A história de Kibris não é igual à de Kypros

O trauma dos cipriotas gregos começou com a intervenção militar da Turquia em 1974; o dos cipriotas turcos começou em 1963-64, quando foram obrigados a viver em enclaves. (Ler mais | Read more…)

Uma mulher chora a morte do seu marido, assassinado por um extremista cipriota grego, quando os cipriotas turcos começaram a ser atacados e obrigados a refugiar-se em enclaves. A imagem é do britânico Don McCullin, considerado “um dos maiores fotógrafos de guerra da História”. De 1964 até 1984, esteve em Chipre, no Congo, no Biafra (antigo Estado separatista na Nigéria), no Vietname, no Camboja e no Médio Oriente. @Don McCullin | World Press Photo 1964

Uma mulher chora a morte do marido, assassinado por um extremista cipriota grego, quando os cipriotas turcos começaram a ser atacados e obrigados a refugiar-se em enclaves
© Don McCullin | World Press Photo 1964

Quando começou o conflito de Chipre – ilha do Mediterrâneo que os gregos chamam Kypros e os turcos Kibris?

Foi em 1963-64, quando os cipriotas gregos e Atenas “planearam a anexação e o extermínio” dos cipriotas turcos?

Ou em 1974, quando o exército da Turquia – o segundo maior da NATO – “invadiu e ocupou” o Norte do que viria a ser, três décadas depois, um Estado membro da União Europeia?

A resposta depende do lugar onde nos encontremos. Em 2007, no Sul, o cipriota grego Demetres Constantinides contou-me como se tornou num “refugiado” em Limassol depois de, em 1974, ter perdido todas as propriedades da sua família em Kyrenia, agora sob controlo de “mais de 40 mil soldados e uns cem mil colonos turcos”.

Em 2009, no Norte, o cipriota turco Turgut Vehbi levou-me ao Museu da Barbárie, em Lefkosa/Nicósia – última cidade dividida da Europa –, para nos mostrar o que aconteceu em Dezembro de 1963, a uma outra família.

O museu funciona na antiga residência de Nihat Ilhan, antigo major cipriota turco. Nas paredes estão fotos e artigos publicados em 25-26 de Janeiro de 1964, quando jornalistas estrangeiros furaram o isolamento de Kumsal, bairro turco de Nicósia, onde “200 a 300 pessoas” tinham sido mortas “em cinco dias”.

Sobre o incidente conhecido como Bloody Christmas, escreveram Rene MacColl e Daniel McGeachie, do Daily Express: “Na Rua de Irfan Bey, nº 2, entrámos numa casa com o chão coberto de vidros partidos. (…) No quarto de banho, parecendo um grupo de figuras de cera, estavam três crianças empilhadas sobre o corpo da sua mãe”. Foram assassinadas na banheira onde se haviam escondido.

“Não sou racista, mas odeio os turcos, porque arruinaram a minha vida”, disse-nos o agente alfandegário Demetris Constantinides.

“Se o exército turco não viesse salvar-nos, já não estávamos aqui”, disse-nos Turgut Vehbi, que agora pertence a uma comissão que procura os “desaparecidos” de um lado e do outro do conflito.

A história contada em Lefkosa – onde fomos convidados a assistir, no dia 15, às celebrações do 26º aniversário da autoproclamada República Turca do Norte de Chipre (RTNC), apenas legitimada por Ancara – não coincide com a história que é narrada no Sul, a República de Chipre, reconhecida por todos, excepto pela Turquia.

“O grande trauma dos cipriotas turcos começou em 1963-64, quando foram forçados a viver em enclaves” em condições de “humilhação e desumanização”, explica o psiquiatra Vamik Volkan, também ele um cipriota turco, fundador do Center for the Study of Mind and Human Interaction (CSMHI), na Universidade da Virgínia (EUA).

Para os cipirotas turcos foi em 1963 e em 1964 que o arcebispo-presidente cipriota grego Makarios (na foto) “planeou destruir o carácter binacional” de Chipre e anexar a ilha à Grécia
© Pinterest

Naquela altura, cerca de 25 mil a 30 mil cipriotas turcos tornaram-se deslocados internos – ou seja, um quinto da população turca da ilha, que totalizava apenas 120 mil.

Num primeiro período, de 1963 a 1968, especifica Volkan, em Trauma, Identity and Search for a Solution in Cyprus, os cipriotas turcos viveram “virtualmente prisioneiros em enclaves que abrangiam apenas 3% da ilha”.

Num segundo período, entre 1968 e o Verão de 1974, foram “autorizados” a sair desses enclaves para entrar em território cipriota grego e “visitar outros enclaves”. Em todo o caso, as terras de onde tinham sido forçados a fugir em 1963-64 já não as podiam povoar.

Como se chegou a esta deslocação forçada? Relata o historiador Andrew Mango, em The Turks Today: “O arcebispo Makarios III, que se tornara presidente de Chipre, e os grupos nacionalistas gregos à sua volta estavam determinados a rever o acordo que um governo conservador em Atenas o persuadira a aceitar em 1960, como única alternativa à divisão da ilha”, independente do Reino Unido.

Makarios e os seus aliados “contactaram o Governo britânico, uma das três Potências Garantes [as outras são a Turquia e a Grécia] e ficaram com a impressão de que Londres não objectaria, se Ancara também concordasse, a uma redução, ou à total abolição, dos direitos consagrados da comunidade cipriota.”

O arcebispo e o líder grego Andreas Papandreou estavam também convencidos de que os EUA impediriam a Turquia de intervir em Chipre.

Na véspera de Natal de 1963, “os [cipriotas] turcos começaram a ser atacados por toda a ilha”, escreveu Mango, aclamado biógrafo de Atatürk, o fundador da Turquia moderna. “Expulsos do governo, foram obrigados a refugiar-se em enclaves.”

Em Ancara, Ismet Inönü, sucessor de Atatürk, apelou à Grã-Bretanha para usar o seu direito intervir, de modo a restaurar a Constituição” que Makarios tentou rever em 30 de Novembro – uma tentativa, segundo os cipriotas turcos, de “destruição do carácter binacional da república”.

Os britânicos preferiram chamar a ONU, “que travou o massacre dos turcos mas não anulou os ganhos dos gregos”, adiantou Mango.

“Quando Inönü se preparava para intervir unilateralmente, como era também seu direito, o presidente Lyndon Johnson advertiu-o de que, se a URSS se insurgisse contra uma intervenção turca em Chipre, a NATO não ajudaria a Turquia”. Inönü conteve-se.

“Após ter falhado uma primeira tentativa para subjugar os cipriotas turcos, em 1963-64, o arcebispo Makarios conformou-se com um processo mais lento de os reprimir”, continua Mango, “Mas era demasiado lento para a junta grega em Atenas, agora dominada pelo impetuoso brigadeiro Dimitrios Ioannidis.”

Em 1974, “mais de 200 mil cipriotas gregos (na foto) – estimativas oficiais em Nicósia – terão sido forçados a abandonar as suas casas no Norte da ilha. De igual modo, “mais de 50.000 cipriotas turcos” foram obrigados a sair do Sul
© Wilimedia Commons

A 15 de Julho de 1974, a Grécia apoiou um golpe que derrubou Makarios. Inquieto, o primeiro-ministro turco, Bülent Ecevit, foi a Londres persuadir, em vão, o governo britânico a intervir juntamente com a Turquia.

“Receando que a Grã-Bretanha e a América aceitassem um regime em Nicósia liderado pelo terrorista Nicos Sampson [Nikos Giorgiades], Ecevit ordenou o desembarque das suas tropas em Chipre”, em 20 de Julho. Controlam agora um terço da ilha.

Que a “mãe-pátria” ainda é vista como garantia de sobrevivência ficou bem visível nas comemorações do aniversário da RTNC, em Kyrenia/Girne.

Quando os Turkish Stars, esquadrão de sete aviões supersónicos, entraram no espaço aéreo cipriota (vindos da Turquia, a dez minutos de distância), uma multidão ululou eufórica.

E quando os pilotos-acrobatas desenharam no céu um coração vermelho, que ficou a pairar sobre o histórico castelo junto ao porto, lágrimas rolaram em muitos rostos emocionados.

A Turquia ofereceu protecção, mas o trauma dos cipriotas turcos não desapareceu, notou o psiquiatra Vamik Volkan.

A partir de 1974, a opinião pública marginalizou-os como “agressores”, enquanto os cipriotas gregos foram tratados como “vítimas” e reconhecidos legalmente como um Estado. “Esta realidade criou um enclave invisível”, onde os cipriotas turcos se sentem “seres humanos de segunda classe”.

Tropas turcas festejam a invasão e ocupação do Norte de Chipre, em 1974
© Cyprus Mail

A jornalista viajou  a convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Turca do Norte do Chipre 

Este artigo foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 15 de Novembro de 2009 | This article was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on November 15, 2009

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