Aos 27 anos, ele é uma estrela de stand-up comedy na pátria de Osama bin Laden. Os seus vídeos no YouTube, com milhares de subscritores, quebram tabus sociais e políticos num reino onde o riso tem sido abafado por um Islão rígido. (Ler mais | Read more…)

Fahad Albutairi é um geofísico saudita que fez do riso fonte de rendimento paralela ao seu emprego na petrolífera Aramco, a companhia mais valiosa do mundo
Em 2002, na América pós-11 de Setembro, um jovem subiu ao palco de uma pequena sala de espectáculos e apresentou-se: “Olá, o meu nome é Fahad, sou saudita, estudo aqui, em Austin-Texas, faço stand-up comedy e não, não é uma piada!”
Com gargalhadas e aplausos de uma audiência para quem saudita era sinónimo de terrorista (era esta a nacionalidade de 15 dos 19 suicidas que destruíram as Torres Gémeas em Nova Iorque), assim começou uma odisseia para o geofísico que fez do riso fonte de rendimento paralela ao seu emprego na petrolífera Aramco, a companhia mais valiosa do mundo.
Nascido há 27 anos, em Khobar, na província oriental da Arábia Saudita, onde a Al- Qaeda lançou o primeiro ataque bombista no reino (em 2006), obrigando as autoridades a admitirem que a organização de Osama bin Laden era uma ameaça real, Fahad Albutairi tornou-se numa celebridade em apenas uma década.
Comparam-no a Jerry Seinfeld, e o orgulho não o esconde: “Ele é uma das minhas grandes inspirações e sinto-me honrado por verem em mim um génio como ele”, diz-me, numa troca de emails, através da sua representante, Ibtisam Alsomali, directora executiva da Luxury Events, em Riade. “A única coisa que nos distingue é que eu sou árabe e ele é judeu americano.”
Tal como Seinfeld, que criou uma versão semificcional de si próprio, também Fahad, que tem em Woody Allen outro ídolo judeu, transpõe para os seus sketches situações hilariantes que ouve e vê no dia-a-dia, como incompreensíveis tradições familiares ou disparatadas decisões políticas.

Comparam Fahad Albutairi a Jerry Seinfeld, e ele não esconde o orgulho : “É uma das minhas grandes inspirações e sinto-me honrado por verem em mim um génio como ele”
A princípio, a stand-up comedy foi recebida nos países do Golfo [Pérsico] com um misto de entusiasmo e cepticismo”, recorda.
“Não é verdade, como tem sido noticiado, que os primeiros shows fossem clandestinos, para evitar a polícia [da promoção da virtude e combate ao vício]. O problema era a falta de apoio dos media tradicionais e ausência de promoção em outdoors, o que limitava o número de espectadores.”
Gradualmente, porém, o reino onde a música e os filmes se confinam aos lares e que segue a rigorosa doutrina islâmica imposta no século XVIII pelo teólogo Muhammad ibn Abd al-Wahhab começou a descobrir a alegria do entretenimento exterior.
Sobretudo quando, em palco, não se vêem mulheres nem homens disfarçados de mulheres. Agora, ironiza Fahad, “sou convidado para fazer comédia nos sítios mais incríveis, desde conferências para estudo do Corão até piqueniques com famílias em jardins – claro que não aceito, porque o cenário não é o mais apropriado”.
Neste momento, o programa de maior audiência de Fahad é La Yekthar, que se poderá traduzir como “Cala a boca”. Um dos vídeos de maior popularidade, com quase cinco milhões de visitantes, é o “episódio 14” (com legendas em inglês que têm de ser previamente activadas).
Neste “episódio 14”, ele fala de desemprego e de uma “comissão saudita anticorrupção”, sabendo que são graves problemas no mundo árabe e estão entre os factores que têm contribuído para a queda de ditadores.
Há referência a um agente artístico que garante ter produzido o polémico vídeo Bad Girls com que M.I.A., cantora britânica de origem tâmil, foi acusada de “perpetuar o estereótipo do árabe feio e mau do deserto”.
O mesmo agente vangloria-se de ter sido contratado por Lady Gaga – artista que, pela quase nudez das suas performances, jamais entraria na Casa dos Saud.
Há ainda referência aos estudantes sauditas que no estrangeiro frequentam clubes nocturnos, culminando com uma série de entrevistas de rua conduzidas por um jovem que tenta promover “a invasão cultural saudita” no Ocidente.
São hilariantes os encontros do “entrevistador” com um americano de kaffiyeh ao pescoço (ao inquirir sobre se ele é árabe, a resposta embaraça-o: “O lenço é moda, e eu sou judeu”); com uma mulher que se prepara para entrar no carro e que, perante a insistência de que ela não pode conduzir (como na Arábia Saudita), recusa grosseiramente que ele seja o motorista; e ainda com os ratos Mickey e Minnie (segue-se uma prece: “Que Deus lhes perdoe”, porque ambos estão de mão dada e ela cobre a cabeça apenas com um laçarote).
Fahad Albutairi aborda tudo o que pode ter piada excepto o Islão. “A maioria da população saudita não é muito política e não gosta que se brinque com a sua sensibilidade religiosa”, justifica o comediante.
“Evito, por isso, esses temas para não isolarmos a audiência nem perdermos milhões de potenciais espectadores. A reacção das pessoas às questões sócio-políticas que abordamos costuma ser mista, mas, felizmente, que a maioria é positiva.”

Fahad aborda tudo o que pode ter piada excepto o Islão, “ para não isolar a audiência”, profundamente religiosa, nem perder milhões de espectadores
O investimento no YouTube em detrimento dos canais televisivos é assim explicado por Fahad, o único argumentista de uma equipa que inclui operadores de câmara, técnicos de som e de luz, produtores – uma verdadeira máquina profissional:
-“Não abandonámos completamente os meios tradicionais, porque temos projectos conjuntos com a MBC [a primeira estação independente por cabo saudita criada em 1991] e a Rotana [grupo que integra diversos canais de sinal aberto, disponíveis em vários países árabes].”
“Mas o formato do La Yekthar só se adaptava ao YouTube, porque os episódios são de curta duração e com uma mensagem imediata.”
Sobre as principais razões por que apostou no YouTube, Fahad enuncia: “1) o YouTube é muito barato; 2) o YouTube pode chegar a muito mais pessoas e pode ser visto em várias plataformas, como smartphones, tablets, computadores pessoais, portáteis…; 3) o YouTube permite uma maior liberdade criativa.”
“Desde o lançamento de La Yekthar, em 10 de Outubro de 2010, temos mais de 340 mil subscritores, além de que contamos com o patrocínio e anúncios de numerosas empresas.”
Onde é que Fahad encontra tempo para conciliar a comédia com o trabalho na Aramco? “Geralmente, os espectáculos são ao fim-de-semana ou nas minhas férias”, responde, sugerindo que é organizado.
“Tenho participado em espectáculos internacionais, como o Stand-up Comedy Festival de Amã [Jordânia] e o New York Arab American Comedy Festival. Mais importante: já percorri um longo caminho para mudar a percepção do mundo em relação aos sauditas, em particular, e aos árabes, em geral.”
[Em 2018, a vida de Fahad Albutairi sofreu um duro revés: Em Março, segundo o diário ‘The Washington Post’, foi detido na Jordânia, vendado e transportado de avião para a Arábia Saudita. Desactivou a sua conta no Twitter, onde tinha milhões de seguidores. Não mais se ouviu falar dele.
A sua ex-mulher, a activista Loujain al-Hathloul, que tanto lutou pelo direito de as mulheres conduzirem e contra a lei do guardião masculino, foi deportada dos Emirados Árabes Unidos e continua presa. Já tinha sido detida em 2017. Os seus familiares denunciam que ela também tem sido torturada.]

Fahad e Loujain quando ainda eram casados e antes de um e outro terem sido deportados (ele da Jordânia; ela dos Emirados Árabes Unidos) para serem presos na Arábia Saudita
© Kirk Rudell
Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, edição de 25 de Novembro de 2012; This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on November 25, 2012