Celebrar a ilusão de paz

Uma multidão estimada em 150 mil pessoas concentrou-se na Praça dos Reis, em Telavive, para dizer sim a um acordo com a OLP, de Yasser Arafat. Foi uma grande festa, numa altura em que a direita israelita parece retroceder. (Ler mais | Read more…)

Yitzhak Rabin, o primeiro-ministro israelita que reconheceu a OLP e seria assassinado por um colono judeu extremista
© The New Yorker

As luzes e as câmaras de televisão estavam ligadas e apontavam para uma enorme barriga redonda. Um autocolante estrategicamente colado no lugar do umbigo proclamava: “A paz é maior do que os [Montes] Golã”.

Rachel escolheu o seu ventre dilatado por uma gravidez de nove meses para transmitir uma mensagem de paz a todos os que acorreram à Praça dos Reis, em Telavive, num sábado à noite [4 de Setembro de 1993]. Foi uma manifestação de apoio a um acordo com os palestinianos convocada por partidos do Governo e grupos pacifistas.

Com Rachel, outros israelitas inventaram mil e uma maneiras de exprimir os seus sentimentos. Uma jovem cobriu a cabeça com um kaffiyeh, o lenço tradicional palestiniano, e enrolou o corpo numa bandeira de Israel. Velhos hippies e novos punks exibiam símbolos da paz.

Os cartazes estavam em todo o lado. Em inglês, em hebraico, em árabe. Colados nas paredes; presos entre os dedos. “Paz agora”, “Sim à paz”, “Israel quer a paz”, “A paz é a nossa segurança”. Gritos de Shalom, Shalom (Paz, Paz) ecoavam pelas ruas.

“Não tenham medo”, implorou uma cantora. “Temos o direito de ser felizes”, proclamou um ministro. “Este [os Acordos de Oslo assinados por Israel e a OLP em 1993] é um compromisso histórico; não é o fim do caminho mas apenas o princípio”, declarou um poeta.

Discursos, músicas, aplausos. O hino de Israel entoado quase num murmúrio. Sorrisos, lágrimas, beijos e abraços. “Sente a emoção? Isto é comovente”, exclamou Ora, uma israelita que fez questão de viajar do deserto do Negev, no Sul, até Telavive.

Shimon Peres e Yitzhak Rabin, artífices dos Acordos de Oslo
© thetimes.co.uk

Num lago onde se reflectiam os holofotes da Praça do Município, um pequeno grupo de opositores de Oslo tentou estragar a festa. A Polícia interveio, os ânimos acalmaram e, minutos depois, jovens de todas as idades mergulhavam, agitando o corpo ao ritmo dos artistas que actuavam no placo.

Sob um céu estrelado, mas com algumas nuvens  – a combinar como momento que se vive – até soldados cantavam e dançavam. Desajeitadamente, que as botas são grossas e as metralhadoras pesadas.

Rotham Denom, um garoto de 15 anos, justifica a presença de tanta gente nova: “Os jovens que são inteligentes querem a paz.” Rudi Shapiro, amigo de Denom, três anos mais velho, que percorreu 200 quilómetros desde Carmel, na fronteira com o Líbano, é da opinião que os palestinianos devem ter o seu próprio Estado.

“Sou a favor de dois países, o grande problema é Jerusalém”, disse o jovem. “Gostava que a paz acontecesse antes de 1996, para que a direita demagoga não ganhasse as eleições.”

Com Great Balls of Fire, como banda sonora, um velho êxito de Jerry Lee Lewis, interpretado pelo cantor rebelde Aviv Gefen, o jovem Shapiro explicou-nos como vai evitar cumprir o serviço militar obrigatório nos territórios ocupados: “Vou alistar-me na Marinha, porque os marinheiros não matam palestinianos.”

Analistas políticos israelitas não interpretam esta manifestação, organizada pelo Partido Trabalhista, pelo Meretz, pelo movimento Peace Now (Paz Agora) e por outros grupos de esquerda como um teste à popularidade do Governo.

Se fosse assim, o número de manifestantes, estimado em 150 mil, teria sido muito reduzido (a praça tinha capacidade para uns 400 mil).

Todos concordam, porém, que foi a primeira grande manifestação. Emocionante e comovente. Há uma década que não se via nada igual.

Por enquanto, os israelitas pensam que a direita ainda não é uma ameaça. Quando for, a “maioria silenciosa” que não esteve em Telavive encherá as ruas, acreditam. Só os kibbutzim serão capazes de mobilizar milhares de pessoas.

Manifestação do Peace Now em Telavive, um movimento criado em 1984, depois de Israel invadir o Líbano, para erradicar a OLP, e que muito contribuiu para que Shimon Peres e Yitzhak Rabin iniciassem um diálogo com os palestinianos
© peacenow.org.il

As declarações de apoio dos Estados Unidos são lidas em Israel como um sinal a todos os judeus de que devem abençoar a paz com os palestinianos. Estes, por seu turno, receberam a solidariedade sem reservas do rei Hussein da Jordânia [que só em 1988 abdicou do direito de soberania sobre a Cisjordânia sob ocupação israelita].

Se houvesse eleições amanhã, Yitzhak Rabin ganharia sem dificuldades. Até porque há eleitores do Likud que estão dispostos a dar uma oportunidade à paz.

Para já, terá de começar por cativar os mizrahim, judeus originários do Médio Oriente e também da Península Ibérica [estes conhecidos como sefarditas], os grandes ausentes da manifestação de sábado, onde predominaram os ashkenazim (oriundos da Europa), a classe média e os jovens. Não que os mizrahim recusem a paz, só que parecem não estar ainda preparados para ela.

Aos que temem correr riscos, o escritor Amos Oz enviou um recado: “Se o acordo agora concluído com os palestinianos falhar, será sempre mais fácil, nesta fase, se Israel, poderoso militarmente, esmagar a espinha dorsal de uma entidade palestiniana e desmilitarizada do que continuar a quebrar os ossos de crianças palestinianas de 8 anos que lançam pedras (…).”

“Não há compromissos doces. Cada compromisso significa renúncia de sonhos, anseios e aspirações. Mas só um fanático pode considerar um compromisso mais amargo do que a morte.”

Shulamit Aloni: “A direita está frustrada”

Shulamit Aloni, líder do Meretz, e Yitzhak Rabin, o primeiro-ministro trabalhista que, em 1993, assinou os Acordos de Oslo
© Los Angeles Times

O cansaço era visível no rosto enrugado de Shulamit Aloni, mas os seus olhos brilhavam de emoção. Com voz firme e as mãos trémulas, declarou: “A direita é uma minoria e está frustrada; a maioria em Israel somos nós, os que estamos a favor da paz.”

Terceira figura mais importante do Governo, a seguir a Yitzhak Rabin e a Shimon Peres, Shulamit Aloni falou comigo, por breves instantes , depois de um vigoroso discurso em defesa da “boa vizinhança com os árabes”, na Praça dos Reis, em Telavive.

“Esta foi a primeira manifestação de apoio ao Governo e de apoio à paz”, disse a líder do Meretz, uma aliança de esquerda, que, durante anos na oposição, sempre defendeu a criação de um Estado palestiniano. Ela não poupou os adversários: “Querem atear um incêndio, mas nós somos mais e não vamos deixar”, frisou a ministra da Cultura, Ciência e Tecnologia.

Uma das figuras políticas que participou nas negociações secretas que conduziram ao acordo d reconhecimento mútuo Israel-OLP, Shulamit Aloni está tão confiante que se dá ao luxo de subestimar o Likud e outros partidos oposicionistas.

Em Telavive, a activista que os amigos tratavam por Shula mostrou, uma vez mais, como gosta de quebrar tabus, de provocar. Afinal, ela até sente orgulho em ser apelidada de “terror dos ultra-ortodoxos”.

As suas declarações, em defesa dos direitos das mulheres ou dos homossexuais, por exemplo, e que os judeus mais religiosos consideram ofensivas, já por várias vezes ameaçaram de morte a coligação liderada por Yitzhak Rabin.

© Ha’aretz

Estes dois artigos, agora revistos e actualizados, foram publicados originalmente no jornal PÚBLICO em 6 de Setembro de 1993  | These two articles, now revised and updated, were originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on September 6, 1993 

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