Se quer encontrar uma boa loja de livros em segunda mão, em Praga, Honza, que adora literatura, leva-o lá. E se quer conhecer “a elite da prostituição” da cidade, Karim é o homem certo, porque essa tem sido a sua “profissão”. Ambos dormem nas ruas da capital checa e nenhum recanto escapa à procura de uma guarida. Fazem parte de um grupo que três estudantes universitários contrataram para um projecto humanitário. (Ler mais | Read more…)

Katarina Chalupková, Tereza Jurecková e Ondrej Klugl, os três jovens checos que criaram o projecto Pragulic — combinação das palavras checas “Praga” e “rua”
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Com 1,2 milhões de habitantes, Praga tem, segundo estatísticas oficiais, 4000 sem-abrigo, mas Katarina Chalupková assegura que “é difícil saber o número exacto, provavelmente mais elevado [um anterior guia mencionou cerca de 15 mil], porque muitos não querem ser conhecidos e não se registam”.
Katarina, 25 anos, é um dos cérebros do projecto Pragulic — combinação das palavras checas Praga e Rua. Os outros são Tereza Jurecková e Ondrej Klugl, ambos de 23, alunos do programa de pós-graduação em Estudos da Sociedade Civil na Faculdade de Humanidades da Universidade Karlova (ou de Carlos) de Praga.
A ideia nasceu em Março deste ano para concorrer ao Social Impact Awards, prémio instituído na República Checa, Roménia e Áustria para encorajar jovens a resolver problemas sociais. “Foi tudo tão rápido”, explica Katarina, por telefone.
“Discutimos a ideia, fizemos pesquisas no Google em busca de inspiração. Vimos que havia um projecto semelhante em Londres [o Sock Mob] e decidimos concorrer. Ficámos surpreendidos quando nos informaram que ganhámos. Recebemos o prémio em Junho, em Viena e, com os 1500 euros, passámos rapidamente do papel à realidade.”
Até agora, e porque têm recebido apoios externos, “os 1500 euros ainda não foram totalmente gastos”, exulta Katarina, salientando que o projecto dos três amigos, envolvendo já 300 pessoas, incluindo tradutores (de inglês, francês, espanhol, vietnamita e até português) e fotógrafos voluntários, “não é financeiramente exigente e é sustentável a longo prazo”.
As visitas guiadas começaram em 15 de Agosto [de 2012], a um ritmo de cinco por semana. Cada uma dura cerca de duas a três horas, sendo uma efectuada de noite e as restantes durante o dia. O ingresso nestes circuitos custa oito euros por pessoa (50% dos quais é repartido com os sem- abrigo a cada 15 dias). Os estudantes e os idosos beneficiam de um desconto.
O objectivo de Pragulic é também “tentar definir o retrato desta comunidade, mostrar que a maioria deles não está nas ruas por vontade própria — embora estes casos existam —, mas porque diversas circunstâncias os empurraram para a exclusão e a indigência”, explica Katarina, a voz denotando o entusiasmo de quem tem consciência de que pode “marcar a diferença perante a indiferença generalizada”.
E acrescenta: “Queremos ajudar os sem-abrigo a adquirir novos hábitos de trabalho que facilitem a sua procura por um lugar digno na sociedade que eleve a sua auto-estima.”
Katarina, Tereza e Ondrej sabem que as mudanças serão lentas, mas esperam que, com estas visitas guiadas, possam “erradicar os preconceitos e alertar para os problemas que são frequente- mente ignorados”.
Por enquanto, o público-alvo de Pragulic são jovens, sobretudo checos, mas também “começam a aparecer estrangeiros de vários escalões etários, e já notamos que as percepções se começam a alterar. Um sem-abrigo já não é, necessariamente, olhado por todos como um bêbado e maltrapilho”.
“É certo que há sem-abrigo que não se empenham em sair da miséria”, reconhece Katarina, “mas os nossos — para já, são sete, havendo mais interessados — querem mesmo ser tratados com respeito, e estão determinados a fazer tudo para o conseguir; pode ser difícil mas é possível”.
Ela faz questão de realçar que entre os sem-abrigo “há gente fixe e inteligente — artistas, músicos, bailarinos, pintores… pessoas que sofreram dramas como o divórcio ou o desemprego, marginalizadas pelo sistema mas que precisam de ser aceites”.

Honza Badalec, um dos guias que vive sem lar desde 1998. No acompanhamento personalizado a templos e monumentos populares, recônditos restaurantes em caves ou “locais de má fama”, Katarina observa que o que mais toca os turistas é a história pessoal dos sem-abrigo
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Honza Badalec, por exemplo, “tem uns 50 anos e adora livros”. Quando passeia com os turistas, “sabe indicar quais as melhores lojas para comprar exemplares raros em segunda mão”, refere Katarina. De um modo geral, ele começa as visitas na principal estação ferroviária de Praga porque foi num dos seus bancos que se tornou homem sem lar em 1998.
De um percurso que inclui, inevitavelmente, alguns dos lugares mais pitorescos de Praga, como a Ponte de Dom Carlos, a igreja neogótica de S. Pedro e S. Paulo ou o cemitério de Viserad, Karim faz questão, por seu turno, de dar as conhecer as ruas onde desde os seus 17 anos (tem 40) se dedicou à prostituição para sobreviver. E, no centro da cidade, ele chama a atenção para os indivíduos de 50 e 60 anos que se prostituem, mas também crianças apanhadas no tráfico sexual.
No acompanhamento personalizado a templos e monumentos populares, recônditos restaurantes em caves ou “locais de má fama”, Katarina observa que o que mais toca os turistas é a história pessoal dos sem-abrigo que os guiam.
E, para que estes (previamente seleccionados junto das instituições que os ajudam) sejam bem-sucedidos, Pragulic dá- lhes “uma formação profissional de quatro semanas que se centra na motivação pessoal e no espírito de entreajuda”.
Entre as qualidades que os três estudantes checos procuram nos sem-abrigo que contratam, estão as de “serem sérios e disciplinados, sociáveis e capazes de falar perante desconhecidos e, também, terem uma experiência de vida inspiradora que possa ser partilhada”, explicou-nos Katarina. “Queremos estabelecer um relacionamento de longo prazo e é nosso propósito poder recrutar outros no futuro.”

Um dos primeiros guias de Pragulic era José, que vive nas ruas desde os 18 anos. Estudava Fotografia nos tempos do regime comunista. Em 1987, durante um protesto estudantil, foi condenado a oito anos de trabalhos forçados
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Um dos primeiros guias de Pragulic chama-se José e vive nas ruas desde os 18 anos. Já não colabora com o projecto, esclareceu Katarina, sem mencionar as razões da ruptura.
Ainda assim, vale a pena recordar o que ele contou à Rádio Praga: “O que eu gosto de mostrar aos turistas é a vida nocturna dos que procuram qualquer coisa para viver. Quando procuram, seja através do pequeno furto ou da recolha de papel, preferem a noite porque a noite os pode esconder.
À noite, há muita gente embriagada o que atrai o roubo. Perguntamo-nos: ‘Por que é que os sem-abrigo roubam?’ Eles fazem isso porque precisam de se manter vi- vos; ninguém lhes dá comida e ninguém lhes diz: ‘Vem dormir a minha casa’.”
José costumava iniciar os passeios pela Praça de Carlos, no centro de Praga. “Porquê? Porque eu vinha aqui com os meus colegas quando estudava Fotografia, nos tempos do regime comunista. Embora a polícia nos expulsasse, foi sempre um sítio especial para nós.”
“Do ponto de vista histórico, também, porque a chamada Nova Praga começou aqui, a Nova Cidade”, adianta.
“Parece estranho, mas ainda podemos ver uma árvore plantada por Carlos IV [imperador romano e rei da Boémia] no século XIII. Ele [que foi o artífice da expansão desta capital] terá plantado aproximadamente 20 a 30 árvores em Praga e arredores. Duas ou três ainda se mantêm de pé; as outras estão em Kampa.”
A razão por que José, filho de um estudante peruano que se mudou para a antiga Checoslováquia, começava o percurso turístico na Praça de Carlos era, revelou à Rádio Praga, porque ali também se situa o edifício do tribunal onde, em 1987, durante um protesto estudantil, foi condenado a oito anos de trabalhos forçados (apenas dois concluídos).
“Era incrível como as coisas aconteciam por estes lados, durante o período em que o país era um satélite da União Soviética”, evocou José. “Devo ter sido o único tipo de pele morena a ser sentenciado por conspirar contra a república.”
Era incrível como as coisas aconteciam por estes lados, durante o período em que o país era um satélite da União Soviética”, evocou José. “Devo ter sido o único tipo de pele morena a ser sentenciado por conspirar contra a república.”
José ainda se lastima: “É certo que vemos muitos sem-abrigo, alcoolizados e com uma garrafa de vinho à sua beira, mas também há pessoas deambulando pelas ruas apenas procurando um emprego. O Estado admite que temos direitos, porque estudámos, mas que podemos fazer com 50 ou 55 anos?”
“A Segurança Social não funciona: não tem fundos e quem a dirige não é competente. Há algumas associações de caridade, como o Exército de Salvação, mas não acredito que a situação vá melhorar.”
Com as reservas de turistas a aumentar e sem tempo para férias, porque dividem o tempo entre Pragulic e os estudos, Katarina, Tereza e Ondrej recusam o pessimismo de José. Diz a primeira: “Se uma pessoa ouvir as histórias dos sem-abrigo, talvez mude de opinião e passe a palavra a outra e, assim, talvez possamos mudar mentalidades.”

De um percurso que inclui, inevitavelmente, alguns dos lugares mais pitorescos de Praga, como a Ponte de Dom Carlos, a igreja neogótica de S. Pedro e S. Paulo ou o cemitério de Viserad, Karim faz questão de dar as conhecer as ruas onde desde os seus 17 anos (tem 40) se dedicou à prostituição para sobreviver
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Este artigo, agora revisto e actualizado, foi originalmente publicado no jornal PÚBLICO, em 16 Setembro 2012 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on September 16, 2012