Donatella Rovera, uma das principais responsáveis da Amnistia Internacional esteve, clandestinamente, durante dez dias na Síria. Viu sinais e ouviu testemunhos de crimes de guerra. (Ler mais | Read more…)
Na cidade de Idlib, a 16 de Abril, uma mulher espreitou pela janela e reparou como militares alinhavam oito jovens contra uma parede, alvejando-os nas costas.
“Naquele momento, eu não sabia que entre eles estava o meu filho”, que soldados tinham ido buscar a casa, revelou esta mãe a Donatella Rovera, Senior Crisis Response Adviser da Amnistia Internacional que esteve na Síria, no mês passado, durante dez dias, a preparar um relatório.
“O seu corpo foi encontrado numa escola não muito longe da nossa morada.” Um outro homem foi também levado da residência de familiares, nas redondezas de Idlib, abatido a tiro e deixado a agonizar, mas sobreviveu, adiantou Rovera, numa entrevista por e-mail, na qual, “por motivos de segurança”, não explicou como entrou e saiu de um país que o regime de Bashar al-Assad fechou ao mundo.
“Quando três vizinhos o transportavam para um hospital de campanha [os estabelecimentos públicos não recebem os feridos vítimas das forças de segurança], o Exército ordenou-lhes que parassem; os quatro foram assassinados.
“ Em Sermin, a 23 de Março, “na presença da mãe e irmãs, três irmãos rondando os 20 anos de idade – Bilal, Yusef e Talal – foram retirados das camas onde dormiam por agentes de segurança que os mataram a tiro, na rua.”
“Depois, lançaram fogo aos cadáveres”, referiu a activista da organização de direitos humanos com sede em Londres. “A mãe disse-me: “Quando eu e a minha filha conseguimos sair, os corpos dos meus filhos ainda estavam a arder, a 20 metros da nossa casa, mas só os pudemos recolher à noite porque o Exército continuava a disparar.”

Civis fogem de Idlib, depois de carros de combate do exército de Bashar al-Assad terem entrado nesta cidade do noroeste da Síria, em 2013
© Associated Press
Em Taftanaz, a 4 de Abril, um homem de 81 anos foi queimado vivo dentro de casa. A sua mulher, que estava com familiares do outro lado da rua quando soldados deitaram fogo à sua residência, narrou assim a perda sofrida, num encontro com Rovera:
“Quando regressei ao edifício carbonizado, não encontrei o meu marido. Fui ao encontro de soldados para lhes perguntar onde o tinham deixado. Pensava que o haviam detido. Um soldado respondeu-me: “Vai para dentro e procura por ele.” Voltei a entrar e encontrei o que restava dele num monte de cinzas””.
Na mesma povoação, dezenas de homens foram executados sem julgamento. Um deles tinha 75 anos. Foi alvejado na cabeça, dentro da própria casa, acrescentou a activista que há duas décadas reporta o que vê e ouve em zonas de conflito, como a Costa do Marfim, a Faixa de Gaza, a Líbia e o Sudão do Sul.
Na Síria, Donatella Rovera visitou várias povoações (Idlib, Saraqeb, Sermin, Taftanaz, Hazzano, Killi e outras) na província de Idlib no Noroeste.
“Apercebi-me de actos deliberados de vandalismo em larga escala, sobretudo centenas e centenas de habitações, lojas, centros de saúde e outras propriedades incendiadas pelo Exército sírio durante ataques recentes em todas estas (e muitas outras) localidades.Dezenas de homens – jovens e idosos, mas também algumas crianças – foram retirados das suas casas e executados extrajudicialmente, abatidos a tiro na cabeça e, em alguns casos, os seus corpos foram queimados.”
“Estes crimes injustificados foram cometidos em todas as localidades e não podem, por isso, ser classificados como acções isoladas de “elementos párias”. Pelo contrário, tudo aponta para uma política de represálias e castigo colectivo para intimidar e aterrorizar as populações nas áreas que apoiam a oposição.”
Segundo a Amnistia, Idlib está a sofrer o mesmo destino de Homs, cidade arrasada pelas tropas do Presidente Bashar al-Assad depois de vários quadros do Exército terem desertado. Uma mulher cuja habitação foi também incendiada, a 11 de Março, lamentou não poder queixar-se às autoridades, excepto se responsabilizar “terroristas”.
Os vizinhos testemunharam que foram soldados quem ateou o fogo. “Era pleno dia e havia carros de combate, militares e polícia secreta por toda a área – como é que aquilo pode ter sido feito por grupos armados? Não apresentei queixa.”

Zeino, uma criança que sobreviveu graças a água e açúcar depois de a sua mãe ter perdido a capacidade de amamentar, quatro dias após a fuga da família de Aleppo
© ACNUR | Ivor Prickett
“Na cidade de Idlib”, salientou Donatella Rovera, nesta entrevista, “notei uma significativa presença do Exército, de forças de segurança e dos infames milicianos à paisana, os shabiha (que operam em conjunto com a polícia secreta).
Noutras localidades, o Exército estava sobretudo nos arredores, mas formando um cerco, com postos de controlo em todas as estradas principais e disparando frequentemente em direcção às povoações, causando vítimas civis”.
“As pessoas têm muito, muito medo, mas a maioria quer também que o mundo saiba o que se está a passar com elas e suas famílias”, sublinha Rovera. “A vida de toda a gente está em risco em situações como esta, e as forças sírias estão a visar abertamente os activistas que documentam as violações de direitos humanos e aqueles que estão a dar assistência médica aos feridos. Fui extremamente cuidadosa para não fazer nada que deixasse as pessoas em perigo.”
“O regime usa todo o tipo de argumentos para justificar a terrível repressão em curso contra manifestantes pacíficos desde os primeiros dias da sublevação [em Janeiro de 2011] – a mais até do que há um ano – e os crimes contra a humanidade que as suas forças estão a cometer.
Ao mesmo tempo, quanto mais tempo for permitido que esta repressão brutal se mantenha, maior é o risco de divisões sectárias virem a ser mais e mais exacerbadas.”
Donatella Rovera não poupa críticas à comunidade internacional: “Falhou estrondosamente no seu dever de agir, para pôr fim a estas violações flagrantes dos direitos humanos, cometidas pelas forças sírias, as quais disparam, matam, prendem, torturam e fazem desaparecer manifestantes desarmados.”
A responsabilidade do resto do mundo face a estes abusos terríveis não depende da unidade ou não da oposição – essas são considerações meramente políticas”, conclui.
“O que pode ser feito agora? Para já, a nova missão da ONU na Síria deveria ter uma componente de direitos humanos e um número adequado de supervisores com as qualidades necessárias para investigar adequadamente os abusos que continuam a ser perpetrados.”
“É imperativo que os que são responsáveis por cometerem ou darem essas ordens tenham de responder pelas suas acções. É importante, para que seja feita justiça e para desencorajar abusos futuros.”

Há duas décadas que Donattela Rovera, da Amnistia Internacional, reporta o que vê e ouve em zonas de conflito, como a Costa do Marfim, Gaza, a Líbia e o Sudão. Na Síria, esteve clandestinamente em várias povoações (Idlib, Saraqeb, Sermin, Taftanaz, Hazzano, Killi e outras) na província de Idlib no Noroeste
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Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmenteno jornal PÚBLICO, em 7 de Maio de 2012 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on May 7, 2012