George Sabra, presidente do principal movimento da oposição, e Hind Kabawati, membro da elite democrática e secular, explicam por que é que a ditadura deixou de ser aliado e protector das minorias. (Ler mais | Read more…)

Imagem de Cristo parcialmente queimada numa parede numa igreja ortodoxa grega em Maaloula, antiga cidade cristã, no nordeste de Damasco, que mudou de mãos várias vezes durante a guerra civil; muitos dos seus templos foram destruídos por jihadistas ou por bombardeamentos
© Pavel Golovkin | AP | The Washington Post
As cerimónias fúnebres de Bassel Shehadeh estavam marcadas para uma igreja no seu bairro de Kasaa, em Damasco. O jovem cineasta católico foi morto em Homs, a 28 de Maio [de 2013], depois de ter interrompido os estudos na América para documentar a revolução na Síria.
O templo encheu-se de cristãos, sunitas e alauitas, mas, “quando se ouviam os primeiros cânticos e orações, mercenários da polícia secreta começaram a dispersar à força a multidão”, relata Hind Aboud Kabawati, reproduzindo testemunhos de familiares.
“O regime, cada vez mais sectário, temeu que o funeral originasse confrontos com as forças de segurança, e os responsáveis religiosos cederam às pressões, só que as pessoas não desistiram e juntaram-se na casa de Shehadeh “, diz-nos, por telefone, a cristã Kabawati, obrigada a deixar a Síria “porque eles [governantes] não querem activistas a favor da democracia”.
Hoje, Kabawati divide o tempo entre o Canadá (Toronto), onde é advogada, e os EUA, onde é investigadora no Center for World Religions and Conflict Resolution da George Mason University (Virgínia), e ainda membro do Conselho Consultivo para o Médio Oriente no Banco Mundial e do Global Agenda Council do Fórum Económico Mundial.
As exéquias de Bassel Shehadeh, que suspendera a sua bolsa Fulbright na Syracuse University para ajudar jornalistas-cidadãos a gravar e editar vídeos da revolta, acabaram por se realizar no Mosteiro de São Moisés da Abissínia, construído há 1000 anos, nos arredores da capital, e que o jesuíta Paolo Dall’Oglio ajudou a restaurar, transformando-o num centro de diálogo ecuménico.
[Este padre italiano foi raptado em 2013 quando negociava um acordo de paz na cidade de Raqqa, que estava a ser disputada por grupos rebeldes e pelo autoproclamado “estado islâmico” (Daesh). O seu desaparecimento permanece um mistério.]
A 16 de Junho, o sacerdote formado em árabe e teologia, com uma tese sobre A Esperança no Islão, foi expulso após três décadas a viver no país onde foi ordenado, segundo o rito siríaco. “Ele é o meu mentor”, orgulha-se Kabawati, quando lhe pedimos o contacto, impossível de estabelecer.

O jovem cineasta católico Bassel Shehadeh foi morto em Homs, em 28 Maio de 2013, depois de ter interrompido os estudos na América para documentar a revolução na Síria
© National Public Radio (NPR)
Kabawati ainda se mostra relutante em “armar a revolução” [uma decisão entretanto aprovada pelas potências ocidentais], iniciada em Março de 2011, mas, com o número de mortos a aproximar-se dos 15 mil – o conflito com mais crianças massacradas, segundo repórteres de guerra -, interroga-se como podem os civis proteger-se se ninguém lhes der instrumentos para se defenderem.
Tal como Dall’Oglio, também Kabawati reconhece que os cristãos da Síria – 10% dos 22 milhões de habitantes – “têm medo de que um regime corrupto e repressivo, autoproclamado guardião das minorias, possa ser substituído por uma teocracia islâmica.”
E acrescenta: “Sabemos bem o que aconteceu aos cristãos no Iraque, perseguidos após a queda de Saddam Hussein; aos cristãos no Líbano, marginalizados desde a guerra civil [1976-1999]; e aos coptas no Egipto, em constante vigilância para que os seus direitos não sejam espezinhados”.
“Durante muito tempo, os cristãos acreditaram que era preferível alinharem com o diabo conhecido do que o desconhecido, mas, felizmente, são cada vez mais os que tomam consciência de que não podem ser protegidos por ditadores”, reconhece a mulher galardoada em 2007 com o Peacemakers in Action Award do Tanenbaum Centre for Interreligious Understanding, em Nova Iorque.
“Queremos confiar que, depois de Bashar al-Assad, um líder com as mãos manchadas de sangue, teremos um Governo secular e democrático numa Síria independente, onde todos serão tratados como cidadãos e não apenas como membros de uma confissão religiosa, livres de poderem praticar a sua fé.”
Hind Aboud Kabawati não coloca qualquer objecção a uma Síria liderada por um sunita – cerca de 75 por cento da população (das restantes comunidades muçulmanas, 13% são alauitas, ismailis e xiitas duodecimanos e 3% drusos). “O problema está na dinastia Assad.”, sublinha.
“Convém não esquecer que, entre os fundadores do Baas [há meio século no poder] e do Partido Nacional Sírio, estavam cristãos; que um dos maiores líderes políticos sírios foi o primeiro-ministro Fares Khoury [1944-1945 e 1954-1955; morreu em 1962, aos 85 anos], ortodoxo grego. No entanto, a partir dos anos 1960, o cargo mais elevado que um cristão exerceu foi o de ministro. Sob a actual Constituição, nenhum cristão pode ser Presidente.”
O padre Dall’Oglio e a sua discípula Kabawati partilham a convicção de um outro cristão, George Sabra, de 64 anos, de que o medo dos cristãos “é uma questão geracional”.
Os mais jovens “começam a ganhar confiança e a acreditar que a democracia é a melhor protecção”, constata o agora presidente [na altura da entrevista era apenas porta-voz] do Conselho Nacional Sírio (CNS, principal movimento da oposição, no exílio).
[O CNS foi criado como uma autoridade política de transição, em Setembro de 2011, e apresentado oficialmente a 1 e 2 de Outubro do mesmo ano, em Istambul, na Turquia. O objectivo era coordenar a luta – na Síria e em território de outros países – de mais de 30 grupos da oposição.
Depois de Bashar al-Assad ter recusado reformar o regime, a “revolução” inicialmente pacífica deu lugar a uma guerra civil. Embora a maioria dos membros do CNS seja sunita (sobretudo ligados à Irmandade Muçulmana), tem também nas suas fileiras curdos e cristãos.]

Sírios homenageiam o padre jesuíta italiano Paolo Dall’Oglio, raptado em 2013, em Raqqa. Os cristãos admiravam a sua mensagem de paz, tolerância e coexistência
© AP | The National
As declarações de Sabra, activista da oposição desde 1971, formado em Geografia (em Damasco) e Sistemas de Tecnologia da Educação (Indiana, EUA), foram feitas, por telefone, a partir de Paris, onde chegara cinco meses antes e depois de ter sido forçado a abandonar a sua cidade de Katana (a 20 km de Damasco). Fugiu “a pé, sob a mira de atiradores furtivos”, atravessando a Jordânia”.
Antigo professor, editor em revistas e programas culturais, autor de livros infantis [um deles, Yfath Ya Simsim, versão árabe de Rua Sésamo], ex-dirigente do Partido Comunista Sírio e fundador do Partido Popular Democrático Sírio, Sabra recusa a imagem dos cristãos como “aliados do regime”, porque “há cada vez mais cristãos presos e mortos.”
É certo, concede, que têm sido, em particular, as elites, a que ele e Kabawati pertencem, as mais participativas nas acções políticas e mediáticas. Como “grupo de massas”, os cristãos têm sido passivos.
A “ausência nas ruas tem sido encorajada pelo clero de todas as igrejas”, que só recentemente tem vindo a abandonar a posição irredutível de não afrontar os Assad julgando que, deste modo, salva os cristãos, frisa Sabra.
“Não há que ter medo dos sunitas, que têm demonstrado uma grande moderação – não são eles os culpados por 200 mil cristãos terem abandonado a Síria desde 1970.”
George Sabra cita um exemplo de “coexistência”, quando o monge Dall’Oglio recebeu a primeira ordem de expulsão: os habitantes de Hama, “cidade muito conservadora”, onde Hafez, o pai e predecessor de Bashar, ordenou o massacre de milhares de pessoas para se vingar da Irmandade Muçulmana, em 1982, “desfilaram pelas ruas, transportando cruzes, numa manifestação de solidariedade com o padre.”
Em contraste, Hindi Kabawati menciona o caso de Yara Chammas, uma jovem de 21 anos que organizou a distribuição de alimentos, remédios e vestuário quando começaram os bombardeamentos em Baba Amr – cidade do distrito de Homs reduzida a escombros em dois meses de ferozes combates.

Orações numa igreja em Damasco: os cristãos sírios representavam 10% dos 22 milhões de habitantes antes do início da Guerra civil em 2011
© Bassem Tellawi | Associated Press | The Durango Herald
A acção humanitária de Yara, a filha de Michel Chammas, destacado activista cristão de direitos humanos, foi punida com 60 dias de detenção. Acusada de ser “traidora” e “inimiga”, ninguém na sua comunidade foi em seu auxílio.
Sabra, que também foi, em 2005, um dos dinamizadores da Declaração de Damasco para a Mudança Democrática Nacional, insurge-se: “Como podemos dizer que este regime é secular e é democrático? É um sistema corrupto, injusto, sanguinário – o mais terrível que existe!”
A intervenção das forças de segurança para impedir que o funeral de Bassel Shehadeh decorresse na igreja em Kasaa – “era esperado cerca de um milhão de pessoas”, segundo Sabra – mostrou que “o medo mudou de campo”.
Os massacres atribuídos às tropas e milicianos governamentais “repetem-se quase diariamente, mas o Exército Sírio Livre [formado, sobretudo, por desertores das Forças Armadas] já está em Damasco. É preciso que os revolucionários recebam armas para defender os inocentes. Não pode haver mais violência do que aquela que está a acontecer agora. Nada se compara a isto!”
Sendo presidente “e um de muitos cristãos” na hierarquia do CNS, George Sabra concordou [nesta entrevista quando era apenas porta-voz] que a eleição de um curdo, o académico Abdul Basset Sayda, para a liderança “é um indicador da disponibilidade para atrair mais grupos da oposição, de modo a fomentar a unidade e preparar o período de transição pós-colapso de Assad”.
É necessário “provar que estamos prontos para trocar a ditadura pela democracia”, sublinhou Sabra. [Abdul Basset Sayda, dissidente de origem curda presidiu ao Conselho Nacional Sírio, do qual foi fundador, apenas de 9 de Junho a 9 de Novembro de 2012. Aderiu posteriormente à Coligação Nacional das Forças da Oposição e da Revolução/CNFOR).
“Sayda inspirou, desde o início, uma parte do Conselho Nacional Curdo (CNC), que representa 11 grupos na Síria e no exílio, também eles cortejados pelo Exército Livre – depois da promessa de que não têm ambições separatistas”, refere Sabra. “Estarão apenas interessados em salvaguardar a sua “identidade nacional, igualdade de género e liberdade de crença”.
“Não me digam que os cristãos não são revolucionários, porque sei bem o que é lutar pela liberdade e dignidade”, acentua Sabra. “Estive oito anos nas cadeias de Hafez al-Assad, entre 1987 e 1995.
A partir de 1979 ficou proibido de sair do país. Em 2011, Bashar enviou-me duas vezes para a prisão, de Abril a Maio e de Julho a Setembro. Comigo foram encarcerados 14 jovens cristãos que encorajavam as pessoas a participar em protestos pacíficos.”

Uma cristã síria reza perante a imagem da Virgem Maria num santuário em Maaloula
© John Wreford | USA Today
Hind Kabawati também descreve a escolha de Sayda, em substituição de Burhan Ghalioun, um intelectual residente em Paris e suspeito de favorecer a Irmandade Muçulmana, como “um bom passo”.
[Burhan Ghalioun, de nacionalidade franco-síria, é professor de Sociologia na Université de Paris III. Foi o primeiro presidente do Conselho Nacional de Transição, escolhido em 29 de Agosto de 2011]. As minorias “têm os olhos postos em Sayda, porque os curdos [8% da população] nem sequer têm direito a passaporte.
“A oposição tem estado dividida porque o regime sempre impediu a nossa união e organização. Há muitos egos, mas o CNS tem de apresentar um programa claro, e a comunidade internacional tem de ajudar, como fez na Bósnia.”
“Eu acreditei em Bashar quando ele se tornou presidente [em 2000]”, confessa Kabawati. “Tínhamos tantos sonhos, mas ele desiludiu-nos. Revelou-se muito pior do que Hafez, porque este matou numa cidade [Hama, cerca de 40 mil mortos], mas o filho está a matar todo o povo, não se apercebendo que o mundo mudou e que já não pode ficar impune, como o pai.”

Hind Kabawat: “Eu acreditei em Bashar quando ele se tornou presidente [em 2000]”, confessa Hind Kabawati. “Tínhamos tantos sonhos, mas ele desiludiu-nos”
© United Fashion for Peace

“Não me digam que os cristãos não são revolucionários, porque sei bem o que é lutar pela liberdade e dignidade”, afirma George Sabra, presidente do Conselho Nacional Sírio, na oposição. “Estive oito anos nas cadeias de Hafez al-Assad; desde 1979 que estava proibido de sair do país; em 2011, Bashar enviou-me duas vezes para a prisão”
© Mehdi Fedouach | AFP | Getty Images
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 3 de Julho de 2012 | This article, now revised and updated, was originally published by the newspaper PÚBLICO on July 3, 2012