Diz um provérbio árabe: “Teme aqueles que têm medo de ti”. Muammar Kadhafi foi morto numa batalha em Sirte, anunciaram comandantes do governo de transição da Líbia. Aos 27 anos, quando derrubou a monarquia, compatriotas admiravam-no como oficial corajoso – e “bonitão”. Esperavam que fosse um herói árabe, da estatura do egípcio Nasser. Mas, após quatro décadas de uma brutal “república de massas”, a figura excêntrica que acumulava todos os poderes, só com a patente de coronel, também caiu do trono. Chegou ao fim o que um opositor descreveu como “a pior das ditaduras”. (Ler mais | Read more…)

© John Redman | AP
Mohamed Berween deixou a Líbia em 24 de Março de 1977, o ano em que Muammar Kadhafi proclamou a Jamahiriya Árabe Líbia Popular e Socialista. Nunca mais voltou à pátria, mas, agora que o Qa’id at-tawra (“Guia da Revolução”) foi morto, numa batalha com as forças que há oito meses o tentavam derrubar, este dirigente da oposição no exílio já comprou o bilhete de regresso.
“Estou tão feliz – chego a Trípoli no dia 16 de Novembro [de 2011]”, diz-nos, por telefone, o professor de Ciência Política e Administração na Texas A&M International University, nos Estados Unidos.
“Só não viajo imediatamente porque precisei de obter, antes, um documento que me permitisse sair do país que me deu asilo político”, explica Berween, acrescentando que, sem passaporte líbio nem cidadania americana, se sentia “um apátrida”.
Ele não esquece, porém, e agradece “a grandeza da América” que, “graças a um green card”, lhe permitiu ser professor a tempo inteiro numa prestigiada universidade. A universidade que agora lhe concede também uma licença sem vencimento, caso a sua nova vida – “Vou para ficar”, garante – não lhe permita sustentar financeiramente a família.
Berween, que nasceu em Misurata, a terceira cidade líbia situada menos de 200 quilómetros a leste de Trípoli e submetida a vários meses de cerco, foi forçado a exilar-se devido a “actividades no movimento estudantil”, que não especificou. Nunca se encontrou pessoalmente com Kadhafi.
Evoca apenas as visitas do coronel, entre 1973 e 1976, à Universidade de Ghar-Yunis, em Bengazi, antiga capital da província de Cirenaica, onde o seu pai era um homem de negócios. “Os discursos de Khadafi serviam para nos amedrontar”, recordou. “Ele fiava-se na política do medo, no princípio de Maquiavel de que ‘é melhor ser temido do que ser amado’.”
Depois da chegada a Trípoli, Berween seguirá logo para Misurata, onde vai rever o seu pai. Só após esta visita tenciona envolver-se activamente na política, oferecendo-se como conselheiro às novas autoridades, com as quais tem mantido contactos, mas “sem ambições” de integrar qualquer futuro governo.
“Por ser formado em Ciência Política, acho que posso contribuir para a construção de uma nova Líbia, preparar uma eficaz transição, apresentar ideias, projectos e soluções”, confia.
Que soluções vai propor? “Para já”, responde, “a criação de uma assembleia-geral de onde sairá um governo interino para organizar administrativamente o país e redigir uma Constituição. Tenho ideais republicanos e defendo um Estado de direito. Advogo um sistema político parecido com o dos EUA, onde quem faz as leis é o Congresso, quem as interpreta é o Supremo Tribunal e quem as aplica é o Presidente.”
“Para o Governo, porque a Líbia é um país muito vasto, três vezes maior do que a França, seria bom adoptar o sistema federal da Alemanha, com estados regionais – deste modo, estaremos a dar mais poderes às instituições e não aos indivíduos, como aconteceu até agora.”
A transição, adianta Berween “não deveria exceder um prazo de 18 meses, tolerando-se uma prorrogação por mais seis meses. Não mais. Não podemos esquecer que os ditadores adoram períodos de transição – Khadafi viu sempre os seus 42 anos de poder como uma revolução, um período de transição.”
A Constituição, por outro lado, “tem de garantir eleições livres e justas, com a presença de observadores estrangeiros. Devíamos seguir o modelo francês, segundo o qual todos se podem candidatar – a presidenciais e legislativas – mas com um limiar mínimo de votos.”
“Para eleger um Presidente, por exemplo, será necessário mais de 50 por cento – se não, submete-se a uma segunda volta”, adiantou.
“Para o Parlamento, se não quisermos correr o risco de ter mais de 100 partidos, é preciso adoptar o modelo alemão de representação proporcional. A Líbia não tem um só povo. Tem os Imazighen [berberes], os africanos, os árabes… a maioria, à qual pertenço, mas que não deve sobrepor-se aos outros.”
Qual o papel da religião no novo Estado? “A Líbia é um país islâmico e não creio que deva haver separação entre religião e Estado – era assim que pensava Ronald Reagan, o antigo Presidente dos EUA”, esclarece Berween. “Não podemos, de modo algum, ser um novo Afeganistão, um país de extremistas.”
“A nossa revolução, cooperando com a NATO, serviu de exemplo, e acho que, doravante, seremos também um novo modelo de país muçulmano, democrático, federal e pacífico. Tenho a certeza de que não seremos um Estado falhado!”
Na primeira entrevista que nos deu, quando a revolução começou em Fevereiro (15-16/2011), Berween mostrava-se confiante numa vitória rápida e na união dos líbios contra o ditador. Seis meses depois, quando o voltámos a contactar, explicou assim por que demorou tanto o desfecho pelo qual ansiava. “A crise prolongou-se por várias razões:
a) os combatentes [rebeldes] não estavam preparados para este tipo de guerra – são apenas pessoas comuns que estavam determinadas a lutar pela sua liberdade;
b) a falta de armas adequadas para que os combatentes defrontassem as forças de Khadafi e a recusa da comunidade internacional em fornecer-lhes armamento;
c) a falta de confiança da NATO nos revolucionários e o facto de a NATO estar à espera que o círculo de fiéis de Kadhafi o derrubasse num golpe, mais do que numa vitória dos combatentes pela liberdade.”
Berween rejeitou sempre a ideia de que a Líbia não se livrará de uma guerra civil mesmo após a morte do déspota, anunciada ontem pelos comandantes do governo de transição depois de uma batalha, em Sirte, onde Kadhafi foi capturado e ferido. “Esse cenário é um papão que jamais se materializará”, vincou.
“O mesmo se aplica ao tribalismo, um argumento que foi usado por Kadhafi para manter o seu controlo sobre a Líbia, sem sucesso. Sim, na Líbia há muitas tribos, mas todas acreditam na unidade do país e querem a liberdade. A Líbia não será dividida, entre leste e oeste, e manter-se-á um país uno, porque não pode existir de outro modo.”
O líder que Berween tanto desprezava – “um dos piores governantes da história da humanidade, um ser desumano e cruel” – nasceu Muammar ibn Abi al-Minyar al-Kadhafi, em Junho de 1942, numa tenda no deserto de Sirte, de uma família de pastores nómadas, membros de uma das 140 tribos da Líbia, a Khadadhafa.
Berbere e arabizada, pequena e insignificante, a Khadadhafa considera-se, porém, murabitoun (bendita), porque faz remontar as suas origens a Sid Khdafaddan, um wali (santo), enterrado em Al-Gharyan, a sul de Trípoli, refere o site GlobalSecurity.org.
Os Khadadhafa foram conduzidos para as zonas desérticas de Sirte pela Confederação de Sa’adi, liderada, entre outras tribos, pela dos Bara’sa, a que pertence Safiya (nascida Farkash al-Hadda), a mulher de Khadafi, que não se mostrava em público, mas “viajava pela Líbia em jactos privados e em colunas de Mercedes”, segundo dados divulgados pela controversa WikiLeaks.
Khadafi, que só tinha irmãs, terá suportado bem este ambiente severo e asceta. Será que isso influenciou a personalidade excêntrica e enigmática do “vilão da moda”, segundo a descrição da revista Vanity Fair, “com influências de Lacroix, Liberace, Phil Spector, Snoopy e Idi Amin”, vaidoso nos seus uniformes medalhados e túnicas de peles de animais?
“A resposta curta é ‘NÃO’”, vincou Berween. “Há pessoas com o mesmo background e são extraordinárias. Sem rodeios, digo que ele é um político psicopata. Infelizmente, a comunidade internacional não se importa de conviver com este tipo de dirigentes enquanto eles oferecem estabilidade política, e só quando constituem ameaça é que impõe sanções e os coloca em listas negras.”
O norte-americano Ronald Bruce St. John, autor de vários livros sobre o Magrebe, o mais recente, Libya: Continuity and Change, não exclui que o comportamento de Kadhafi tenha sido moldado pelo isolamento rigoroso em que foi criado.
“Modelou pelo menos a sua predilecção por viver em tendas”, seja no interior do forte de paredes triplas de Baba al-Azaziya, em Trípoli, ou nos jardins dos Campos Elísios, em Paris, observou St.John.
“Já não sei explicar por que é que ele adora usar vestes extravagantes e tem um corpo de [400] guarda-costas virgens, [maioritariamente etíopes].”
De uma breve biografia escrita por Taoufik Monastiri para a Encyclopaedia Universalis, sabe-se que Kadhafi tardou a frequentar o ensino primário e que estudou numa escola preparatória em Sebha, quando se mudou em 1956 para esta cidade, que é capital de Fezzan, uma das três províncias líbias (juntamente com a Cirenaica e a Tripolitânia).
No liceu, aos 17 anos, inspirado pelos ideais pan-arabistas do egípcio Gamal Abdel Nasser, criou com seis colegas uma primeira “célula política”. Mais tarde, na Universidade de Bengasi, interrompeu um curso de Geografia, três anos após a inscrição, para entrar na Academia Militar.
Em 1964, à semelhança dos Oficiais Livres que, liderados por Nasser, destronaram o Rei Farouk no Egipto, Khadafi formou o Comité dos Oficiais Unionistas Livres, cujo objectivo era derrubar a monarquia líbia e instaurar um Estado “revolucionário e nacionalista”.
A 1 de Setembro de 1969, aos 27 anos, o capitão que os amigos tratavam por al-jamil (o bonitão) aproveitou a “ausência excepcional” do velho Rei Idris al-Sanussi (em tratamento na Turquia) e tomou o poder – sem derramar sangue. O príncipe herdeiro, o sobrinho Hassan, foi obrigado a abdicar.
Segundo Monastiri, só semanas depois do golpe os líbios ficaram a saber quem era o chefe dos conspiradores, quando Khadafi fez um primeiro discurso na qualidade de “presidente do governo, presidente do Conselho do Comando da Revolução, comandante-chefe dos exércitos e ministro da Defesa”.
O seu programa político assentava no “nacionalismo árabe, no socialismo inspirado no Corão, no anti-imperialismo e na revolução do povo pelo povo”.
Kadhafi defendeu a destituição do rei como uma resposta à corrupção da dinastia Sanussi e “subserviência” às potências estrangeiras, que continuavam a dominar a antiga colónia italiana independente desde 1951.
Não tardou, pois, a que o “Líder Irmão” entretanto promovido a coronel (recusou a patente de general) ordenasse o encerramento das bases e a retirada das tropas do Reino Unido e dos EUA. Fez aprovar também uma lei de “protecção da revolução”, para reprimir toda a oposição, e criou a União Socialista Árabe, cópia do partido de Nasser.
Começou a dar sinais da sua excentricidade, quando, subitamente, comunicou que abandonava a vida política, para depois reaparecer, em 15 de Abril de 1973, em Zuwarah, onde inaugurou “uma nova era”, lembra Monastiri.
“Declarou uma revolução cultural, suspendeu leis, mandou eliminar dissidentes, deu armas ao povo e proibiu teorias importadas contrárias ao islão.”
Em 1976, Kadhafi publicou o primeiro volume do Livro Verde, uma espécie de Constituição nacional, onde explicita o seu conceito de “democracia” e justifica a criação de (temíveis) “comités populares” ou “comités revolucionários” – que haveria de mobilizar, entre 1980 e 1982, como esquadrões da morte para assassinar os opositores no estrangeiro a que chamava “cães vadios”.
Em 7 de Abril de 1977, proclamou a Jamahiriya Árabe Líbia Popular e Socialista – um “Estado das massas” sem Presidente, sem governo e sem Parlamento.
Em 1978, no segundo volume do Livro Verde, enunciou o sistema económico “kadhafiano” e, em 1979, no terceiro volume, definiu a “Terceira Teoria Internacional” – nem capitalismo nem comunismo.
O Livro Verde passou a reger a vida de todos os líbios, mesmo depois de o coronel, também autor da ficção Escape to Hell and Other Stories (“Fuga para o Inferno e Outras Histórias”), ter trocado o socialismo por uma economia de mercado, a partir de 1986, ao privatizar uma grande parte da indústria e do comércio do país.
Se a sua política interna era singular, a externa era igualmente peculiar. Tentando sempre emular Nasser, procurou formar várias uniões com países vizinhos, mas todos os planos fracassaram (chegou a travar um conflito armado com o Egipto em Julho de 1977). Os árabes começaram a olhar para ele como um louco.
Desiludido, Kadhafi trocou o pan-arabismo pelo pan-islamismo, competindo com os sauditas pela influência muçulmana em África. Tinha muito dinheiro para gastar, proveniente dos imensos recursos energéticos do país (reservas confirmadas que ascendem a 41,5 mil milhões de barris e 1490 biliões de metros cúbicos de gás natural).
Em África, contudo, os fiascos também ocorreram. Depois de apoiar o ditador canibal Idi Amin no Uganda, numa tentativa de “expansão ideológica”, envolveu-se em 1980 numa guerra de milhares de mortos com o Chade após ter anexado, cinco anos antes, a Faixa de Aouzou, rica em urânio, na altura necessário ao seu programa atómico. O contencioso só terminou no Tribunal Internacional de Haia, em 1994, com um veredicto a favor dos chadianos.
O dinheiro do petróleo serviu também para apoiar rebeldes na Libéria e na Serra Leoa, e ainda a OLP, de Yasser Arafat, a Frente Polisário no Sara Ocidental, o Exército Republicano Irlandês (IRA), e os mercenários venezuelano Carlos, o Chacal, e palestiniano Abu Nidal.
Foi nos anos 1980 que Ronald Reagan amaldiçoou Kadhafi como o Mad Dog (“Cão Raivoso”) do Médio Oriente, após dois atentados brutais: um, em 1986, na discoteca La Belle, em Berlim (três mortos e 200 feridos, alguns deles soldados norte-americanos); e outro, em 1988, na cidade escocesa de Lockerbie (270 mortos na explosão de um avião da PanAm). Reagan ripostou, mandando bombardear Trípoli e Bengazi. Morreram 60 militares e civis, incluindo uma filha adoptiva de Khadafi.
No final dos anos 1990, submetido a quase uma década de sanções internacionais e enfrentando uma oposição islamista, o beduíno, que, ainda segundo a WikiLeaks, tinha medo das alturas e era hipocondríaco, desfigurou os músculos faciais com botox e não viajava sem uma enfermeira ucraniana, “loura e voluptuosa”, chamada Galina (uma das primeiras a desertar do seu círculo, quando a rebelião progredia), decidiu mudar o seu próprio rumo.
Kadhafi foi o primeiro a emitir um mandado de captura contra Osama bin Laden, em 1998. O Presidente Bill Clinton ignorou a sua proposta de cooperação, mas George W. Bush não lhe virou as costas.
A 12 de Setembro de 2001, um dia depois dos ataques da Al-Qaeda contra o World Trade Center, o então chefe dos serviços secretos líbios, Musa Kusa, contactou a CIA e disse-lhes: “Esta é a nossa lista de suspeitos.” Em troca, teve autorização para os seus agentes interrogarem presos líbios em Guantánamo.
Antes, em 1998, Kadhafi já havia concordado em entregar os dois suspeitos do atentado de Lockerbie para serem julgados e aceitara “responsabilidade” (mas não culpa) pelo ataque.
Pagou 2,7 mil milhões de dólares em indemnizações às famílias das vítimas. No ano seguinte, após a suspensão das sanções, os investimentos estrangeiros na Líbia atingiram os 8000 milhões de dólares.
A 20 de Agosto, Kadhafi conseguiu a libertação do único condenado, Abdelbasset al-Megrahi [que morreu de cancro em Maio de 2012] membro de uma tribo, a Megraha, que sempre fora leal ao regime.
Os britânicos invocaram “razões humanitárias” para Megrahi não cumprir 27 anos de uma pena perpétua (sofria de cancro na próstata e tinha “menos de três meses de vida”). Especulou-se que foi trocado por lucrativos acordos comerciais [mas ele acabaria por morrer, em sua casa, depois de ter deixado um hospital em Trípoli, a 20 de Maio de 2012].
Em 2003, o imprevisível Kadhafi tomou a mais inesperada das decisões: anunciou o fim do programa de armas químicas e nucleares.
Seguiram-se cimeiras com Tony Blair (e um contrato, em 2007, com a British Petroleum/BP no valor de 900 milhões de dólares); com Nicolas Sarkozy (que assegurou acordos de 10 mil milhões, a maioria no sector da defesa); e com Silvio Berlusconi (que garantiu negócios de 5000 milhões e o controlo da imigração clandestina – entretanto perdido –, após ter pedido perdão pelo período colonial italiano).
Com 6,5 milhões de habitantes (dados de 2010), a Líbia – terceiro maior país de África depois da divisão do Sudão e o terceiro maior produtor de petróleo do continente – atrai os europeus, porque o custo de transportar este recurso vital pelo Mediterrâneo é inferior ao dos países exportadores do Golfo Pérsico.
Os líbios, por seu turno, a darem os primeiros passos para uma economia de mercado (reduziram subsídios, privatizaram mais de cem empresas desde 2003 e pediram adesão à Organização Mundial do Comércio/OMC), estavam sedentos de capitais para modernizar as suas obsoletas infra-estruturas e fazer face a um elevado desemprego.
O “rei dos reis de África” (título que deu a si próprio – e que em 2012 foi atribuído ao Presidente do Zimbabwe, Robert Mugabe) estava a colher os frutos de ter mudado de campo.
A Líbia chegou a membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU – dois anos de mandato iniciado em Janeiro de 2009 –, ano em que assumiu também a presidência da Assembleia Geral das Nações Unidas, tendo ainda integrado o conselho de governadores da Agência Internacional de Energia Atómica.
O que fez então cair esta “raposa do deserto”? Sobre ele um psiquiatra, depois de ouvir um dos seus discursos de longas horas, terá dito a Brian Whitaker, do diário The Guardian: “Recebo pacientes como ele todos os dias no meu consultório.”
Uma observação que condiz bem com uma passagem do seu livro Escape to Hell, onde Khdhafi escreve: “Boas notícias para os doentes mentais, sejam homens ou mulheres. Foi descoberta uma erva nas planícies de Bengazi e está agora à venda na loja de Hajj Hassan. (…) Quanto aos que ainda não são doentes mentais, [o comerciante] Hajj Hassan nada disse [sobre estes pacientes].”
A revolta popular, iniciada na noite de 15 para 16 de Fevereiro, “foi motivada pelo descontentamento generalizado com a corrupção e o clientelismo do regime”, respondeu-nos a, a partir do Novo México, Ronald Bruce St. John, que, por ser especialista em Norte de África, é consultor de algumas das 500 maiores empresas da revista Fortune e de agências governamentais dos EUA.
“A Líbia Oriental sempre foi um centro problemático, em parte porque Kadhafi castigou a região pelo apoio que antes deu à monarquia”, disse St. John, autor de Libya: From Colony to Independence.
“A província de Cirenaica é rica em petróleo, mas sentiu-se sempre expropriada das receitas que Khadafi distribuía pelos seus feudos na Tripolitânia.”
Uma das grandes questões que os analistas ainda se colocam é sobre o que vai acontecer no pós- Kadhafi. O coronel jamais permitiu uma alternativa ao seu poder num país que, como Berween relembrou, foi “o primeiro Estado-nação ao qual a ONU deu a independência depois de 40 anos de ocupação italiana” e onde a religião tem ocupado “uma posição ambígua”.
Durante mais de quatro décadas, “Kadhafi destruiu sistematicamente a sociedade civil na Líbia”, constatou Bruce St. John. “Criou a chamada ‘democracia popular’, mas, na realidade, sempre liderou o país de uma forma brutal e ditatorial.”
“A relação com os seus sete filhos e uma filha é muito estreita. Ele queria que um deles fosse seu sucessor, mas não fez uma escolha e sempre lançou uns contra os outros, para ver qual seria o mais forte e o mais capaz.”
St. John concorda que “a Líbia é uma sociedade tribal e regional”, onde os Khadadhafa ocupavam um lugar-chave no regime, em associação com as poderosas tribos Warfalla e Megraha, a primeira das quais renegou Khadafi assim que começou o massacre por ele ordenado na sequência da sublevação popular.
Uma outra, a Zuwaya, que habita as cidades petrolíferas do golfo de Sirta, ameaçou interromper as exportações de crude, se a violência não cessasse, mas foi impotente perante o avanço das tropas e mercenários contratados pelo regime.
Apesar deste sistema de tribos e clãs, St. John notou “o desenvolvimento de um certo sentimento de nacionalismo desde a independência em 1951”.
Os líderes tribais, disse o especialista norte-americano, ainda antes de Kadhafi ter lançado uma guerra total contra os que o desafiaram, “irão unir-se a outras forças para encontrar uma forma pacífica de fazer a transição para uma sociedade mais livre”.
Desde os primeiros dias da sublevação iniciada em Bengazi, o ódio a Kadhafi era palpável nas bandeiras do Reino da Líbia pós-independência, preservadas pelas confrarias sufis e erguidas pelos manifestantes – um sinal de memória de um tempo de normalidade.
Era também audível no lema do mítico combatente anti-italiano Omar al-Mukhtar que os revoltosos entoavam nas ruas: “Viver em dignidade ou morrer em dignidade!”
O regime agora decapitado é assim descrito por Mohamed Berween: “Um dos seus principais pilares era a ‘lealdade tribal’. E, baseada nesta, Kadhafi enfraqueceu e descentralizou as forças de segurança, organizando-as segundo linhas tribais. Também usava subornos e favoritismo.”
“Dividia para reinar. Nunca confiou em ninguém – nem nos seus filhos, embora quisesse manter o poder na família. Sofre da ‘mentalidade da plantação’. Vê a Líbia como uma plantação política, os líbios como seus escravos e os seus parentes como proprietários.”
“Seguindo este raciocínio”, continua Berween, Khadafi “conferiu aos filhos papéis e tarefas diferentes. Por exemplo, a Khamis e Hannibal ofereceu a liderança das milícias especiais que substituíram o exército profissional; a Mutassin [morto em combates com os rebeldes em 2011] deu a chefia da segurança nacional líbia; a Mohamed entregou o controlo das comunicações; e a Saif al-Islam encarregou das questões políticas e de ‘direitos humanos’, apresentando-o ao mesmo tempo como sucessor.”
Morto o coronel, o professor de Misurata é implacável na avaliação: “Kadhafi destruiu a Líbia. O balanço do seu regime, a nível interno, é opressão, pobreza e corrupção; a nível externo, prejudicou a imagem do nosso maravilhoso país e de um grande povo, devido às suas acções bizarras e caprichosas. A sua foi a pior das ditaduras.”
De Kadhafi ao “estado islâmico”
2011 — A 17 de Março, o Conselho de Segurança da ONU aprova a Resolução 1973, com 10 votos a favor, nenhum contra e cinco abstenções, com o propósito de estabelecer uma no-fly zone e usar “todos os meios necessários” para proteger os civis na Líbia, alvo de bombardeamentos por parte da aviação de Muammar Kadhafi; a 19 de Março, caças franceses entram em território líbio em “missão de reconhecimento”, visando ataques contra ‘alvos inimigos’; a 22 de Agosto, rebeldes que (a 17 de Fevereiro) iniciaram a sublevação no Leste da Líbia entram em Trípoli, a capital, e mudam o nome da Praça Verde para Praça dos Mártires, em homenagem aos cerca de 30.000 mortos da guerra civil; a 23 de Outubro, os rebeldes anunciaram a “libertação da Líbia”.
2012 — A 7 de Julho, realizam-se as primeiras eleições legislativas após a queda/morte de Kadhafi; a 8 de Agosto, o Conselho de Transição Nacional entrega o poder a um Congresso Nacional Geral (CNG, Parlamento), com a missão de formar um governo interino e redigir uma nova Constituição, a aprovar num referendo nacional; a 11 de Setembro, o grupo islamista Ansar al-Sharia mata o embaixador dos EUA na Líbia, J. Christopher Stevens, num ataque coordenado contra dois edifícios governamentais americanos em Bengasi; a 7 de Outubro, o primeiro-ministro eleito Mustafa A. G. Abushagur demite-se após o fracasso de uma segunda tentativa para formar governo; a 14 de Outubro, o Congresso Nacional escolhe para chefe do Executivo Ali Zeidan, um dos seus antigos membros e activista dos direitos humanos.
2013 — Em Junho, o CNG elege para presidente um deputado independente, Nuri Abu Sahmein, membro da minoria berbere, muito discriminada durante o regime de Khadafi.
2014 — A 11 Janeiro, o vice-ministro da Indústria Hassan al-Darouei, 42 nos, é morto a tiro, durante uma visita a Sirte, terra-natal de Kadhafi – o primeiro assassínio político desde que o ditador foi afastado do poder; Em Junho, depois da demissão de dois primeiros-ministros, Ali Zeidan e Ahmed Maiteg, depois de legislativas em que os islamistas sofrem uma derrota pesada, forças leais ao parlamento cessante (que passa a governar a partir de Tobruk) e ao parlamento eleito (também conhecido como “Governo de Salvação Nacional”, com sede em Trípoli) envolvem-se em confrontos; a maior parte de Bengazi fica sob controlo do Ansar al-Sharia, um grupo leal ao chamado “estado islâmico” (Daesh).
2015/2016 — A guerra civil iniciada em 2014 continua: o número de mortes ultrapassa os 4000; mais de um terço da população terá fugido da Líbia.
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 21 de Outubro de 2011 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on October 21, 2011