Quando os terroristas aceitam ir para a “rehab”

Jessica Stern trabalhava em Washington quando decidiu “fazer o que os académicos raramente fazem: falar com terroristas”. Dos vários encontros que teve resultou um livro, Terror in the Name of God – Why religious militants kill. Agora a sua missão é reabilitar terroristas, seja em Roterdão, Bagdad ou Minneapolis.  (Ler mais | Read more…)

© John Moore | Getty Images | The Independent

Na Primavera de 2000, quando estudava a liderança dos grupos terroristas no âmbito de uma bolsa da Universidade de Harvard, onde hoje dá aulas, Jessica Stern encontra-se, em Lahore, com um “quadro superior” da Harkat-ul-Mujahideen (HUM), organização que engloba vários grupos extremistas, supostamente ligada à al-Qaeda e ao directório dos serviços secretos paquistaneses (ISI).

No seu gabinete, numa das vielas da cidade, depois de oferecer à visitante porta-chaves, posters e calendários decorados com espingardas Kalashnikov, o homem por ela identificado apenas como Yusuf confessa-lhe que “já não acredita na causa”. Quer desistir.

No dia seguinte, Yusuf aparece para continuar a conversa, no hotel onde Jessica Stern se alojara. “Tenho medo – por mim e por ele”, escreve a autora de Terror in the Name of God – Why religious militants kill.

“Ele trabalha para uma organização que matou tanta gente. Mas agora diz ter mudado de ideias. Será que o ISI me montou uma armadilha? Será que querem ver como eu reajo perante esta situação? Será que, apesar de eu ter sido totalmente franca com eles em relação às minhas entrevistas, eles ainda pensam que trabalho para a CIA?”

Jessica Stern opta por ficar no lobby, na esperança de que a ruidosa música do piano abafe o som dos queixumes que vai ouvir. Yusuf diz que ganha um bom salário, “melhor do que no sector civil”, mas sente-se frustrado porque os seus chefes “estão a ficar cada vez mais ricos com a jihad“.

As aparências iludem. “Eles têm escritórios sujos e servem-nos comida má para provar que não têm dinheiro, mas vivem em mansões”, lamenta.

As organizações jihadistas recebem “muitos donativos” e uma grande parte vai para os líderes, beneficiários do “estatuto VIP” oferecido por vários governos paquistaneses, que os ajudam em campanhas de angariação de fundos e no treino militar.

Muitos dos que entram nas organizações jihadistas “provêm das classes mais pobres – 85 por cento vivem abaixo da linha de pobreza; 12 por cento pertencem à classe média, e cerca de três por cento são ricos”, especifica.

Yusuf quer escrever um livro para contar tudo o que sabe e “não sai nos jornais”. Acaba por deixar a HUM, mas a integração no “sector civil” não é fácil. Sem editora para lhe publicar a obra e assegurar subsistência, propõe-se escrever um artigo para um jornal liberal paquistanês lido pelas elites, mas este não garante segurança pessoal.

Os amigos aconselham-no a desistir dos seus planos e a manter-se afastado durante alguns anos. Ele estava, porém, determinado a ser “um mártir por uma nova causa, como se, apesar de ter deixado a jihad, não pudesse jamais abandonar uma vida de perigo e sacrifício – desta vez uma jihad contra os jihadistas”, constatou Stern.

© John Moore | Getty Images | Newsweek

Depois de “fazer o que os académicos raramente fazem: falar com terroristas”, Jessica Stern foi chamada a envolver-se em projectos de “reabilitação [rehab]” de terroristas, na Holanda, no Iraque, na Grã-Bretanha, na Arábia Saudita e nos Estados Unidos.

O seu currículo impressiona. Quando escreveu Terror in the Name of God, aclamado pelo New York Times como notable book of the year, em 2003, ela era Superterrorism fellow no Council on Foreign Relations (Washington), ao qual continua associada. Pertenceu ao Conselho Nacional de Segurança do ex-Presidente Bill Clinton, em 1994-95.

É também membro da Comissão Trilateral (organização internacional privada criada em 1973 por David Rockefeller e que hoje congrega 325 personalidade e líderes de diversas áreas da América do Norte, Europa e Japão).

É National Fellow da Hoover Institution e Fellow do Fórum Económico Mundial. Fez um mestrado em Engenharia Química no prestigiado MIT (Massachusetts Institute of Technology) e o doutoramento em Política Pública na Universidade de Harvard.

Numa entrevista, por e-mail, Jessica Stern revela que Yusuf ainda lhe escreve, “de vez em quando, a contar as dificuldades da sua transição”. Ela não o considera, porém, “um tipo particularmente espiritual”. As razões da sua frustração “são outras”, que não explicita.

O seu arrependimento nada tem a ver com o de um combatente na Caxemira que ela conheceu e cita sob anonimato: “É errado ser zelota e fundamentalista.”

Os terroristas arrependidos não são todos iguais, vinca Stern, apontando o caso de um neonazi que se “reformou” depois de convencido de que não podia continuar a querer “livrar o mundo” de casais racialmente mistos, de homossexuais e de judeus.

“Este homem era muito devoto e, por isso, foi-lhe muito doloroso ter de reconhecer que tinha, segundo ele, interpretado mal as palavras de Deus.” Na Arábia Saudita, muitos dos “terroristas recuperados” que Stern conheceu “mudaram o comportamento mais do que as ideias”.

Em Terror in the Name of God, Jessica Stern tenta responder a questões que há muito a intrigavam: “Por que é que a mesma fé em Deus que inspirou Miguel Ângelo e Mozart também inspira vários crimes? Por que é que os textos religiosos dão aos terroristas justificação para matar inocentes e a outros dão inspiração para a caridade?”

Os terroristas religiosos – sejam eles judeus como Yoel Lerner, que conspira para assassinar os árabes de Israel; cristãos como Paul Hill [1954-2003] que matava médicos e enfermeiros nos Estados Unidos, por ajudarem mulheres a abortar; ou muçulmanos como Já’afar Umar Thalib, teólogo indonésio que instiga massacres e conversões forçadas dos que não professam o Islão – sentem-se “ameaçados pela propagação de valores como o secularismo e as liberdades individuais”.

© Brennan Linsley | AP | axios.com

Nos grupos terroristas, observou Stern, “os fracos tornam-se fortes, os egoístas tornam-se altruístas, dispostos a sacrificar a própria vida na convicção de que a sua morte servirá o bem público. Entram numa espécie de transe, onde o mundo se divide em bem e mal, vítima e opressor.”

“Não há espaço para o ponto de vista do outro. Porque acreditam que a sua causa é justa (…), até o crime mais hediondo consideram justificável. Acham que têm razão, não apenas política mas moralmente. Acreditam que Deus está do lado deles”.

Se Deus “fica silencioso”, os terroristas imitam o opressor. “O objectivo é vencer a qualquer preço”, adianta Stern. “Com o tempo, o cinismo começa a sobrepor-se. O terrorismo torna-se numa carreira, tanto quanto uma paixão. O que começa por ser um fervor moral transforma-se em organização sofisticada. O ressentimento ganha a forma de ganância – por dinheiro, poder político ou atenção.”

“Devemos compreender esta dinâmica e explorá-la de todas as maneiras possíveis, semeando a discórdia, a confusão e até a rivalidade entre terroristas, e entre terroristas e os seus patrocinadores”, recomenda Stern. Terá sido, então, no decurso das suas conversas com terroristas que ela, tantas vezes compelida a ocultar a sua origem judaica, descobriu ser possível reabilitá-los?

“Para ser honesta, a experiência de falar com eles deixou-me bastante céptica quanto à capacidade de estranhos conseguirem “desradicalizar” terroristas diligentes e profissionais”, esclarece a mulher elogiada como “a maior especialista em terrorismo nos Estados Unidos”.

Stern começou por se envolver no processo de “desradicalização” em 2005, meses depois de o cineasta holandês Theo van Gogh, ter sido assassinado por um islamista. As autoridades da cidade de Roterdão contrataram-na para ajudar a “desenvolver um conceito de cidadania que incluísse os nascidos na Holanda, os imigrantes e seus filhos”.

O município estava preocupado com “a ideia de que a jihad estava a atrair não apenas jovens muçulmanos mas também recém-convertidos ao islão”.

Stern considera que “os extremistas mais perigosos, no Ocidente, tendem a ser os convertidos ao Islão takfir“, o que legitima a morte dos outros como infiéis. Esta “ideologia extremista” atrai também os “muçulmanos renascidos”, de uma maneira geral, jovens que “procuram uma forma de islão mais “pura” do que o islão sincrético e etnicamente moderado praticado pelos seus pais, e que encontram apoio [em sites islamistas] na Internet”.

Em 2007, Stern foi recrutada por uma empresa ao serviço do Exército norte-americano para desenvolver um programa de reabilitação para “os cerca de 26 mil “terroristas”” detidos em Camp Bucca (entretanto encerrado) e Camp Cropper, no Iraque.

Nestas prisões, sob supervisão da Task Force 134, “era imperativo encontrar uma maneira de afastar os mais perigosos entre eles, integrando na sociedade os detidos que constituíssem um perigo menor, sem com isso colocar em risco as populações”, disse-nos Stern.

“Concluímos que a vasta maioria dos “terroristas” capturados não eram, na realidade, terroristas. Alguns eram insurrectos, no sentido de que combatiam pessoal militar e não civil.”

© John Moore | pri.org

Stern surpreendeu-se quando reparou no “número elevado de jovens” que detonavam bombas “não por estarem interessados na ideia de uma guerra santa, mas por dinheiro – precisavam de emprego”. O esforço de reabilitar estes detidos “parece ter resultado, mas é difícil perceber se o sucesso se deve ao programa aplicado ou porque muitos dos terroristas não eram terroristas”, afirmou.

As mesmas dúvidas se colocam em relação aos esforços que estão a ser empreendidos na Arábia Saudita, de onde eram originários 11 dos 19 bombistas suicidas dos ataques de 11 de Setembro de 2001 nos EUA. O reino garante que já conseguiu reabilitar “80 a 90 por cento” dos seus terroristas.

Stern interroga-se: “O que significa isto? É certo que os terroristas envelhecem como todos nós, mas será que alguns destes “beneficiários” (o termo saudita para os que se submetem à reabilitação) estavam predispostos a desistir de lutar?”

“Será que o mais importante não é a vigilância pós-libertação e o resto do programa de reabilitação é apenas uma fachada? Não podemos saber sem termos acesso às pessoas que se sujeitaram a esses programas – de preferência, antes e depois.”

Em 2009, Stern visitou um centro de reabilitação em Riad, onde terroristas condenados aprendem a reintegrar-se na sociedade através da “reeducação religiosa, aconselhamento psicológico e ajuda para encontrar emprego”.

Pergunto-lhe: de que vale este esforço se a doutrina oficial da Arábia Saudita, o wahhabismo, é a mesma adoptada por Osama bin Laden e pela Al-Qaeda? “O governo saudita insiste em que a principal razão para o terrorismo é a ignorância sobre a verdadeira natureza do islão”, responde Stern. “Os teólogos envolvidos na reabilitação de terroristas ensinam que só os Estados e não indivíduos, como Bin Laden, podem declarar uma guerra santa.”

Se os programas de reabilitação ajudam a diminuir o número de terroristas, Stern evoca também um outro factor: “Os milhares de civis muçulmanos mortos pela al-Qaeda e grupos afiliados no Iraque, Afeganistão ou Argélia mancharam a sua reputação de movimento islâmico de vanguarda.”

© Brennan Linsley | Associated Press | Los Angeles Times

Vários líderes islamistas que em tempos apoiavam Bin Laden, “como Sayyid Imam al-Sharif [conhecido por Al-Fadl], o padrinho ideológico da organização, renegaram-na publicamente”. Além disso, várias sondagens indicam que a popularidade da al-Qaeda entre as populações muçulmanas “está em declínio.”

Reabilitar terroristas, a avaliar pela experiência saudita, é extremamente oneroso, observou Stern. Estarão os governos interessados em investir os fundos necessários? “Creio que sim”, responde a especialista. “Vários países iniciaram programas de desradicalização, incluindo Singapura e a Líbia. Os líbios fizeram um grande esforço para neutralizar o Grupo de Combate Islâmico.”

“Isso não significa, todavia, que os programas são sempre bem-sucedidos, ou que não existam interesses e facções concorrentes dentro dos governos a promover o contraterrorismo e a desradicalização. Na Europa, sinto que estão a levar muito a sério os programas que têm como finalidade a prevenção do terrorismo.”

O problema mais grave, reconhece Stern, é que “os muçulmanos moderados tendem a ser olhados com menos credibilidade” quando recebem fundos de governos ocidentais no combate ao extremismo. “Recentemente, fui contactada por um dirigente da comunidade somali-americana que se mostrou muito preocupado com a aparente radicalização na mesquita de Abubakar As-Sadique, em Minneapolis.”

À maior cidade do estado do Minnesota têm chegado, nos últimos anos, vários imigrantes e refugiados da Somália, e estes pouco têm em comum com os muçulmanos dos Estados Unidos. Têm sido comparados aos paquistaneses no Reino Unido e aos marroquinos na Holanda, que se sentem discriminados nas escolas e no mercado de trabalho. O primeiro bombista suicida norte-americano era de origem somali.

O líder comunitário que abordou Stern “pretendia obter mais informação sobre os programas de desradicalização no estrangeiro. Gostaria de visitar a Muslim Contact Unit em Londres [parceria entre forças especiais e líderes comunitários muçulmanos estabelecida em 2002], para ter algumas ideias. A fonte de financiamento mais fácil, para ele, seria o FBI, mas ele receia que, ao aceitar fundos da polícia federal, a sua comunidade olhe para ele como um fantoche”.

Foi isso que aconteceu à Quilliam Foundation, no Reino Unido, formada por dois antigos membros da organização islamista Hizb ut-Tahrir. Assim que este think tank anti-extremista recebeu cerca de um milhão de libras do governo britânico, perdeu o respeito dos muçulmanos britânicos.

Em 2003, surgiu uma alternativa: Hanif Qadir e o seu irmão, antigo membro de um gang local, criaram a Active Change Foundation, organização que dirige um grupo juvenil e um ginásio, no norte de Londres, com o apoio da Polícia Metropolitana (Scotland Yard).

Qadir contou a Jessica Stern como em 2002, a caminho do Afeganistão, depois de contratado pela al-Qaeda, mudou de ideias ao ouvir que os “voluntários” estavam a ser usados como “carne para canhão”.

Desde então, tem-se dedicado a encorajar jovens a “exprimir a sua raiva sobre o tratamento dos muçulmanos no Iraque, na Palestina e noutros locais, mas canalizando-a para uma acção política pacífica”. A razão do seu êxito está em trabalhar “por detrás do muro de silêncio” com as comunidades que a sociedade deixou nas margens.

Jessica Stern
© Boston University

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi originalmente publicado no jornal PÚBLICO, em 1 de Abril de 2010 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on Abril 1, 2010

 

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