Ao partir, à boleia, de Londres até Teerão, Jamie Maslin, o autor de Iranian Rappers and Persian Porn pouco sabia da “república dos mullahs”. Agora, após outra viagem por quase 20 países, o jovem inglês diz que este “é o lugar mais espantoso”. Aqui, por exemplo, o etanol disfarça-se de vodka; Celine Dion funde-se com Eminem; e os DVD de sexo explícito designam-se por “super filmes”. (Ler mais | Read more…)

Noivos iranianos, Javad Jafari, à esquerda, e o seu irmão, Mehdi, à direita, posam com as futuras mulheres, Maryam Sadeghi, segunda à esquerda, e Zahra Abolghasemi, envergando vestidos formais antes da cerimónia, na aldeia de Ghalehsar village, cerca de 360 quilómetros a nordeste de Teerão, a capital (15 de Julho de 2011)
© Vahid Salemi | AP | The Atlantic
Desde que abandonou a escola aos 16 anos, Jamie Maslin teve “mais de 40 empregos diferentes”, incluindo funcionário de limpeza em fábricas e arrumador em concertos de rock. “Também vendi o meu corpo à ciência médica como cobaia”, diz-me, numa entrevista por e-mail, o autor de Iranian Rappers and Persian Porn: A Hitchhikers’ Adventures in the New Iran, a hilariante narrativa de uma viagem a um país para onde partiu cheio de preconceitos e (quase) vazio de conhecimento.
A ideia inicial do jovem britânico era ir de Inglaterra à China, explorando a Rota da Seda, do veneziano Marco Polo, o que já incluiria atravessar território iraniano.
Assim, poupou “religiosamente” o que ganhava num “trabalho chato e mal pago”, e inscreveu-se nos testes de um novo medicamento para a gripe, na esperança de obter fundos necessários. O seu ritmo cardíaco era acelerado mais duas batidas do que o requerido, e chumbou.
Restaram-lhe 1400 dólares e dois vistos: um para o Uzbequistão, facilmente adquirido; outro para o Irão, que demorou dois meses a obter.
“Seria um desperdício terrível não o usar”, interiorizou Maslin, tentando esquecer um documentário televisivo, “horrífico e assustador” sobre direitos humanos no “reino” de [Mahmoud] Ahmadinejad [o anterior Presidente, substituído após as eleições de Junho de 2013 pelo “pragmático” Hassan Rouhani].
“Eu era ignorante antes de partir, em parte devido à propaganda dos media mainstream, mas à medida que fui escrevendo o livro, levei a cabo uma extensa e exaustiva investigação”, contou Maslin, confirmando que foi deliberada a intenção de assumir o quanto desconhecia o Irão.
Outra característica da sua obra é a diversão que imprime a vários capítulos, como aquele em que se misturam a voz de Celine Dion e os gestos de Eminem.
O sentido de humor, destaca o “especialista na arte da sobrevivência” e que mais tarde publicaria Socialist Dreams and Beauty Qeens: A Couchsurfer’s Memoir of Venezuela, é “uma ferramenta eficaz não apenas para captar a atenção do leitor, mas também para dar vida aos lugares em cada página escrita.”
“Muitos livros de viagens que li são demasiado sisudos no modo como se apresentam; se isso resulta bem num ensaio académico, raramente conseguem colocar o leitor nos pés do autor – a não ser que o leitor também seja um chato, claro!”, comentou Maslin, nesta entrevista, dada poucas horas antes de partir para “dez dias de férias” (não revelou o local), que o deixariam incomunicável.
Sobre o título, o viajante profissional justifica-se: “Rappers é uma referência à fama da música ocidental interdita, o rap em particular; e também porque fui convidado para um concerto de rap; Porn refere-se à popularidade dos filmes porno (obviamente) ilegais – ou os “super filmes”, como são conhecidos.”

Sevan Shahmirian, membro da banda underground Wednesday Call, treina no seu estúdio, que é a própria casa, em Teerão (7 de Julho de 2011) . Muitos grupos e artistas já não se incomodam em pedir licenças obrigatórias para divulgar, assinar contratos com companhias discográficas estrangeiras e/ou colocar as suas músicas em websites bloqueados pelo Governo
© Morteza Nikoubazl | Reuters | The Atlantic
Como é que a aventura começou? “Bem, sou um tipo que adora viajar, sobretudo à boleia e com orçamentos extremos, além de odiar estar preso a trabalhos braçais – que, em todo o caso, tenho feito muito, para financiar o amor que sinto pelas viagens. Todos os meus empregos têm sido temporários, sempre a pensar em empreendimentos mais criativos para tempos livres.”
“Não posso dizer que tencionei fazer da escrita de viagens uma carreira”, admite Maslin. “Estava frustrado e deprimido com um emprego banal e mergulhei em mais uma aventura louca, só que desta vez decidi seguir o conselho de um amigo e colocar a minhas ‘explorações’ em papel. E assim nasceu o primeiro livro, Iranian Rappers and Persian Porn.”
E porquê à boleia no Irão e couchsurfing na Venezuela? “Não me interessam as viagens convencionais e estas, passadas a escrito, são aborrecidas. Escrevo livros que gostaria de ler, que não sirvam para estar à beira da piscina, a saborear piña colada, mas que nos permitam mergulhar num país e na sua cultura – e só podemos fazer isso se nos lançarmos no terreno.”
“Acabei o livro sobre a Venezuela há um ano e meio e, desde então, já quase completei um terceiro – 400 páginas que ainda não terminaram. É uma viagem à boleia, que começa na Austrália e acaba em Londres, seguindo pela Indonésia, Malásia, Tailândia, Laos, China, Quirguistão, Cazaquistão, Azerbaijão, Geórgia, Turquia, Bulgária, Sérvia, Croácia, Eslovénia, Áustria, Alemanha, França e um pouco do Reino Unido. ”
“Eu já havia viajado à boleia pela Tunísia, tendo contribuído para uma espécie de blogue de um amigo no qual enumerava os lugares que explorava, personagens que encontrava e escapadinhas que desvendava”, explica Maslin.
“O meu amigo encorajou-me a tentar ir mais longe. E foi esta a génese do meu livro sobre o Irão. Teria sempre ido à boleia de Londres até à República Islâmica mas sem este encorajamento, provavelmente, não teria escrito obsessivamente um diário a especificar os meus passos.”
“Não tive aconselhamento sobre como escrever, apenas me sentei, dia após dia, 12 horas por dia, e deixei que os meus pensamentos e experiências saltassem para o teclado. Não tendo background académico, foi um desafio enorme, embora não veja isso como desvantagem.”
“Já passei por tantas experiências que, de do ponto de vista da escrita, é provavelmente mais importante [do que ter concluído os estudos].”
Ao longo de mais de 260 páginas (na edição de 2012, em paperback), Maslin dá a conhecer um Irão livre e libertino, desmontando o retrato de um país monolítico, subjugado por governantes messiânicos. A imagem que difunde poderia tê-lo conduzido à prisão, mas ele garante que não recebeu quaisquer ameaças.
“Dei uma longa entrevista a uma emissora com sede no Reino Unido que transmite para o Irão e Afeganistão, e não me abstive de contar alguns costumes não-islâmicos: embebedar-me com espírito cirúrgico (96 por cento de etanol), frequentar festas ilegais onde não se viam mulheres com hijab e até assistir a filmes pornográficos hardcore com um grupo de estudantes contra o sistema – algo que é punido com a extracção dos olhos!”

Bazar de Tabriz, mais de 630 quilómetros a noroeste de Teerão, classificado pela UNESCO como Património da Humanidade, em 2011. Situava-se ao longo da Rota da Seda. As suas estruturas serviam não apenas para o comércio mas também como escolas e instituições religiosas
© Morteza Nikoubazl | Reuters | The Atlantic
“É claro que não fiquei nas boas graças do governo”, adiantou Maslin. “Quando pedi outro visto, para celebrar a publicação do meu livro, o cônsul iraniano em Londres, em termos bem claros, declarou que eu não era bem-vindo.”
“No entanto, se eu pudesse voltar, viajaria já amanhã, porque este é um país extraordinário, com as pessoas mais hospitaleiras que jamais conheci.”
“Esqueçam aquelas multidões enfurecidas em autoflagelação e que os media mainstream adoram exibir. Os iranianos são pessoas como nós, e o seu maior defeito é a generosidade. Estranhos vinham ter comigo só por eu ser estrangeiro; sendo uma visita no país era um hóspede nas suas casas, tratado como realeza.”
No Irão, Maslin teve como companheiro de viagem, durante algum tempo, o português Ricardo, que estava de passagem a caminho do Nepal. “Era um tipo fantástico, com sorriso fácil e bem-disposto”, elogia o britânico.
“Ah, e também é bonito, mas não lhe digam, para que não fique demasiado vaidoso. Claro, que ele já tem um exemplar autografado do meu livro, e foi generoso ao fornecer algumas das fotos que estão na edição de capa dura. Trocámos e-mails, mas já há muito tempo que não contactamos – vou já rectificar isso.”
Quanto aos amigos iranianos, “as despedidas foram mesmo definitivas”, lamentou Maslin. “Como a correspondência no Irão é rigorosamente vigiada, não os quis colocar em risco. Todos os seus nomes no livro são pseudónimos e as fotos deles (na edição em capa dura) têm os rostos branqueados; também alterei certos pormenores, mínimos e insignificantes, para proteger as suas identidades.”
“Em relação aos iranianos na diáspora, obtive uma excelente reacção; foi um grande elogio, dizerem-me que mudei a má imagem do Irão que tem sido propagada.”
“Só posso enaltecer a bondade genuína dos iranianos, que me ofereceram uma hospitalidade humilde, apesar de eu provir de um país, conhecido agora como ‘velha raposa’, cujo governo interferiu nos assuntos internos do Irão [quando ajudou a CIA a derrubar, em 1953, o primeiro-ministro [Mohammad] Mossadegh por ter nacionalizado a Anglo-Iranian Oil Company].”
Tão marcante como o Irão só mesmo, aparentemente, o Porto, onde Jamie Maslin garante ter passado “as melhores férias de sempre”. Perguntámos porquê, mas ele respondeu apenas: “Por causa do vinho!”
Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 8 de Agosto de 2012 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on August 8, 2012