Sharon e a sogra de Suad Amiry

A arquitecta palestiniana “matou o tempo” durante 34 dias de cerco na Cisjordânia escrevendo sobre o que viu, ouviu e viveu, em Ramallah. No seu testemunho de 120 páginas, atenua a dor recorrendo ao humor, e revela-se uma hakawati (contadora de histórias). O livro, vendido para 11 países, ganhou o prémio literário italiano Viareggio. (Ler mais | Read more…)

Há uma frase de Suad Amiry sugerindo que a sogra é a má da fita: “Talvez um dia venha a conseguir perdoar ter estado 34 dias consecutivos em recolher obrigatório, mas nunca conseguirei esquecer que me obrigaram a viver com a minha sogra durante o que me parece terem sido 34 anos”. Mas não.

Ariel Sharon, ainda que raramente mencionado, é o principal alvo da indignação da arquitecta palestiniana que, para “matar o tempo”, escreveu um diário durante as incursões do exército israelita na Cisjordânia, entre 17 de Novembro de 2001 e 26 de Setembro de 2002.

Sharon e a minha sogra – Diário de Guerra em Ramallah, Palestina (Ed. Ambar, 2005) teve primeira edição na prestigiada Granta, com direitos de venda para 11 países e, em 2004, foi galardoado com um dos mais importantes prémios literários italianos, o Viareggio.

Amiry, mais conhecida pelo seu trabalho no Centro Riwaq para a Conservação da Arquitectura, que ela fundou e da qual foi directora na Cisjordânia, desvia-se das suas pesquisas sobre o mercado de Hebron (que lhe valeu o Prémio Aga Khan para o Restauro), as aldeias do período otomano ou os mosaicos tradicionais palestinianos, para nos fazer entrar numa “prisão” domiciliária.

A viagem começa no aeroporto de Telavive, quando Suad, proveniente de uma conferência em Londres, teve de se sujeitar a uma inspecção porque a sua bagagem não teve direito a uma fita branca (indicadora de livre passagem) mas cor-de-rosa. Aos interrogadores nada dirá, ou dirá o que eles não querem ouvir.

© ereditadelledonne.eu/

Os leitores, pelo contrário, ficarão a saber (quase) tudo sobre a vida da autora, desde Damasco, onde nasceu em 1951, passando por Amã, Cairo e Beirute (aqui se licenciou na Universidade Americana), até Ramallah, onde reside, numa casa repleta de livros, no bairro de classe média de Al-Irsal, e onde lecciona na Universidade de Birzeit.

Os agentes de segurança do aeroporto não saberão que o pai de Suad nasceu em Jaffa (na Palestina pré-Israel) e morreu de ataque cardíaco numa conferência de escritores em Praga.

Não saberão que a mãe era uma bela damascena, de olhos verdes acinzentados, que só trocava Jerusalém pela Síria.

Não saberão que o marido, Salim Tamari, um dos mais respeitados académicos palestinianos, sociólogo e director do Institute for Palestine Studies, também nasceu em Jaffa, em 1945.

Não saberão que ambos tentaram regressar às casas que até 1948 foram dos seus pais refugiados mas faltou-lhes “preparação emocional” para bater à porta das famílias judias que agora as habitam.

Do primeiro ao último capítulo, a ocupação israelita é arrasada por Suad com uma violência proporcional à que os bulldozers de Sharon destroem a Muqata, o quartel-general de Yasser Arafat.

“Perguntei-me se aqueles dois oficiais israelitas [em Telavive] saberiam que eu, tal como outros palestinianos que vivem nos territórios ocupados, preciso de vários tipos de autorização para me poder movimentar; uma para entrar em Jerusalém, outra para poder ir à Jordânia, uma terceira para poder entrar em Israel, uma impossível para entrar em Gaza e mais uma com a duração de quatro horas para poder utilizar o aeroporto.”

“(…) Não estava propriamente com paciência para contar ao oficial que um dos meus sonhos relativamente a este país é, tão simplesmente, que o meu marido me possa vir buscar ao aeroporto ou à Ponte Allenby [que separa o Reino da Jordânia da Cisjordânia ocupada por Israel] quando regresso de uma viagem. Mas isso é um privilégio que nenhum palestiniano tem.”

Suad Amiry nasceu em 1951 em Damasco, capital da Síria. Formou-se em Arquitetura nas universidades de Beirute (Líbano) e de Michigan (EUA). Até recentemente foi diretora do Centro para a Conservação da Herança Arquitectónica da Palestina
© playgroundsforpalestine.org

Exibindo o talento de uma verdadeira hakawati (contadora de histórias), Suad, que só conseguiu cidadania palestiniana há sete anos, retrata com humor o mundo surreal que a rodeia: “Cerca das quatro da manhã, Salim perguntou-me se queria tomar um cappuccino e, quase a dormir, respondi: ‘Bom, por que não?’”

“De repente, lembrei-me da última vez que os soldados israelitas tinham estado diante da janela da cozinha. Fui a correr até à cozinha e disse a Salim para ter cuidado, pois a máquina do cappuccino fazia muito barulho e podíamos estar a correr um grande risco!

Oscilando entre o cómico e o trágico, o resgate da sogra, Marie Jabaji, 91 anos, cuja varanda tinha vista privilegiada para o gabinete (agora túmulo) de Arafat é assim relatado: “Levantaram duas vezes o recolher obrigatório e fiquei à tua espera, mas não vieste.”

© Columbia Global Centers – Columbia University

“Não temos electricidade, nem água, nem telefone, bombardeiam-nos dia e noite; a comida do frigorífico já está podre; os outros vizinhos já fugiram todos”, diz Umm Salim (mãe de Salim).

“Vamos tirá-la daqui o mais depressa possível”, responde a nora. “Os soldados andam aqui à volta e temos de sair rapidamente. (…) De repente ocorreu-me: Meu Deus, como é que vou conseguir que ela salte os dois muros? Bem, vemos isso quando lá chegarmos, se é que alguma vez lá chegamos!”

Apercebendo-se de que a velhinha queria levar tudo o que lhe pertencia e não tinha tempo para isso, Suad aconselhou: “Não faz mal, deixe estar. Depois vimos cá buscar.” A sogra respondeu: “Foi o que dissemos em 1948, quando partimos da nossa casa em Jaffa.”

A Nakba (tragédia ou catástrofe) dos palestinianos forçados ao exílio está presente em algumas das 120 páginas deste livro. Há muito ressentimento, mas nenhum apelo à vingança ou à violência.

A resistência é pacífica – “Vão buscar os tachos e as panelas e toca a bater. (….) Ainda que o recado não chegasse a Sharon e às suas forças de ocupação, era, certamente, uma óptima terapia de grupo.”

Suad e Salim são dois activistas pela paz com justiça. Ela, uma palestiniana pouco ortodoxa (bebe, fuma, não usa hijab [lenço] e não tem filhos – preferiu a cadela terrier, Nura), fez parte da delegação às conversações de Washington em 1991 e foi vice-ministra da Cultura no primeiro governo de Arafat em 1996.

Ele, o filho único e adorado de Marie Jabaji, foi consultor para a questão dos refugiados nas negociações multilaterais no âmbito da Conferência de Paz de Madrid de 1991.

“Talvez seja a meia-idade, mas antes eu nunca, nunca olhava para a cara deles [militares israelitas], mesmo quando eles verificavam a minha identidade”, disse Suad, numa recente entrevista ao semanário The Observer, de Londres.

“Se estamos zangados com alguém – seja mãe ou irmão – não conseguimos olhar para eles. É uma maneira de dizer que não estamos felizes. Agora comecei a olhar para os rostos deles. Penso: ‘És tão jovem, podias ser meu filho’. (….)”

“Um dia, ao atravessar a ponte [Alenby], depois de ter sido obrigada a tirar os sapatos e a pô-los num saco, olhei para eles. É claro que nos sentimos humilhados. Então disse à mulher [soldado]: ‘Você gosta de fazer isto?’ Ela irritou-se: ‘Pensa que eu gosto de fazer isto?’”

Talvez a resposta tenha alimentado a esperança de Amiry: “Se ontem não houve uma solução, haverá hoje; e se não houver hoje, haverá amanhã. Tem de haver uma solução!”

Marie Jabaji (Umm Salim) não sabe que se tornou uma celebridade. Não leu o livro de Suad. 

© premio.grappanonino.it

Este artigo, com outro título, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 9 de Abril de 2005 | This article, under a different headline, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO, on April 9, 2005

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