O “tio” do Curdistão já não quer ser um problema

Dez anos após a sua captura, o líder do PKK apresentou um Roteiro para pôr fim a um conflito que, num quarto de século, custou mais de 40 mil vidas. Quem é este Abdullah Öcalan, que em criança queria ser um soldado como Atatürk mas se transformou no inimigo número um da Turquia? (Ler mais | Read more…)

O inimigo nº 1 da Turquia é o único recluso da prisão de segurança máxima na ilha de Imrali, no Mar de Marmara. É aqui que Abdullah Öcalan cumpre pena perpétua (a sentença de morte inicial foi comutada, sob pressão da União Europeia) depois de o seu Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) ter iniciado uma guerra de guerrilha em 1984
© rudaw.net

A ilha de Imrali, no Mar de Marmara, é uma prisão de segurança máxima. Os seus 25 quilómetros quadrados são vigiados por forças terrestres e marítimas, navios de guerra e submarinos. Nenhum avião civil a pode sobrevoar e ninguém dela se pode aproximar num perímetro de cinco milhas.

Nesta fortaleza há uma rede digital de 165 câmaras de vídeo e três sistemas de raio-X para verificação da retina e impressões digitais.

Há um guarda e dois assistentes, 40 agentes de segurança e 700 militares. Tudo isto para garantir que Abdullah Öcalan, 61 anos, cumprirá uma pena perpétua pela guerra que o seu Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) declarou à Turquia em 1984 – o primeiro ataque foi em 15 de Agosto.

Único prisioneiro em Imrali desde que foi capturado em 1999, Öcalan está confinado a uma cela de 13 metros quadrados, com uma cama, uma secretária, um chuveiro e uma sanita. Todos os dias, durante uma hora, é autorizado a “apanhar ar” num pátio de 40 metros quadrados, cercado por muros e arame farpado.

Durante uma hora, e uma vez por semana, Öcalan recebe a visita dos seus advogados, porta-vozes com o mundo exterior que lhe levam cartas e livros – ele gosta de Nietszche e de Fernand Braudel. Uma vez por mês, os familiares mais próximos podem vê-lo, mas ele não pode ver televisão e só tem permissão para ouvir uma estação de rádio sintonizada pelas autoridades prisionais.

Numa década de isolamento, e não obstante “problemas na próstata” e “deterioração do estado mental”, Öcalan escreveu (e publicou) quatro dos seus “mais de 40 livros”, um deles sobre “as raízes da civilização”.

Apresentou também um Roteiro [em Agosto de 2009] para “solucionar” o conflito que, num quarto de século, matou entre 30 mil e 40 mil pessoas, e custou à Turquia cerca de 300 mil milhões de dólares.

Um cessar-fogo, uma amnistia para o PKK, mais direitos e autonomia para os curdos seriam algumas das propostas de Öcalan. “Ele não pede para ser aceite como interlocutor em negociações, apenas está a ver se desempenha o papel de facilitador”, justificou Irfund Dundar, um dos seus advogados.

O ministro turco dos Negócios Estrangeiros, Ahmet Davutoglu, respondeu: “A questão curda será resolvida em Ancara, não em Imrali”.

Pode o Governo permanecer indiferente às ideias desta figura curdos veneram como “um profeta” e os turcos renegam como “assassino de bebés”?

Escreveu o comentador político Cengiz Çandar no Turkish Daily News: “Não devemos esquecer-nos de que Öcalan é, sem dúvida, o ‘número um’ do PKK. Por um lado, podemos interrogar-nos como é que os membros do PKK vão ser convencidos a deixar os campos nas montanhas, como serão desarmados, como é que a violência como parte da questão curda vai acabar; e por outro, podemos apenas ignorar o decisor número um do PKK.”

“Será que isto soa a razoável? Transformar Öcalan em parte da solução só pode ser conseguido através do contributo sério, genuíno e sólido do Roteiro para a erradicação da violência. Ele deve ser encorajado a seguir nesta direcção.”

O comentário de Çandar demonstra bem como a Turquia mudou desde que, há dez anos, condenou Öcalan à forca. A mudança começou em 2002 quando a pena de morte foi abolida (por pressão da União Europeia) e o chefe do PKK viu a sua sentença comutada para cárcere vitalício em Imrali – onde passou a ter, posteriormente, a companhia de mais nove detidos, como anunciaram jornais turcos.

A história de Abdullah Öcalan confunde-se com a dos curdos (na foto, guerrilheiro do PKK nas montanhas Kandil, cerca de 50 Km a sul do eixo Turquia-Iraque-Irão). É uma história de traições e sonhos desfeitos que começa em 1920 com a assinatura do Tratado de Sèvres, imposto pelas potências vitoriosas da Primeira Guerra Mundial ao derrotado Império Otomano
© juliengoldstein.com

A Turquia – por iniciativa do governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, pós-islamista), de Recep Tayyip Erdoğan, e com o silêncio das Forças Armadas, apesar da fúria dos partidos da oposição ultranacionalistas (MHP e CHP) – dá provas de querer emendar os erros do passado. Procura uma solução no âmbito de um processo democrático. A dúvida entre os turcos é se Öcalan, carismático e cruel, também mudou ou se apenas se quer salvar?

A história de Abdullah Öcalan confunde-se com a dos curdos – actualmente, o maior grupo étnico do Médio Oriente e do Cáucaso, 25 milhões de pessoas, metade das quais a viver na Turquia. É uma história de traições e sonhos desfeitos que começa em 1920 com a assinatura do Tratado de Sèvres, imposto pelas potências vitoriosas da Primeira Guerra Mundial ao derrotado Império Otomano.

Sèvres previa a criação de um estado para os curdos e outro para os arménios, na Anatólia, mas nunca foi aplicado devido à resistência do Movimento de Libertação Nacional dirigido por Mustafa Kemal Pasha.

Inicialmente, os curdos apoiaram-no na luta pela independência que conduziu ao Tratado de Lausanne de 1923, mas rapidamente se aperceberam que as suas aspirações seriam suprimidas pelo homem que se proclamou Atatürk (pai dos turcos), obstinado a unificar uma Turquia moderna.

Forçado a deixar o seu refúgio na Síria, sob ameaça turca de ver cortado o abastecimento de água, e convencido de que depois do Quénia, onde entretanto se asilara, seria acolhido na Holanda, Öcalan tinha à sua espera uma surpresa. A caminho do aeroporto de Nairobi, em Fevereiro em 1999, o carro que o transportava foi desviado por comandos enviados por Ancara. Levaram-no algemado e vendado, num avião, até à prisão de Imrali. © Direitos Reservados | All Rights Reserved

Forçado a deixar o seu refúgio na Síria, sob ameaça turca de ver cortado o abastecimento de água, e convencido de que depois do Quénia, onde entretanto se asilara, seria acolhido na Holanda, Abdullah Öcalan tinha à sua espera uma surpresa. A caminho do aeroporto de Nairobi, em Fevereiro em 1999, o carro que o transportava foi desviado por comandos enviados por Ancara. Levaram-no algemado e vendado, num avião, até à prisão de Imrali
© BBC

Em 1925, eclodiu a primeira revolta curda, liderada pela ordem sufi Naqshbandi e pela velha liderança social feudal, os agas (senhorios). Seguiu-se outra rebelião em 1929.

Um ano depois, o Estado, que já havia proibido a língua curda, adoptou uma lei que instigava à repressão desta minoria – os assassínios e outros actos de violência cometidos contra curdos não seriam considerados crimes. Foi também por esta altura que surgiu a fantasia de que os curdos não eram mais do que “turcos da montanha”.

Tão determinados quanto Atatürk, os curdos ajudaram o Partido Democrático, de Adnan Menderes, a subir ao poder nas eleições turcas de 1950, consideradas as primeiras com uma verdadeira oposição.

Durante o mandato de Manderes, líderes curdos no exílio foram encorajados a regressar e recuperaram bens e terras. Alguns chegaram a deputados e ministros. A repressão diminuiu e começaram a ser construídas escolas, hospitais e estradas nas regiões de maioria curda.

O problema é que, em 1958, a Turquia estava à beira da bancarrota e o descontentamento popular aumentou, sobretudo entre os que no Exército haviam perdido privilégios para uma nova “classe” de latifundiários e burgueses. Em 1960, os militares derrubaram Menderes num golpe e, em 1961, executaram-no na prisão de Imrali.

Centenas de notáveis e intelectuais curdos foram posteriormente detidos e deportados. Aldeias e vilas curdas perderam os seus nomes originais para serem “turquicizadas”.

Esta campanha já não podia, porém, travar as mudanças empreendidas na sociedade. Em 1961, com um governo civil, foi aprovada uma Constituição que garantia direitos democráticos, como a liberdade de pensamento, de expressão e de formar associações independentes e sindicatos.

Os curdos e, em particular a sua intelligensia, beneficiaram da abertura, participando em novos partidos políticos e arriscando a publicação de jornais, revistas e ensaios em língua curda.

Em 1966, receando que a subversão curda no Iraque alastrasse à Turquia, as autoridades governamentais e militares em Ancara decidiram criar unidades de comando antiguerrilha no Sudeste.

Em 1971, na sequência de mais um golpe militar e de uma revisão constitucional, a maioria dos grupos “revolucionários” turcos e curdos na Turquia optou por centrar a sua estratégia em acções de guerrilha de grande visibilidade. Foi neste ambiente violento e radicalizado que Öcalan e o PKK emergiram para reivindicar um Estado independente.

Abdullah Öcalan (um apelido que, em turco, significa “vingador”) nasceu em 1948 de uma família de camponeses pobres em Omerli, aldeia curda no Sudeste da Turquia. Em criança queria ser “um soldado como Atatürk”, cuja estátua costumava admirar, revela num dos seus livros de memórias – embora os turcos o tenham acusado de “fuga ao serviço militar”.

Terá pedido para ingressar no Exército mas foi recusado. Por ser curdo, denuncia. Foi, no entanto, aceite no competitivo curso de Ciência Política da Universidade de Ancara, depois de frequentar apenas um ano a Faculdade de Direito em Istambul.

Influenciado pela ideologia marxista que mobilizava os estudantes europeus nos anos 1970, Öcalan foi detido durante um breve período, por distribuição de panfletos da extrema-esquerda. Abandonou os estudos e mudou-se para Diyarbakir, a maior cidade curda no Sudeste.

Öcalan (um apelido que, em turco, significa “vingador”) nasceu em 1948 de uma família de camponeses pobres em Omerli, aldeia curda no Sudeste da Turquia
© freeocalan.org

Em 1974, o homem que os fiéis chamam Apo (tio, em curdo, bem ao jeito de uma cultura de clãs) fundou com três dezenas de curdos uma organização maoísta (APOCU) empenhada em levar a cabo uma “revolução socialista” na Turquia.

Só em 27 de Novembro de 1978, quando criou o marxista-leninista PKK, Öcalan deu uma nova dimensão ao nacionalismo curdo.

A primeira preocupação foi eliminar o que considerava o “facciosismo” do movimento. No final dos anos 1970, os alvos de Öcalan eram os agas, não o Governo turco. A sua visão maoísta ficou patente nas ordens para matar mulheres e crianças das famílias que considerava “feudais”, não apenas os homens.

Em 1980, depois de mais um golpe militar que deixou a Turquia sob lei marcial, Öcalan mudou-se para Damasco (rival de Ancara) onde recebeu autorização para treinar, no Líbano, um exército de guerrilha. No Vale de Bekaa, a “academia” do PKK formava curdos turcos, sírios e iraquianos. Também recrutava mulheres, o que chocava com as tradições.

O primeiro ataque do PKK na luta pela independência, a 15 de Agosto de 1984, foi o assassínio de vários “guardas de aldeia”, milícia curda ao serviço do exército, na província de Siirt, no Sudeste.

Nos anos seguintes, a organização firmaria a reputação de uma das “mais brutais e eficazes guerrilhas do mundo”. Contrabando de droga e extorsão financiavam as suas campanhas.

Segundo as 400 páginas de acusações apresentadas em tribunal, em 1999, Öcalan ordenou a morte de centenas de civis, o rapto de turistas estrangeiros e a destruição de incontáveis esquadras da polícia e outras instituições turcas.

Mandou prender uma ex-mulher, por deslealdade, e executar um número indeterminado de camaradas, por criticarem ou contrariarem as suas directivas.

Ao invés de se afastarem deste ferino Öcalan, os curdos, tratados pela Turquia como “um problema de terrorismo”, encheram as fileiras e os cofres do PKK. Em 1992, as regiões curdas do Sudeste, começaram a cobrar “impostos” e a emitir “vistos” para os estrangeiros interessados em visitar o “Curdistão”.

A reacção do Exército foi uma “política de terra queimada”: a evacuação de 3000 aldeias e a transferência forçada de três milhões de curdos da Anatólia. Sem apoio logístico, muitos combatentes instalaram-se no Norte do Iraque onde o PKK, sempre perseguido pelas forças turcas, tem mantido um elo, ora de cooperação ora de confronto, com a dupla Massoud BarzaniJalal Talabani e os seus peshmerga (“os que enfrentam a morte”).

Abdallah Öcalan, líder do PKK, com guerrilheiros num campo de treino em Helweh, Vale de Bekaa (Líbano), a poucos quilómetros da fronteira com a Síria. Esta base foi encerrada em Maio de 1992 (ano da foto) depois de negociações entre o regime de Damasco e a Turquia
© Ramzi Haidar | AFP | Getty Images

O exílio de Öcalan em Damasco chegou ao fim em 1998, quando a Turquia ameaçou a Síria com uma declaração de guerra. Em Outubro, os sírios fecharam os campos do PKK e pediram ao líder curdo que deixasse o país. Não o extraditaram, como reclamava Ancara, e ele foi bater primeiro à porta de Moscovo.

A URSS, aliada de Öcalan, fora dissolvida em 1991 e o novo governo russo expulsou Apo, cedendo às pressões turcas e americanas. As paragens subsequentes foram a Itália e a Grécia. Sabendo que a presença de Öcalan na Ilha de Corfu irritaria Ancara (e Berlim, que também o acusa do assassínio de dissidentes na Alemanha), os gregos tentaram encontrar-lhe refúgio num país africano.

Foi alojado na Embaixada da Grécia no Quénia, e a partir daqui há diferentes versões. Forçaram-no a abandonar o edifício (segundo o PKK) ou ele abandonou-o de sua iniciativa (segundo Atenas), convencido pelos quenianos de que iria ser acolhido na Holanda.

Certo é que, a caminho do aeroporto de Nairobi, em Fevereiro em 1999, o carro que transportava Öcalan foi desviado por comandos turcos, que o levaram, algemado e vendado num avião até à prisão de Imrali. Durante o voo, os agentes encapuzados celebraram esta bizarra operação e gravaram um vídeo humilhante para o lendário inimigo número um da Turquia.

Milhares de curdos espalhados pelo mundo protestaram violentamente, enquanto os turcos regozijaram com a perspectiva de verem enforcado “o carniceiro”. A captura de Öcalan não neutralizou, porém, o PKK.

As operações do Exército podem ter enfraquecido a guerrilha, que, no seu auge, chegou a ter 10 mil a 15 mil membros e hoje terá uns 5000, mas o que ditou o Roteiro de Öcalan terão sido mudanças geopolíticas: o fim do apoio da Síria e do Irão; o reconhecimento da “questão curda” na Turquia; a necessidade de os curdos do Norte do Iraque terem a bênção de Ancara para enfrentar os árabes e fazer chegar o seu petróleo ao oleoduto europeu Nabucco.

Por e-mail, diz-nos Sahim Alpay, professor no Departamento de Ciências Políticas da Universidade de Bahcesehir, em Istambul, e colunista do jornal Today’s Zaman: “Öcalan é reverenciado por metade dos curdos como seu líder e representa a identidade suprimida dos curdos.”

“A vasta maioria dos turcos odeia-o por ter iniciado a insurreição que matou 30 mil a 40 mil cidadãos, incluindo 7000 agentes das forças de segurança. Outra metade dos curdos acha que ele foi usado por reaccionários turcos para extinguir as aspirações curdas, ao identificar estas com a violência e o terrorismo.”

Henri Barkey, analista do Carnegie Endowment for International Peace, em Washington, e autor de Turkey’s Kurdish Question, acrescenta: Öcalan “tornou-se um símbolo importante para muitos curdos que estão convencidos de que, sem ele e o PKK, o Estado turco jamais faria concessões. Até os curdos que detestam as suas tácticas reconhecem, mesmo que com relutância, a sua importância.”

Numa entrevista por correio electrónico, Barkey conclui: “O problema curdo é, de longe, a mais importante questão na Turquia. Deu azo a todo o tipo de actividades ilegais, incluindo esquadrões da morte dentro do Estado. Mais importante, impediu a Turquia de ocupar um lugar democrático e estável. Sem a resolução do problema curdo, a Turquia não tem qualquer hipótese de entrar na UE.”

Tratados pela Turquia como “um problema de terrorismo”, os curdos encheram as fileiras e os cofres do PKK (na foto, um guerrilheiro equipado com granadas nas montanhas Qandil, no Iraque, em 2010). Nos anos 1990, a reacção do Exército foi uma “política de terra queimada”: a evacuação de 3000 aldeias e a transferência forçada de três milhões de curdos da Anatólia. Sem apoio logístico, muitos combatentes instalaram-se no Norte do Iraque (na foto), onde o PKK tem mantido um elo, ora de cooperação ora de confronto, com Massoud Barzani (líder desta região semi-autónoma) e Jalal Talabani (Presidente em Bagdad)
© Shiho Fukada | The New York Times

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 14 de Agosto de 2009 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on August 14, 2009

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