.

O assassino foi imediatamente detido por vários guarda-costas. Foi tudo tão rápido, que são escassos os detalhes e inúmeras as teorias de conspiração (a autópsia revela, por exemplo que o primeiro-ministro foi abatido pelas costas; mas há quem diga que foi baleado à queima-roupa, no peito).

A vítima viria a morrer, 40 minutos depois do ataque, devido a uma grande perda de sangue e perfuração dos pulmões, enquanto o tentavam operar num hospital da cidade.

No bolso do herói militar (da guerra de 1967), foi encontrado um pedaço de papel ensanguentado, com a letra de Shir Lashalom. Esta “Canção da Paz“, que os manifestantes entoaram na Praça, foi escrita em 1969 e tocada pela primeira vez por uma banda militar. Seria depois proibida por um general do exército, Rehavam Ze’evi, devido à sua mensagem antiguerra.

O sentimento de orfandade foi enorme porque, em 1995, uma maioria de israelitas ainda comparava Rabin a um utilitário Subaru, a quem recorriam em tempo de crise interna, em contraste com o eloquente Shimon Peres, a quem chamavam “o Mercedes guardado na garagem”, para melhorar a imagem do país perante o mundo.

Propositadamente ou não, Hagay Amir enviou-nos a sua última mensagem a 6 de Novembro – no mesmo dia em que, em 1995, se realizou o funeral de Rabin, no cemitério do Monte Herzl, em Jerusalém.

Tínhamos solicitado para falar com um dos seus líderes espirituais e ele reagiu deste modo: “Quanto a pedir a opinião de um rabi, não há qualquer possibilidade que algum esteja disposto a abordar este tema e a incriminar-se – sempre que contactámos rabis foi por meios indirectos, para nos protegermos a nós e aos rabis.”

Tínhamos insistido também em entender se a sua crítica aos “esquerdistas que ocupam as casas dos refugiados” era uma defesa do que os palestinianos consideram ser o “direito de retorno”, e Hagay disse:

-“Se esse “direito de retorno” for reconhecido (ou seja, se os refugiados forem autorizados a voltar às suas terras), o Estado judaico perde a maioria de que necessita e o governo será árabe – por isso é que a esquerda não aceita isto, e por isso é que não haverá paz com os árabes, já que esta é a sua principal condição para um acordo e eles não vão desistir dela.”

“Por que é que deixaram entrar Arafat e o seu exército e lhes deram armas quando todas as conferências de paz bloqueiam sempre devido à questão dos refugiados, fracassando qualquer tentativa de entendimento, como aconteceu em 2000, em Camp David?”, interrogou Hagay.

“Por que demos ao inimigo armas que rapidamente se viraram contra nós? Foi por isso que agimos para pôr fim a este processo.”

Quanto a Yigal Amir, estudante de Direito e Informática na Universidade de Bar-Ilan (ligada à direita), com formação militar na Brigada Golani, unidade de elite das forças de defesa israelitas, casou-se na prisão, em 2004, com Larissa Trembovler, imigrante de origem russa (a união foi validada por um tribunal rabínico e pelo Ministério do Interior – só depois de uma ordem do procurador-geral).

Em 2007, depois de uma fertilização in vitro, Larissa deu à luz Yinon Eliya Shalom, filho de Yigal. A brit milah, ou cerimónia da circuncisão, realizou-se a 4 de Novembro de 2007, no 12.º aniversário do assassínio de Rabin.

A morte de Rabin deixou uma nação em choque – ou como disse Danny Yatom, ex-chefe da Mossad, agência de espionagem: “Dispararam três tiros no coração do Estado de Israel.”

Como é que um judeu pôde assassinar outro judeu, num país onde, por exemplo, as manifestações dos colonos contra o Governo são dispersas por soldados drusos para evitar agressões físicas entre judeus? Recentes sondagens indicam, porém, que “30% dos israelitas aceita que Yigal Amir seja perdoado”; subindo este número para “mais de 50% entre os judeus ultraortodoxos”.

Os irmãos Amir não perdoaram a Yitzhak Rabin a (limitada) autonomia palestiniana oferecida a Yasser Arafat na Cisjordânia e Faixa de Gaza, depois dos acordos de Oslo assinados na Casa Branca, durante a presidência de Bil Clinton (ao centro)
© Middle East Eye

Ami Kaufman tenta uma explicação: “Creio que, à medida que o tempo passa, cada vez mais pessoas estarão dispostas a perdoar. Não é exclusivo de Israel. É preciso ter em conta que muitos israelitas concordam com as ideias dos Amir, de que os Acordos de Oslo foram um crime que só trouxe destruição e morte a Israel.

Para os dois irmãos, o seu crime não é tão mau como os dos ‘criminosos de Oslo’ que “causaram” a morte de milhares de israelitas. Os israelitas estão também a tornar-se mais extremistas e mais direitistas. Há agora mais pessoas a viver em Israel que partilham as ideias dos Amir – ou que, pelo menos, estão mais próximos deles do que estariam no passado.”

Sinal disso é a popularidade crescente de partidos como o Habayit Hayehudu (Casa Judaica), do milionário, antigo dirigente dos colonos e ex-comando militar Naftali Bennett, que seduziu religiosos e seculares, a maioria jovens, ao defender a anexação de 60% da Cisjordânia e rejeitar um Estado palestiniano.

Durante a campanha para as recentes eleições [22 de Janeiro 2013], um dos amigos de Hagay Amir no Facebook perguntou-lhe em quem iria votar o seu irmão, Yigal. A resposta foi: “Bennet; em quem mais poderia ser?”

Mais tarde, quando a imprensa hebraica começou a veicular esta informação, Hagay retractou-se, dizendo que estava a ser “sarcástico”, que não sabia se Yigal iria sequer votar, mas que, “certamente, não seria em Bennett”.

Ao contrário do que previam todas as sondagens, Bennett não se tornou na terceira força política (o lugar foi ocupado por um novo partido centrista), mas, embora a direita tenha perdido votos, a maioria dos analistas nacionais é unânime em considerar que os israelitas reprovaram Benjamin Netanyahu – um dos maiores críticos de Rabin -, mas não as suas políticas radicais, que inviabilizam o Estado com que os palestinianos sonhavam quando assinaram os Acordos de Oslo.

[Bennet conquistou 12 dos 120 lugares do Parlamento e é membro da coligação de Netanyahu, para a qual voltou a ser convidado após as eleições de 2015].

“Este homem é um criminoso com lógica”

Hagay Amir, numa foto que partilhou na sua página de Facebook, em Novembro de 2013
© Nira Yadin | VICE

Assim que Hagay Amir nos enviou  a última mensagem, dando por concluída a sua entrevista, contactámos o Rabi Marc Gopin, nos Estados Unidos, e o psicanalista Carlo Strenger, em Israel, para contextualizarem as respostas que o irmão (e cúmplice) do assassino de Yitzhak Rabin deu às nossas perguntas. O primeiro aceitou o convite desde que as suas palavras “não se misturassem com as de um assassino”. O segundo ficou sem palavras.

Strenger, um dos mais influentes activistas políticos israelitas, colunista do diário Ha’aretz e autor de várias obras, designadamente, O medo da insignificância – Como dar sentido às nossas vidas no século XXI (Ed. Lua de Papel/LeYa), ficou inicialmente animado com o desafio de “avaliar a mente de um assassino”. Leu as respostas e comentou: “Parece-me um diálogo muito interessante”.

Ao fim de um mês, porém, o homem que integra a Federação Mundial de Cientistas, na Sicília (Itália), e faz parte da direcção científica da Fundação Sigmund Freud, em Viena (Áustria), desistiu. “Amir, como todos os terroristas, está profundamente convencido de que a sua causa é justa e certa”, disse-me, numa troca de correspondência, por Facebook. “Lamento, mas nada do que ele escreveu é suficiente que me mereça uma reflexão profunda.”

Mais entusiasmado, o rabi israelita-americano Marc Gopin aceitou falar connosco, por telefone, com uma condição: “Não quero que as minhas palavras se misturem com as de um assassino, porque respeito muito Yitzhak Rabin”.

Assim, o director do Center for World Religions, Diplomacy and Conflict Resolution na Universidade de George Mason, em Washington, começou a sua análise: “Hagay tem um pensamento bem estruturado, nada confuso; fica evidente que queria destruir o processo de paz quando ele e Yigal [o irmão que disparou as balas] planearam matar o primeiro-ministro”.

“Infelizmente, tenho de reconhecer que estavam certos em relação a uma coisa: a classe política israelita em Israel não se mostrava empenhada em construir a paz”, lamenta Gopin. “Criou-se um vazio depois dos Acordos de Oslo, e jamais saberemos se Yasser Arafat [o então presidente da Autoridade Palestiniana] teria conseguido evitar que os extremistas, num campo e noutro, ganhassem terreno.”

Hagay Amir, prosseguiu o rabi, “representa o mal, mas é um criminoso com lógica e racional. É um extremista clássico que só ficará satisfeito quando os todos os árabes em Israel e nos territórios ocupados forem transferidos para a Jordânia – ele não é explícito a este respeito, na entrevista, mas essa é a filosofia dos que partilham as suas ideias. Não estão interessados num Estado democrático, apenas num Estado judaico”.

Quando critica a esquerda israelita por se opor ao direito de retorno dos refugiados da guerra de 1948, observou Gopin, “é óbvio que ele se refere a lugares como Haifa, por exemplo, não a Ramallah [na Cisjordânia ocupada] ou à Faixa de Gaza – e nisto ele é honesto: quais são os israelitas que vão aceitar devolver as casas e terras que hoje habitam e que outrora pertenciam a palestinianos?”

“O que os extremistas como Hagay propõem – empurrar os palestinianos para a Jordânia – é simplesmente uma loucura”, sublinhou Gopin, que assume “a posição invulgar de não ter qualquer preferência, a solução de um Estado binacional ou a de dois Estados, porque o importante é a coexistência pacífica entre judeus e árabes – nada mais!”

Sobre a razão por que Hagay invoca os textos sagrados hebraicos para defenderem a morte de Rabin, o rabi em Washington explicou:

-“Como em todas as religiões, quando os fanáticos querem recorrer à violência, escolhem o que nas escrituras lhes é mais conveniente para justificarem a morte de um líder que, segundo eles, coloca a nação em perigo – mas este é um argumento falso. Ele e o irmão tomaram a lei nas suas próprias mãos para assassinar uma oportunidade de paz.”

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, a 27 de Janeiro de 2013 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on January 27, 2013

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