O Supremo Líder do Irão evitou a queda de Ahmadinejad, mas o primeiro Presidente destituído acredita que a teocracia não tem salvação. E insiste em que Reagan e Khomeini “conspiraram” – o primeiro (um republicano) para derrotar os democratas na América; e o segundo (um mullah) para impor uma teocracia. (Ler mais | Read more…)

Abolhassan Banisadr, em Junho de 2009. O primeiro presidente da República Islâmica do Irão vive exilado em França – o país de onde o Ayatollah Khomeini lançou a revolução para derrubar o Xá Mohammad Reza Pahlavi em 1979
© Tobias Schwarz | Reuters
Por estes dias, em Teerão, escreveu Reza Aslan, no website The Daily Beast, circula mais uma anedota: um jornalista estrangeiro apanha um táxi e, ao chegar a um cruzamento, pergunta ao motorista como se irá chamar a auto-estrada em construção. O condutor responde: “Auto-estrada Shahid [Mártir] Ahmadinejad”.
A anedota ilustra, segundo Aslan, as dúvidas quanto à permanência de Mahmoud Ahmadinejad no poder, sobretudo agora [Novembro de de 2010] que o seu próprio campo conservador divulgou uma carta em que alguns deputados revelam que se “abstiveram de questionar e impugnar o Presidente” apenas porque assim exigiu o Supremo Líder, Ayatollah Ali Khamenei.
Vários jornais, incluindo os ligados à ala dura, adiantaram que a carta tem 40 assinaturas. Para iniciar um debate parlamentar sobre impugnação são necessárias 73. Entre as “14 violações da lei” imputadas ao chefe de Estado estão “a importação ilegal de gasolina, a falta de transparência orçamental e o uso indevido de milhões de dólares da reserva nacional”.
Para entender o que se passa no Irão, entrevistei, por telefone, Abolhassan Banisadr, o primeiro Presidente da República Islâmica. Venceu as eleições de Janeiro de 1980 com 78,5% dos votos, mas em Junho de 1981 foi impugnado pelo Parlamento, que o considerou “politicamente incompetente para governar”.
Este desfecho só foi possível porque ele perdeu a confiança do Ayatollah Khomeini, o teólogo que derrubou o imperador Mohammad Reza Pahlavi. O seu maior erro foi tentar separar o Estado da mesquita.
Olhado com desconfiança até pelo seu campo liberal, Banisadr nunca exerceu autoridade efectiva – o poder tinha sido colocado nas mãos do Partido Republicano Islâmico (PRI), dominado pelos homens de turbante.
Nas legislativas de 1980, o PRI elegeu quase metade dos deputados. A primeira grande crise aconteceu quando chegou a altura de tomar uma decisão sobre o destino dos 53 norte-americanos que, em Novembro de 1979, tinham sido sequestrados na Embaixada dos EUA em Teerão.
Banisadr insistia em que os cativos deveriam ficar sob a sua alçada; o PRI exigiu que ficassem sob controlo dos sequestradores. Khomeini esperou pela jogada seguinte dos EUA, e ela aconteceu, com uma missão de resgate.
Quando soube que os helicópteros se despenharam e incendiaram, numa tempestade de areia, Khomeini creditou o fiasco a Deus, que “protegeu a nação governada pelo islão”. Ora, Banisadr não podia competir com Deus.
Em 20 de Janeiro de 1981, a decisão de libertar os reféns foi de Khomeini. Ele precisava de quebrar o isolamento, para se concentrar na guerra que o Iraque iniciara.
Em Março de 1981, o Majlis (Parlamento) restringiu os poderes do Presidente, numa altura em que começaram a circular rumores de que Banisadr tinha sido “informador da CIA”. Ele reagiu dizendo que o PRI era “uma calamidade maior do que a guerra”; O PRI replicou que “era melhor perder metade do território do que ter Banisadr como governante”.
A palavra final coube a Khomeini: “O dia em que sentir que a República Islâmica está ameaçada, cortarei as mãos de todos – farei o que fiz a Mohammad Reza.”
O Ayatollah retirou a Banisadr o comando das Forças Armadas a 10 de Junho de 1981. Quando o Parlamento o impugnou, dia 21, já estava na clandestinidade. A 29 de Julho fugiu para França.

Da esq. para a dir.: Abolhassan Banisadr, Mehdi Bazargan (que foi primeiro-ministro) e Khomeini em 1979, o ano da queda da monarquia
Vários jornais referem uma tentativa de deputados de impugnarem Mahmoud Ahmadinejad [que foi Presidente, durante dois mandatos, de 2005 a 2013] . Como avalia a situação?
O que aconteceu foi que o Conselho da Salvaguarda da Constituição aprovou um relatório visando aumentar os poderes do Presidente, mas quatro deputados escreveram uma carta aberta na qual mostram que o Presidente não está a cumprir a lei. No entanto, o senhor Khamenei interveio para que os deputados não interpelassem o Governo. Sem a autorização de Khamenei não haverá um inquérito parlamentar ao Presidente.
Porquê?
Porque foi Khamenei quem impôs Ahmadinejad. Foi uma grande aldrabice. Se o Parlamento colocar em causa o Presidente, estará a colocar em causa Khamenei. Para passar a imagem de que houve um entendimento, Khamenei impediu a interpelação de Ahmadinejad.
A imagem que nos chega é a de que está em curso uma luta pelo poder no campo conservador.
Ah, mas essas divisões na ala radical já não são uma novidade. Depois da sublevação popular que se seguiu às presidenciais de 2009, as divisões agravaram-se.
A questão mais importante que se coloca agora é quem vai suceder a Khamenei. Este fez um discurso perante os Basij, os voluntários ao serviço dos Guardas da Revolução, em que colocou a questão de como poderia ser aprovada uma lei que designe o seu filho Mojtaba como sucessor.
Uma parte do problema reside aqui: vários radicais [do regime] discordam desta sucessão. Acham que se o filho suceder ao pai regressa a monarquia.
O segundo problema tem a ver com o modo como Ahmadinejad geriu a economia iraniana, agora ainda mais deteriorada pela crise internacional. Isto acentuou fricções no regime, com alguns a defender que é preciso desembaraçar-se de Ahmadinejad. Terceiro problema: quem vai suceder a Ahmadinejad?
Fala-se na aplicação de um cenário semelhante ao da Rússia, quando Vladimir Putin trocou a Presidência com o primeiro-ministro Dmitri Medevedv na Rússia.
Ou seja, é necessário encontrar quem ocupe a Presidência antes de Ahmadinejad a deixar. E Ahmadinejad está a tentar lançar o seu “braço direito”, Esfandiar Rahim Mashaei, e o vice-presidente, Mohammad Reza Rahimi, para que eles se candidatem para depois saírem de cena e Ahmadinejad se recandidatar.
Só que este cenário enfrenta um obstáculo: os outros potenciais candidatos conservadores, como Ali Larijani, presidente do Parlamento, e Mohammed Bagher Ghalibaf, presidente da Câmara de Teerão [antigo comandante dos Guardas da Revolução e da milícia Basij, eleito em 2005]. Em resumo, as diferentes tendências da direita radical estão cada vez mais desavindas.
[Ahmadinejad perdeu o apoio de Khamenei (em parte por insistir em promover Mashaei) e, nas eleições de 2013, para surpresa de muitos, o vencedor foi um religioso “pragmático”, Hassan Rouhani, que tem tentado quebrar o isolamento do Irão.]

Em 1989, assim que Khomeini assumiu o controlo do país, Abolhassan Banisadr foi por ele nomeado vice-ministro da Economia e Finanças, em Julho, e ministro em Novembro. Em 25 de Janeiro de 1980, seria eleito primeiro presidente da República Islâmica e também designado para presidente do Conselho Revolucionário
© rayanworld.com
Pode a oposição beneficiar desta fraqueza do regime?
Hoje, a oposição democrática que estava dispersa começa a reagrupar-se e a unir-se, enquanto no regime as divisões se acentuam. É uma grande oportunidade.
Mas de que oposição está a falar? Há algum líder que seja uma alternativa a Ahmadinejad?
Há uma oposição dentro e fora do Irão que luta pela democracia. E está a registar-se uma aproximação à oposição reformista ao regime, cujas figuras de proa são Mir-Hossein Mousavi, Mehdi Karroubi e Mohammad Khatami.
Não incluiu nesse grupo o Ayatollah Akbar Hashemi Rafsanjani, o ex-Presidente. Porquê?
Porque Rafsanjani pertence ao campo conservador. Ele opõe-se a Ahmadinejad mas não partilha as ideias dos reformistas.
Os reformistas, como Mousavi e Khatami, também não pretendem a queda do regime. Defendem que o Irão se mantenha uma república islâmica Não é isso o que Rafsanjani quer?
Sim, os reformistas querem apenas mudar o regime, não extingui-lo, enquanto a oposição democrática tem como objectivo o fim do regime e a sua substituição por uma verdadeira democracia. Esta oposição, dentro e fora do Irão, mantém-se em contacto, de várias formas: redes sociais, publicação de artigos, discursos… Há correntes de pensamento, a informação circula.
A oposição fora do Irão já sanou as divergências que a fracturavam?
Durante o reinado do Xá [Mohammad Reza Pahlavi] não havia o precedente de uma oposição democrática unida, mas agora – na Europa, nos EUA e no Canadá – estamos a tentar redigir uma plataforma clara para definir as bases para uma democracia.
Acha mesmo que é possível o regime ser derrubado?
Tenho a certeza absoluta! O povo iraniano já não quer este regime, mas uma democracia genuína.
Como é possível derrubar um regime que assenta sobre o poderoso pilar dos Guardas da Revolução, que controlam tudo, até o programa nuclear?
Este regime dura há 30 anos [desde 1979] mas é minoritário. Em 1980, o PRI apresentou um candidato à Presidência e só obteve 4% – eu consegui 78,5 %. Hoje, o regime continua a ser minoritário porque não tem o apoio da maioria.
Há quem diga que, nas últimas presidenciais [em 2009], foram apenas as classes urbanas que votaram na oposição, enquanto a maioria escolheu Ahmadinejad. Como pode o regime ser minoritário?
Bem, para os conservadores, o regime é maioritário; para o povo, é minoritário. Um regime minoritário só pode governar graças aos Guardas da Revolução – isso não chega para sobreviver. Antigamente, não havia interesse do Ocidente em que o Irão fosse uma democracia. Agora, o Ocidente não quer que uma ditadura se instale no Irão.
Este não é um regime que beneficia da ajuda de potências internacionais como no tempo do Xá. É um regime isolado, tendo apenas os Guardas da Revolução como base. Não se pode governar assim por muito tempo. É impossível! Essencial é que o povo ultrapasse a fase de indecisão em que se encontra, para podermos encontrar uma alternativa democrática a esta ditadura.

Abolhassan Banisadr obtém licença do Ayatollah Khomeini para assumir a presidência da República Islâmica, em Janeiro de 1980
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O regime será derrubado a curto, médio, longo prazo?
Quando se trata de um regime deste género, não podemos dar uma resposta exacta. Em Portugal, Salazar esteve 40 anos no poder e caiu. Tudo vai depender de o povo vencer a sua indecisão – se vencer, o fim da teocracia será uma questão de curto prazo. Se a indecisão permanecer, o regime sobreviverá.
Foi o primeiro presidente da República Islâmica a ser impugnado. O que distingue a sua situação da de Ahmadinejad?
Há uma grande diferença! Eu fui eleito por uma maioria do povo e destituído num golpe de Estado, contra a vontade do povo. Hoje, o Irão tem um Presidente que não foi eleito, e é o povo que o quer afastar.
Ahmadinejad [teve] o apoio do Supremo Líder; o senhor, pelo contrário, perdeu a confiança de Khomeini. Como é que isso aconteceu, já que era um dos seus principais conselheiros no exílio?
Sabe? Khomeini fez um acordo secreto com Ronald Reagan e George H. W. Bush, e eu não aceitei isso.
Que acordo secreto?
Era um acordo para que os reféns na embaixada norte-americana em Teerão só fossem libertados depois de os republicanos derrotarem o democrata Jimmy Carter, nas presidenciais de 1980. Khomeini queria que eu aceitasse esse acordo.
Isso interessava a Khomeini?
Com os republicanos na Casa Branca, seria mais fácil para ele impor a sua ditadura no Irão.
É difícil entender como é que um marxista educado no Ocidente, como o senhor, se associou a um teólogo que engendrou o conceito de velayat-e faqhi (governo do jurista). Achou possível que Khomeini iria manter a religião separada do Estado?
Eu não era a favor do velayat-e faqhi – isso é indesmentível! Eu queria que a Constituição devolvesse a soberania ao povo. Foi por isso que Khomeini se opôs a que eu me candidatasse a Presidente.

Abolhassan Banisadr (ao centro) durante a chamada “crise dos reféns americanos“, que se seguiu à ocupação da Embaixada dos Estados Unidos em Teerão, em 1979: o princípio do fim da sua presidência

Banisadr fugiu para França na companhia de Massoud Rajavi (à dir.), líder dos Mujahedin-e Khalq/MEK, grupo de oposição que se aliou ao Iraque durante a guerra1980-1988 e, por isso, é hoje odiado pela esmagadora maioria dos iranianos]
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O que se diz é que o senhor foi a escolha de Khomeini para silenciar os críticos e para pôr fim a uma “guerra de mullahs” que durou de Dezembro de 1979 a Janeiro de 1980.
Não, não, não! Havia 26 candidatos – um número jamais visto noutro país. Khomeini disse que não votou em mim, porque ele não era a favor da minha candidatura.
No entanto, quando viu que obtive mais de 70% e que os candidatos dos mullahs só tinham 4% , os que dirigiam na época a República Islâmica, como Rafsanjani [que presidia ao Parlamento] e Khamenei [líder das orações de sexta-feira], começaram a conspirar contra a minha legitimidade política.
Foi aí que sentiu a sua vida em perigo e decidiu sair do país?
A minha vida esteve sempre em perigo, porque o procurador dos tribunais revolucionários me condenou à morte não uma ou duas vezes, mas sete!
Fui para França e, desde que aqui cheguei, não me canso de denunciar as relações orgânicas que havia entre o “khomeinismo” e o “reaganismo” – e foi por isso que fui perseguido e tive de fugir.
Há muitas histórias à volta da sua fuga. Teve de rapar o bigode?
Sim. Eu saí do país com um bilhete de identidade emprestado por um militar que não tinha bigode e, por isso, tive de rapar o meu.
E vestiu-se de mulher?
(Risos) Isso foi o que os Mullahs disseram. E sabe porquê? Porque desprezam as mulheres. Fui apanhar o avião a uma base militar e nunca poderia entrar vestido de mulher ou como civil. Embarquei com uniforme. Mas digo-lhe: se a situação exigisse, não teria qualquer problema em vestir-me de mulher.
O facto de ter fugido para França na companhia de Massoud Rajavi, líder dos Mujahedin-e Khalq, grupo de resistência armada que se aliou ao Iraque [e por isso é hoje odiado pela esmagadora maioria dos iranianos], com o qual o Irão travou uma guerra de oito anos e um milhão de mortos, não manchou a sua carreira política?
Eu e ele firmámos um acordo de princípios, baseado na independência, liberdade e não-hegemonia. Poderíamos ter sido uma alternativa forte de poder. Infelizmente, ele não respeitou o acordo. Aliou-se ao Iraque de Saddam Hussein [instalando bases na fronteira comum], e afastou-se da via da democracia. Ao recusar democratizar-se, tornou-se um perigo tão grande como os ‘Mullahs’.
Como tem sido a sua vida no exílio? Mantém contactos com o Irão? Tenciona voltar um dia?
Continuo activo politicamente em França. Dou entrevistas, escrevo. Em breve, vou publicar um livro, já traduzido para inglês, chamado A Dignidade do Homem. Não espero ser de novo Presidente, devido à minha idade avançada, mas continuo a esforçar-me para que o povo iraniano desenvolva a sua cultura democrática.
Se apoiasse um candidato a Presidente, qual seria?
Sob este regime, não há nenhum candidato que conte com o meu apoio ou protecção. Só quando este regime for substituído por uma democracia é que poderei dizer qual o meu candidato presidencial preferido, homem ou mulher.
Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 28 de Novembro de 2010 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on November 28, 2010