Os últimos dias de Yasser Arafat

Toda a gente queria uma morte heróica. Toda a gente esperava que Israel o tentasse matar, com F16’s, com um ‘rocket’, de uma maneira directa. Mas ninguém esperava que ele morresse desta maneira.

(Membro do círculo restrito de Yasser Arafat, em declarações, sob anonimato, ao diário britânico The Guardian, a 16 de Dezembro de 2004). (Ler mais | Read more…)

Yasser Arafat durante uma visita a Lisboa, Portugal
© Adriano Miranda

Um mistério. Foi assim que ele apareceu e desapareceu. Durante anos, a versão oficial apresentou Yasser Arafat como um “filho de Jerusalém”, até ser encontrada, em 1990, uma certidão egípcia que lhe registava o berço no Cairo.

Em 11 de Novembro de 2005, aos 75 anos, o líder da OLP morreu como nasceu: “no exílio”, num hospital militar em França. Causa do óbito? Impossível determinar, esclareceu a Autoridade Palestiniana.

“Médicos franceses e palestinianos que trataram o irmão mártir não descobriram o que o infectou – não foram bactérias, nem vírus, nem micróbios, nem um tumor canceroso, nem sida”, disse o primeiro-ministro Ahmed Qurei, em 12 de Outubro deste ano.

O estado de saúde do presidente de cinco milhões de pessoas sem Estado foi sempre objecto de especulação. Em vida, por exemplo, atribuíram os tremores nas mãos à doença de Parkinson. Logo após a morte, falou-se de envenenamento, de cancro e de cirrose.

Investigações conduzidas, separadamente, pelos jornalistas americanos Steven Erlanger e Lawrence K. Altman, do New York Times, e israelitas Avi Isacharoff e Amos Arel, autores de The Seventh War: How We Won and Why We Lost the War With the Palestinians, foram publicadas em Setembro.

A conclusão de Erlanger e Altman que solicitaram pareceres científicos ao relatório de 558 páginas elaborado pelos médicos franceses que assistiram Arafat foi a de que ele sucumbiu a um “enfarte resultante de uma desordem hemorrágica causada por uma infecção desconhecida”.

Isacharoff e Arel, citados pelo diário hebraico Ha’aretz, não excluem que o “Velho do kaffiyeh” tenha morrido de sida ou envenenado, mas também eles sublinham “ser impossível apontar uma causa que explique a combinação de sintomas que conduziu à morte.”

O médico pessoal do líder palestiniano, Ashraf al-Kurdin, disse que os clínicos franceses encontraram VIH no sangue de Arafat. Na sua opinião, o vírus “foi dado por Israel a Arafat para ocultar envenenamento”.

O [então] primeiro-ministro israelita Ariel Sharon [em estado de coma desde 2006 depois de sofrer uma embolia cerebral, um ano após a decisão controversas de uma retirada unilateral da Faixa de Gaza] considerou estas acusações “um disparate”.

Yasser Arafat fundou a Fatah em 1958 mas só em 1969 é que se tornou líder da OLP
© Mina News

Os repórteres do New York Times são taxativos depois de terem requerido uma análise independente ao relatório francês: “O modo como a doença se desenvolveu e o padrão dos seus sintomas tornam improvável que tenha morrido de sida”.

Também “é altamente improvável” que tenha sido envenenado, acrescentaram, porque testes de toxicologia não detectaram metais nem drogas, opiáceos ou anfetaminas. Também não havia extensivos danos nos rins ou no fígado, embora tivesse icterícia.

Não deixou, todavia, de surpreender o “facto bizarro” de, apesar das suspeitas de que poderia ter sido contaminado com o VIH, os médicos da Unidade Hematológica de Percy, nos arredores de Paris, não terem conduzido nenhum teste de sida ao ilustre paciente.

O relatório, segundo o NY Times, especifica que Arafat só começou a tomar antibióticos em 27 de Outubro de 2004, ou seja, 15 dias depois de ter adoecido gravemente e dois dias antes do seu internamento em Percy. “Foi demasiado tarde para o salvar”.

Aparentemente, os médicos na Muqata, o quartel-general de Arafat em Ramallah, na Cisjordânia, não reconheceram que ele sofria de uma “grave desordem sanguínea – coagulação intravascular disseminada -, que nunca chegou a ser controlada até à sua morte”. Nem mesmo os médicos franceses descobriram “a causa específica dessa infecção”.

Tal como o seu kaffiyeh, também a pistola no coldre fazia parte da “marca registada” de Arafat
© Vanity Fair

Na reconstituição que fez dos últimos dias de Arafat, a correspondente do jornal britânico The Guardian, em Jerusalém, Susan Goldenberg, descreveu um Arafat desconfiado de tudo e todos, relutante em tomar medicamentos, “com uma fraqueza” apenas por complexos vitamínicos e produtos de ervanárias. Trabalhando das 8 da manhã à meia-noite, de um modo geral, não lhe eram conhecidos problemas cardíacos, nem de pressão arterial.

A sua dieta alimentar era exemplar: não comia carne vermelha, apenas vegetais, frango e peixe. Não bebia nem fumava. Até substituiu a cafeína por chá de camomila, conhecido pelos efeitos tranquilizantes.

Não obstante todos os cuidados, em 25 de Setembro de 2004 Arafat adoeceu. Segundo disseram conselheiros a Goldenberg, ele queixou-se de fortes dores de cabeça e no estômago. Os médicos na Muqata diagnosticaram uma “desordem gástrica”.

Dois ou três dias antes de o mês islâmico do Ramadão começar em 15 de Outubro [de 2004], Arafat tinha febre alta, vómitos e diarreia. Inicialmente, insistia em jejuar durante o dia, conforme preceitos da religião, e em manter a rotina de trabalho.

À noite, porém, também não conseguia comer, e a partir daí começou a perder peso a um ritmo que impressionava os que o rodeavam.

Em 1974, a ONU concedeu o estatuto de observador à OLP, depois de um discurso histórico de Arafat na Assembleia-Geral
© Al Jazeera

A 17 de Outubro, Arafat fez questão de assistir a uma reunião do conselho nacional de segurança palestiniano. Contou uma testemunha que ele só conseguiu ficar de pé dez minutos, tendo de abandonar a sala.

Famoso pelos “beijos platónicos” que dava, observou Goldenberg (chegava a beijar seis a sete vezes o rosto de colaboradores), Arafat impediu que os visitantes entrassem no seu quarto, desculpando-se que podia contagiá-los com a gripe de que julgava padecer.

A 17 de Outubro [de 2004], o círculo restrito ficou alarmado, e uma equipa de médicos, incluindo um cardiologista e um neurologista, chegou do Egipto. No dia seguinte, vieram outros da Tunísia, que começaram a fazer colheitas de sangue e urina, e até procederam a uma endoscopia.

Arafat, por seu turno, recusava-se a cooperar. A 24 de Outubro, para provar que continuava a ser o chefe, levantou-se da cama para assistir a uma reunião do conselho executivo. “Ele mal reconhecia quem falava, os seus olhos divagavam e não se conseguia concentrar”, relatou um dos presentes, citado por Goldenberg.

No dia seguinte, os médicos começaram a ficar desesperados. Arafat recebia várias unidades de plaquetas para restaurar o sistema sanguíneo mas nada surtia efeito. A 27 de Outubro, a contagem de plaquetas desceu para 40 mil e a 28 para 26.000 (o normal é 150.000 a 500.000).

Erlanger e Altman, no New York Times, também dizem que foi depois uma refeição que Arafat começou a sentir terríveis dores abdominais. Em duas semanas, perdeu três quilos. Foi tratado a trombocitopenia (plaquetas baixas) com transfusões e injecções de gama-globulina. Nada resultou.

Arafat, gravemente doente, despede-se dos amigos ao embarcar num helicóptero do exército jordano que o levou do seu quartel-general, a Muqatta, em Ramallah, na Cisjordânia, para uma clínica em França, em 29 Outubro de 2004
© BBC

Nas conclusões finais do seu relatório, uma vez que a mulher de Arafat não autorizou uma autópsia*, Bruno Patis, médico dos cuidados intensivos no Hospital de Percy, enumerou vários síndromas:

– “Problemas intestinais, desordens hematológicas, icterícia obstrutiva, letargia neurológica e coma”. No entanto, acrescentou,  “depois de consultar vários especialistas e tendo em conta os exames médicos realizados, a associação destas síndromes não pode ser explicada por uma única patologia.”

Não foi uma morte heróica. Desde Maio de 2002 que Arafat vivia confinado a um pequeno quarto, com um saco-cama, sem janelas, no rés-do-chão da Muqata. Durante três meses de cerco israelita, “não havia ar fresco, nem água potável”, revelou ao Guardian um dos que partilhou a experiência.

“Estavam ali umas 300 pessoas num espaço de 200 metros. Imagine o que era 20 pessoas a usarem uma casa de banho. Deixava qualquer um doente”. O quartel-general, relíquia do Mandato Britânico na Palestina, ficara reduzido a um amontoado de ruínas, ruas esburacadas e carros amolgados.

Em 14 de Setembro 2003, depois de 23 israelitas terem sido mortos num atentado num autocarro em Jerusalém, Ehud Olmert, “braço-direito” de Sharon [que seria depois sucessor na chefia do Executivo], avisara, em entrevista radiofónica: “Arafat tornou-se irrelevante. A expulsão é uma das opções. O assassínio é também uma das opções.”

O próprio Sharon, em 14 de Abril de 2004, disse ao Presidente dos Estados Unidos que não podia cumprir a promessa de não matar Arafat, ao que George W. Bush, segundo o NY Times aconselhou: “É melhor deixar o destino de Arafat nas mãos do Todo-Poderoso”. Sharon replicou: “Às vezes é preciso que alguém O ajude”.

Depois da morte de Arafat, em face destas declarações, abundaram as teorias de conspiração de que Israel concretizara o que Arik não conseguira, em 1982, quando invadiu o Líbano.

Arafat e colaboradores palestinianos na clínica em França onde foi internado
© Ha’aretz

Raanan Gissin, [antigo] porta-voz de Sharon, desmentiu todas as alegações e sublinhou que o seu Governo ofereceu “a ajuda necessária” para que os médicos assistissem Arafat e ele fosse internado no estrangeiro.

Susan Goldenberg, na sua investigação, confirmou que, vendo gravidade do estado de Arafat, o primeiro-ministro Ahmad Qurei (Abu Alaa) telefonou pessoalmente ao homólogo israelita, a 28 de Outubro, pedindo garantias de que Abu Ammar [nome de código dos tempos de combatente da Fatah] regressaria à pátria quando (ainda havia esperança) depois de sair do hospital francês.

A garantia foi reforçada, também a pedido de Abu Alaa, numa conversa telefónica entre Sharon e o Presidente egípcio, Hosni Mubarak.

Antes de Ahmad Qurei falar com Sharon, Arafat ainda recusava deixar a Muqata. Para provar que era ele quem mandava, forçou o seu fotógrafo oficial a registar uma última imagem: em vez do uniforme verde, envergava um fato de treino azul.

No lugar do kaffiyeh, que se tornara sua imagem de marca, tinha um barrete de lã. De mão dada com alguns guardas presidenciais, todos à sua volta olhavam para a esquerda. Ele olhava para a direita. O seu caminho já era outro.

A 29 de Outubro, numa madrugada chuvosa, Arafat embarcou num helicóptero jordano com destino a Amã e depois num avião emprestado pelo Presidente francês, Jacques Chirac, que o levou a Paris.

No Hospital Percy, com vários quartos ocupados pela sua mulher, Suha, conselheiros e guarda-costas, Arafat foi submetido a uma bateria de testes.

A delegada palestiniana em França, Leila Shahid ficou sensibilizada com a figura do seu líder. “Era como um passarinho. Todo encolhido”, disse à jornalista do Guardian. “A sua cara parecia queimada do sol. Estava vermelha, vermelha, e a pele e a cair”.

Até 2 de Novembro, Arafat dava sinais de recuperação. Ingeria pequenas quantidades de alimentos, sobretudo batidos de proteínas e iogurtes. Estava a ser medicado com heparina, um anticoagulante que ajuda a prevenir o consumo de plaquetas. No dia 9, sofreu uma hemorragia cerebral.

Funeral de Yasser Arafat
© Al Jazeera

O Xeque Taissir Tamimi estava de vigília ao doente. “Foi uma cena muito dolorosa”, disse a Goldenberg. “Havia sangue por todo o lado no seu rosto. O sangue jorrava de todos os lugares possíveis. Eu não entendia o que se passava. Fechei os olhos e comecei a lei o Corão”.

Eram 3h30 locais de quinta-feira, 11 de Novembro de 2005, quando o coração de Arafat deixou de bater. O homem que levou o “problema palestiniano” para o horário nobre das televisões morreu longe da “Terra Prometida”, embora os seus mais próximos tivessem negociado com Israel a autorização para que fosse sepultado na Muqata.

Na repartição dos símbolos, o serviço de segurança ficou com o kaffiyeh. A mulher ficou com a farda de guerrilheiro.

[* Os restos mortais de Yasser Arafat foram exumados em 27 de Novembro de 2012, transferidos durante algumas horas do seu mausoléu para uma mesquita,  ambos em Ramallah, na Cisjordânia ocupada, de modo a que médicos legistas retirassem amostras dos seus ossos. 

A decisão foi tomada pela viúva, Suha, na sequência de uma investigação levada a cabo pela cadeia de televisão Al Jazeera (do Qatar). Peritos em Medicina forense, em França e na Suíça, analisaram durante nove meses todos os objectos pessoais do líder palestiniano, desde os seus chinelos de quarto ao ‘kaffiyeh’, e terão encontrado “níveis anormais de substâncias radioactivas. 

Em Novembro de 2013, a Al-Jazeera noticiou que uma equipa de cientistas suíços encontrou “provas moderadas” de que o chefe da OLP morreu envenenado com polónio-210. Os níveis desta substância eram “18 vezes superiores” ao normal.  Em Dezembro de 2013, médicos legistas russos asseguram que Arafat morreu de “causa natural“.]

Suha Arafat, a viúva do chefe da OLP, ordenou que o seu corpo fosse exumado para averiguar se ele foi envenenado. Ela insiste em que a morte “foi um crime”
© The Independent

Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em Novembro de 2005 | This article, now updated,  was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO in November 2005 

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