Kadhafi cortou as telecomunicações no Leste da Líbia e os comandantes rebeldes passaram a dirigir os combates com bandeiras: verde para avançar; vermelha para recuar. Foi assim durante um mês, até que um jovem de 31 anos se “infiltrou” numa das operadoras estatais e permitiu a dois milhões de pessoas a ligação ao mundo exterior. (Ler mais | Read more…)

O regime de Kadhafi dera ordens à empresa estatal de correios e telecomunicações para cortar, “física e electronicamente”, algures entre as cidades de Misurata e Khomas, o principal cabo de fibra óptica que ligava, debaixo de água, ao longo da costa, os serviços de telefone e Internet no Leste aos servidores centrais no Oeste
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Em Fevereiro último, quando acompanhava a segunda missão da sua organização humanitária, Tawasil, na distribuição de medicamentos e leite para crianças na Líbia, Ousama Abushagur ficou sem rede. Muhammad, o filho mais velho de Muammar Kadhafi e administrador de uma das duas operadoras de telemóveis no país, tinha cortado todas as comunicações com o Leste, bastião dos rebeldes contra o regime.
“As pessoas ficaram sem meios de comunicar com as suas famílias, dentro e fora da Líbia, e era urgente encontrar uma solução”, disse-nos, numa entrevista conduzida por Facebook, email e telefone o engenheiro que nasceu em Huntsville (Alabama, EUA) há 31 anos e há quatro reside no Dubai (Emirados Árabes Unidos).
“Tive uma ideia num voo de regresso a casa, proveniente de Malta. Já tínhamos enviado tantos telefones de satélite e hardware e, no entanto, o impacto na população era mínimo – tínhamos de ‘libertar’ uma das redes móveis.”
“A ideia foi desenhada, no dia 6 de Março, num guardanapo do avião – mas não, não o guardei”, refere Abushagur, sem lamentar não o ter guardado como recordação.
“A ideia do que fazia falta era bem clara. Só precisava de fazer uma lista de como montar tudo. OK: Preciso de capacidade de satélite, preciso de fundos, preciso disto e daquilo para que tudo funcione no terreno…, e então desenhei um diagrama.”
Toda a operação demorou cerca de um mês a montar, “com a ajuda de vários engenheiros da Libyana em Bengazi”, onde os rebeldes ficaram só com dois meios de comunicar. Um rudimentar, com bandeiras – verde para avançar e vermelha para recuar –; outro sofisticado, com telefones de satélite, mas pouquíssimos, de custo elevado e com sinal apenas em áreas desprotegidas e inseguras, à mercê da aviação de Kadhafi.
Libyana é uma das operadoras estatais da Líbia. A outra é a Al-Madar Al-Jadid. Ambas foram montadas pela Huawei Technologies Ltd., companhia chinesa que recusou financiar o projecto de Abushagur, forçando-o a encontrar uma solução híbrida que compatibilizasse o hardware de outras empresas com o sistema já existente.

Um jovem lê mensagens no seu telemóvel, em Trípoli, 28 de Outubro de 2011. A Líbia planeia lançar [em 2014] um concurso para o funcionamento da primeira operada privada de telecomunicações
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O regime deu ordens à empresa estatal de correios e telecomunicações para cortar, “física e electronicamente”, algures entre as cidades de Misurata e Khomas, o principal cabo de fibra óptica que ligava, debaixo de água, ao longo da costa, os serviços de telefone e Internet no Leste (desde Tobruk) aos servidores centrais no Oeste (até Ras Adjir).
Esta ordem superior cortou o acesso do Leste à Madar à Libya Telecom and Technology (LTT), o principal servidor de Internet do país, mas não perturbou a Libyana que, explicou a Al-Jazeera, fundada em 2004, depois da Madar, “estava menos centralizada e menos controlada pelo regime em Trípoli”. Para grande satisfação dos engenheiros em Bengazi, tinha também a sua própria HLR, que regista os subscritores.
Quando um utilizador da Libyana digita um número, o HLR reconhece o identificador (ID) do aparelho e liga-o à rede. A base de dados da Madar continuava em Trípoli mas a Libyana manteve um back-up em Bengasi.
Esta era a brecha que Abushagur, o líbio-americano que iniciou a carreira na Netscape, um dos primeiros browsers na Internet, precisava para realizar a sua ideia para a qual angariou “vários milhões de dólares” (que não quantifica) junto de generosos investidores seus compatriotas (que não identifica) no Golfo Pérsico.
A partir daqui, na companhia de três engenheiros líbios, quatro ocidentais e uma equipa de guarda-costas do Qatar pôs-se caminho da Líbia para coordenar a sua nova “missão humanitária” – tentando não levantar suspeitas.

A operação demorou cerca de um mês a montar, “com a ajuda de engenheiros da Libyana em Bengazi”, onde os rebeldes ficaram só com dois meios de comunicar. Um rudimentar, com bandeiras – verde para avançar e vermelha para recuar –; outro sofisticado, com telefones de satélite, mas pouquíssimos, de custo elevado e com sinal só em áreas desprotegidas e inseguras, à mercê da aviação de Kadhafi (na foto, combatentes usam os telemóveis para jogos de vídeo)
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Uma parte do equipamento para “piratear” a Libyana foi transportado por via aérea e o restante seguiu em contentores, através do Egipto, por onde a Tawasil já havia canalizado ajuda no valor de um milhão de dólares, e servido de intermediário no trânsito de médicos e jornalistas estrangeiros.
A viagem de Abushagur e dos seus companheiros hackers, comparada a uma “operação de espionagem”, enfrentou alguns percalços.
Ficaram retidos “durante mais de uma semana” nos serviços alfandegários da fronteira egípcia. Chegaram a Bengasi a 23 de Março, mas bastaram quatro dias para copiar a base de dados da Libyana, e mais um par de semanas até activar o sistema.
“Não tínhamos um HLR [Home Location Register], não tínhamos uma gateway internacional que permitisse chamadas para o exterior, não tínhamos nenhum SMSC [Short Message Service Center] e, por isso, fomos obrigados a reconfigurar tudo, adicionando elementos da rede do Leste para não mais depender de Trípoli, usando a infra-estrutura da Libyana mas ao mesmo tempo independente dela”, explicou Abushagur.
“Os engenheiros líbios trabalharam arduamente, juntamente com os quatro estrangeiros que estavam connosco. Separámos as duas redes, adquirimos capacidade de satélite no Intelsat 15 e ligámo-nos à rede da IDT Corporation para o serviço de voz internacional. A IDT fornece os cartões pré-pagos para as ligações feitas a partir do Leste da Líbia para a Telehouse, em Londres e daqui para o resto do mundo.”
Os fundos angariados por Abushagur permitiram comprar um HLR à Tecore Networks. Cada telemóvel tem um HLR que localiza o aparelho e permite saber para onde as chamadas devem ser direccionadas.
No dia 2 de Abril, os engenheiros em Bengazi conseguiram estabelecer o acesso a um VLR (Visitor Location Register), e estes dados foram depois usados para o novo HLR.

A eficácia da nova rede móvel na Líbia foi testada numa primeira chamada que Ousama Abushagur fez para a mulher, Aisha Gataani
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Assim surgiu a Lybiana Al Hurra ou Libyana Livre.
Não sendo ainda possível a cobrança de chamadas – as locais são grátis, mas as internacionais, com cartões pré-pagos, estão reservadas apenas aos dirigentes do governo rebelde de transição – Ousama Abushagur sabe que o seu trabalho não está terminado.
No entanto, dois milhões de líbios dentro e fora do país já podem comunicar graças à Libyana Livre, a nova rede cuja eficácia foi testada numa primeira chamada que o engenheiro do Alabama fez para a sua mulher Aisha Gataani.
“Foi ela quem mais me incentivou”, orgulha-se Abushagur. A mulher com quem se casou em 2005 e de quem tem um filho de dois anos e dez meses também nasceu nos Estados Unidos. Esta filha de refugiados líbios, tal como o marido (a família dela do Leste; a dele do Oeste), também está envaidecida – a ponto de ter adoptado o nome de Aisha FreeLibya Gataani na sua página do Facebook.
A fama que Abushagur conquistou com a sua proeza valeu-lhe a admiração de muitos mas também o ressentimento de alguns.
We are proud of you Ousama (Estamos orgulhosos de ti, Ousama), escreveu Majdi El Tajoury, um admirador, no mural do Facebook do engenheiro.
Um outro, Saleh Ali, deixou esta mensagem: Salamu alykum Ousama, may Allah save it to you to the final day, Ameen. (Que a paz esteja contigo Ousama, que Deus te salve até ao último dia, Ámen.)
Entre os mais melindrados, por outro lado, está Ahmed el-Mahdawi, principal engenheiro da Libyana em Bengazi. Em declarações à Al Jazeera, atribuiu a si próprio o mérito de ter reconfigurado o sistema que permitiu ao Leste voltar a comunicar – com chamadas locais gratuitas e com minutos ilimitados.
O fluxo de utilizadores fez o sistema entrar em colapso, forçando Mahdawi a repará-lo, garantiu ele, através de um computador pessoal na sua casa. Não ficou perfeito, e muitas ligações continuam a ser cortadas devido a uma sobrecarga de chamadas, sobretudo das que duram “mais de uma hora e meia, oito vezes por dia”.
Mahdawi queixou-se à Al Jazeera de que “não foi justa” a cobertura mediática dada a Absushagur, sobretudo o modo como o Wall Street Journal transformou numa estrela o filho mais velho de um professor de tecnologia na Universidade do Dubai e antigo executivo de uma multinacional do sector.
“Graças aos nossos esforços, os telemóveis nunca deixaram de funcionar no Leste – honestamente, Ousama nem chegou a tocar num teclado. O que ele nos ofereceu foi um canal para fazer chamadas internacionais porque, nesse campo, tínhamos mais dificuldade na configuração.”
Muftah el-Athrm, outro engenheiro, na companhia fornecedora de Internet LTT, também se mostrou surpreendido. “Até agora, não sei bem que papel é que ele [Abushagur] desempenhou. “Ele e o resto da sua equipa trouxeram uma enorme antena de satélite, um modem, routers e outro equipamento, no valor de milhões de dólares e essencial para ligar a rede existente da Libyana ao resto do mundo – só isso.”

Fotografar o fogo-de-artifício durante celebrações na Praça de Saha Kish Square, em Bengazi, em 23 de Outubro de 2011, depois de o governo de transição ter declarado “a libertação” do país
© Francois Mori | AP
Ousama Abushagur não respondeu ao nosso pedido de reagir a estas vozes de descontentamento. Nas várias conversas mantidas ao longo de uma semana, insistiu em que a acção que ajudou a desenvolver teve apenas “motivos humanitários – ajudar famílias receosas com o que se passa na Líbia”.
E acrescentou: “Não me interessa sequer saber se o que fizemos está a ter impacto na frente de batalha”, assegurou. “A minha preocupação é com os civis”.
No entanto, ao website Everything Alabama, Abushagur foi mais longe nos comentários pessoais: “Tornámo-nos nómadas. Por isso é que estamos a fazer isto. Quero um país ao qual possamos chamar o país da nossa origem. Quero que o meu filho, Ahmed, possa viver no país de onde os seus antepassados fugiram.”
Ele estava num tribunal em Bengazi, numa sexta-feira de oração que uniu os fiéis locais quando aviões americanos e europeus começaram a bombardear as forças de Kadhafi depois de o Conselho de Segurança das Nações Unidas ter aprovado uma zona de exclusão aérea.
“As bombas cessaram e os tanques pararam a poucas horas de a cidade ser destruída. As pessoas ergueram bandeiras dos EUA e da França para agradecer. Se não tivesse havido uma intervenção, seria cometido um massacre. Estamos muito, muito reconhecidos por este apoio. Precisamos que [a NATO] ataque mais no Oeste e era bom que o Governo norte-americano reconhecesse o novo Governo líbio. Kadhafi tem de sair.”
Abushagur garante-nos que o sistema que ajudou a montar, ainda que não encriptado, “é seguro, totalmente de confiança”. Para diferenciar a Libyana da Libyana Livre basta marcar mais um algarismo: “Em vez de 218 apenas, acrescenta-se a estes o número 9”.
“Fomos toda a nossa vida uma família de activistas”, frisou. “Não me considero um herói. Os verdadeiros heróis estão na Líbia. Não quero especular sobre a situação no terreno, mas estou optimista. Tenho a certeza de que vamos ganhar, só não consigo definir um prazo. Estamos a lutar por uma causa justa e sei que, ao fim de tantos anos de injustiça, este regime estará acabado.”

A ideia de Ousama Abushagur (aqui, numa conferência TED) de cortar a rede a Kadhafi ganhou forma a 6 de Março de 2011, no guardanapo de um avião. “Só precisava de fazer uma lista de como montar tudo. OK: Preciso de capacidade de satélite, preciso de fundos, preciso disto e daquilo para que tudo funcione no terreno… e então desenhei um diagrama”
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 10 de Maio de 2011 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on May 10, 2011