A ocupação israelita matou-lhe o avô, o pai e dois cunhados, mas o palestiniano Osama Abu Ayash, nascido um ano antes da guerra de 1967, recusou o caminho da vingança. (Ler mais | Read more…)

Abu Ayash é membro do Parent Circle-Families Forum (PCFF), organização que junta palestinianos e israelitas que perderam familiares próximos num dos principais conflitos do Médio Oriente
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Há um “momento especial” na vida do palestiniano Osama Taleb Abed El Magid Abu Ayash que o fez escolher a reconciliação e não a vingança, depois das mortes do seu avô, pai e dois cunhados, “mártires da ocupação”.
Há uns dez anos, estava ele em casa de uma irmã quando conheceu o judeu israelita Rami Elhanan. Ficou espantado ao ouvi-lo falar de paz depois de a sua filha de 14 anos ter sido vítima de um atentado bombista. “Abraçámo-nos um ao outro e chorámos.”
“Impressionou-me a força das suas ideias e do seu carácter”, disse-nos Abu Ayysah, numa entrevista por telefone, ajudado pelo amigo Ibrahim Salaoui, que serviu de intérprete, já que o motorista de camião com um mestrado em Psicologia é fluente em árabe e em hebraico mas não se exprime bem em inglês. “Achei que devia juntar-me a Rami na procura da coexistência. Tinha de me comprometer.”
Aos 46 anos, Abu Ayash é um dos membros mais activos do Parent Circle-Families Forum (PCFF – ver vídeo abaixo), organização que junta palestinianos e israelitas que perderam familiares próximos num dos principais conflitos do Médio Oriente.
A sua mais recente missão era ir a escolas dar a conhecer “o rosto dos árabes”, mas o Ministério da Educação, pressionado por grupos direitistas, proibiu-o há quatro meses de falar nos liceus e universidades, alegando que o seu discurso é “demasiado político” e que é “inadmissível a comparação entre o sofrimento de ‘terroristas’ e o dos civis israelitas”.

O homem que modificou a vida do palestiniano Osama Abu Ayash é o israelita Rami Elhanan, que faz parte do PCFF e perdeu Smadar, a filha de 14 anos (ambos na foto) num atentado suicida. A menina era neta de Matti Peled, venerado como “general da paz”
© Rami Elhanan
Não sendo homem para baixar os braços — quando perdeu o emprego decidiu cultivar a pequena horta junto à sua casa, em Beit Ummar, perto de Hebron, na Cisjordânia, sobre- vivendo dos produtos agrícolas que vende —, Abu Ayyash não se importa de enfrentar diariamente longas filas de espera nos checkpoints, para dar a conhecer a sua história, agora só nas escolas primárias de Israel.
Orgulha-se de ter conseguido ir mais longe, ao entrar em quartéis, com a ajuda de dois amigos judeus israelitas do PCFF, tentando sensibilizar os jovens soldados que ser-vem nos territórios palestinianos.
Ser um pacifista não tem sido missão fácil para Osama Abu Ayash, nascido em 11 de Fevereiro de 1966, um ano antes da humilhante derrota imposta por Israel aos exércitos árabes ao conquistar, na Guerra dos Seis Dias, a Cisjordânia e Jerusalém Leste, aos jordanos, a Faixa de Gaza e a península do Sinai, aos egípcios, e os Montes Golã, aos sírios.
“Eu tinha apenas um ano quando fomos forçados a procurar refúgio numa gruta que havia na terra que os nossos antepassados habitavam desde há um século. Foi traumático, para mim, como tinha sido para o meu pai, quando o meu avô morreu, a 12 de Maio de 1948”, na guerra que se seguiu à criação do Estado de Israel.
De coração fraco, o pai de Abu Ayash nunca recuperou do choque. Em 1975, tinha o filho sete anos, sofreu um segundo ataque cardíaco, forçando a mulher a sustentar sozinha uma família de cinco filhos e três filhas. Em 1983, morreu a caminho do hospital, depois de o exército o ter retido num posto de controlo “durante horas num duro e inexplicável interrogatório”.

Seguindo o lema “Conhecer é o início”, membros do PCFF, judeus e muçulmanos, visitam o Yad Vashem Memorial do Holocausto, em 2007
© mepeace.org
Órfão aos 17 anos, Ayash teve de abandonar a escola para trabalhar e poder comprar uma máquina de costura eléctrica que permitisse à mãe um complemento financeiro. Voltou a estudar assim que lhe foi possível, combinando as aulas com um emprego em part-time. Concluiu com êxito um mestrado em Psicologia, mas nunca arranjou emprego na área da sua formação.
“A minha situação complicou-se quando fui preso sem julgamento, pelo menos três vezes, a última em 1990”, contou Ayyash. “Suspeitavam de que eu tinha disparado sobre colonos judeus mas eu era inocente, e até descobrirem isso os agentes do Shin Bet [segurança interna] usaram vários métodos de tortura, desde choques eléctricos a imersão em água quente e gelada, além da privação de ir à casa de banho, o que foi humilhante. Pediram-me desculpa mas não esqueço o sofrimento por que passei nesse período.”
Em 2002 e 2003, respectivamente, mais dois golpes foram desferidos: os cunhados Kamal, de 20 anos, e Tayseer, de 21, foram abatidos a tiro por soldados que os perseguiam por serem “militantes da resistência”. Eles haviam recorrido à violência depois de terem sido brutalmente espancados por militares quando eram crianças — um deles tinha apenas dez anos, “quando foi largado numa rua, sem sentidos”.
Embora revoltado, Ayash empenhou-se para que a sua mulher, Sara, com quem se casou em 1992, não albergasse o mesmo sentimento de vingança que levou os cunhados a andarem armados. Isso não impediu, porém, que um dia, ao visitar uma irmã, tivesse reagido mal ao ver à porta um carro com matrícula israelita [amarela, para se distinguir das que circulam nos territórios palestinianos].
Como é que ela “ousara acolher judeus que derramaram sangue da nossa família?”, indagou Abu Ayyash, pai de um rapaz e quatro raparigas. A irmã convidou-o a entrar e explicou-lhe que o visitante, Rami Elhanan, tinha perdido a sua filha num ataque terrorista. “Ele apresentou-me ao PCFF. Foi muito gentil. Percebi que a minha dor não era maior do que a dele. Convenci a minha mulher de que também havia judeus israelitas bons.”
O PCFF, do qual fazem parte actualmente mais de 600 famílias, foi criado em 1988 por Yitzhak Frankenthal. As primeiras reuniões, lê-se no site da organização, começaram em 1988 depois de um grupo de palestinianos de Gaza ter aceitado o desafio de procurar alívio junto de famílias israelitas enlutadas, “através do diálogo e da tolerância”.

Projecto Knowing is the Beginning (Conhecer é o início): Membros do PCFF, incluindo o fundador, Yitzhak Frankenthal (dir.), visitam uma aldeia palestiniana que deixou de existir após a criação do Estado de Israel em 1948
© mepeace.org
A ligação a Gaza foi interrompida depois da segunda intifada em 2000, ano em que este processo lenitivo passou a incluir palestinianos da Cisjordânia e Jerusalém Leste. A associação, registada oficialmente, tem dois escritórios- sede: em Al-Ram, na Cisjordânia e em Ramat E’fal (Telavive).
“A princípio, quando comecei a ir às escolas, havia alunos que ficavam espantados”, revela Abu Ayash. “Um rapaz disse-me que pensava que os árabes tinham caudas como os burros — nunca tinha visto um árabe! Aos poucos, estes miúdos entendem o sofrimento dos palestinianos, e vêem que não há alternativa à paz e à coexistência; o mesmo se passa nas escolas palestinianas visitadas pelos judeus israelitas do PCFF.”
Inquirido sobre se esta pertença ao PCFF não faz com que em Hebron e em Nablus (onde estudam as suas quatro filhas, a 120 quilómetros de distância de casa), cidades de grande fervor revolucionário, seja olhado como “colaboracionista”, Abu Ayash assegura que não. E Ibrahim, o amigo que assiste na tradução, enfatiza: “Todos o respeitam, e muita gente aqui tem amigos israelitas; também sou a favor de uma solução de dois Estados.”
Das “aulas” nas escolas israelitas, Ayash evita falar das más experiências. Prefere concentrar-se nas que lhe deixam boas recordações. Lembra-se, por exemplo, de estar num liceu em Sderot, na “fronteira” com a Faixa de Gaza, em 2007, quando milicianos do Hamas começaram a lançar rockets sobre a cidade.
“De repente, apercebi-me de que os alunos gritavam uns para os outros uma password, que eu não entendia, e começaram a correr, deixando-me sozinho no pátio. Estava eu ali perdido, quando um grupo veio ter comigo, agarrou-me e conduziu-me para o abrigo. Perguntei o que estavam eles a fazer, e responderam-me: ‘Temos de te proteger. Não vês que podes morrer?’ Fiquei muito emocionado.”
“A minha tarefa não é fácil mas também não é impossível”, conclui. “Acredito na paz e agarro a oportunidade de a construir.”
Este artigo, revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 22 Abril de 2012 | This article, revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on April 22, 2012