A alma do Irão lê-se nos poemas de Rumi

Um tweet desejando feliz Ano Novo aos judeus, uma conversa telefónica com Barack Obama e a vontade expressa de um acordo sobre o nuclear bastaram para que o novo Presidente iraniano, Hassan Rouhani, reconciliasse parte do mundo com a República Islâmica. Que país é este, isolado e demonizado desde que a teocracia derrubou a monarquia? Viajemos através de alguns livros, com a ajuda de dois académicos, Roy Mottahedeh, de Harvard, autor da obra de referência The Mantle of the Prophet, e Franklin Lewis, de Chicago, tradutor dos versos de um místico sufi do século XIII, venerado por milhões de Teerão a Washington. (Ler Mais | Read more…)

© Mohammad Reza Domiri Ganji | Business Insider

Roy Mottahedeh não se esquece de um “tempo maravilhoso na infância”, quando o avô lia, em voz alta, no jardim da casa da família, páginas do Shahnameh (“Rei dos Reis”), o épico de Ferdowsi. Mas se lhe perguntarmos qual o livro que melhor ajuda a compreender a antiga Pérsia e a actual República Islâmica do Irão, ele recomenda Masnavi.

Trata-se de um compêndio de versos de Jalal al-Din Rumi “profundamente permeado de significados e referências corânicas”, que este poeta do século XIII começou a escrever quando já tinha “entre 54 e 57 anos de idade.

A última história, composta em 1273, ano do seu óbito, ficou incompleta. O próprio Rumi descreve Masnavi como “as raízes das raízes das raízes da religião [o Islão].” (Masnavi, Livro I, Prefácio)*

“Ferdowsi enaltece a civilização e o heroísmo militar do Irão”, explica Mottahedeh, numa entrevista por telefone, a partir de Boston, onde é professor de História Islâmica na Universidade de Harvard. “Rumi é o poeta místico que todos os iranianos querem ser.”

“É um muçulmano profundamente religioso, e se há um poeta que pode ser evocado num sermão nas mesquitas é Rumi. Ele desperta nos iranianos uma nostalgia espiritual.”

Antes de pesar melhor o valor de Rumi, falemos de Roy Mottahedeh e da obra de referência, The Mantle of  the Prophet: Religion and Politics in Iran, elogiada pelo Wall Street Journal como “um tesouro admirável”, e dedicada à sua mãe, Mildred, que teve uma ligação profunda a Portugal.

Das maiores coleccionadoras de porcelana chinesa, Mildred Mottahedeh desenhou peças para a empresa Vista Alegre, algumas das quais foram usadas na Casa Branca e no Departamento de Estado norte-americano.

Roy Parviz Mottahedeh nasceu em Nova Iorque, em 1940. Formou-se em Harvard e em Cambridge (Inglaterra). Começou a ser professor em 1970, em Princeton, ano em que se doutorou.

Uma década depois, ganhou uma Bolsa Guggenheim que lhe permitiu escrever o primeiro livro, Loyalty and Leadership in an Early Islamic Society (“Lealdade e Liderança nos Primórdios da Sociedade Islâmica”, 1980).

Em 2000, recebeu a Bolsa MacArthur, conhecida como “Genius Grant”, para The Mantle of the Prophet, que foi publicado pela primeira vez em 2000, ano em que Mildred Mottahedeh morreu. O êxito pode ser medido, em parte, pelas reedições em 2002, 2004, 2005, 2007 e 2009.

Ainda que reconhecido como um dos mais importantes estudiosos do mundo islâmico, Roy não é muçulmano mas bahá’í. Ou seja, pertence à maior minoria religiosa do Irão de que Mildred Mottahedeh foi a primeira representante nas Nações Unidas.

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“Sou um historiador e a História obriga-me a ser o mais fiel possível aos factos, mesmo quando estes têm um lado extremista e feio”, afirmou Mottahedeh, quando o inquirimos como conseguiu retratar a Revolução Islâmica de 1979 sem crítica às perseguições de que a sua comunidade tem sido vítima, só por acreditar num profeta, Bahá’u’llá (1817-1892), posterior a Maomé.

Na primeira década de teocracia, depois de o Ayatollah Ruhollah Khomeini ter derrubado o imperador Mohamad Reza Pahlavi, “mais de 200 fiéis foram mortos ou executados, centenas torturados e encarcerados” – entre eles os sete líderes, condenados a 20 anos de prisão, em 2008; “dezenas de milhares perderam empregos e acesso à educação e a outros direitos; casas e templos são assaltados e queimados.” **

The Mantle of the Prophet tem como objectivo, segundo Roy Mottahedeh, “mostrar a variedade e complexidade da cultura de uma nação com mais de dois milénios de história e ajudar a entender o que significa ser iraniano”.

No prefácio da edição mais recente, ele escreve (página 6 de um total de 424): “Muitos comentadores e leitores me pediram que avaliasse, agora, a Revolução Islâmica de 1979. A melhor resposta que tenho para dar são algumas palavras do grande [Lord Thomas Babington] Macaulay, em 1835.”

“Dividido entre a simpatia pelas aspirações progressistas da Revolução Francesa de 1789 e o horror face a esse período de sacrifício sangrento, ele constatou a dificuldade de observadores imparciais julgarem um acontecimento tão complexo e, simultaneamente, tão perturbador:

Um viajante encanta-se por uma baga que nunca antes vira. Prova-a, repara que é doce e refrescante. Elogia-a e resolve introduzi-la no seu país. Em poucos minutos, porém, fica gravemente doente; em convulsão; à beira da morte.

É claro que muda de opinião; declara que o fruto delicioso é veneno, culpa a sua loucura por o ter provado e alerta os amigos para não seguirem o seu exemplo. Depois de uma luta longa e violenta, ele recupera, mas livre das queixas crónicas que atormentavam a sua vida.

Muda novamente de opinião, e afirma que o fruto é um remédio potente, mas que só deve ser prescrito em casos extremos e com grande cautela, embora não deva ser excluído, de todo, da Pharmacopeia.

A história em que The Mantle of the Prophet se baseia é verídica. “Na Primavera de 1978, um professor da Universidade de Teerão veio visitar-me a Princeton”, conta o autor. “Ela estudara durante muitos anos em seminários na cidade-santuário de Qom onde se ensina a doutrina xiita tradicional. Depois, interessou-se por uma educação secular.”

“Perguntei-lhe como é que alguém se torna mullah. Ele explicou que se começa por aprender gramática, retórica e lógica. A partir daí, tive a certeza de que queria escrever este livro.”

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Os dois anos seguintes foram passados por Roy Mottahedeh a avaliar os currículos dos mullahs, no Irão e também no Iraque, onde a maioria da população é xiita.

O protagonista do seu livro, “Ali Hashemi”, existe mas pediu para manter o anonimato, o que foi cumprido. “Tenho a consciência de que não agradei a todos os iranianos”, reconhece o autor.

“Uns vão achar que a descrição do mullah não é suficientemente respeitadora, porque ele sente dúvidas e muda de posições, o que não é próprio de um homem religioso; outros vão achar que é um retrato demasiado reverencial já, que tendo frequentado uma escola laica e com ideias liberais, ele não é um teólogo típico.”

“Ambas as partes têm razão, mas não era minha intenção fornecer o arquétipo de um mullah e, em boa consciência, não podia fazer isso como historiador.”

Ali Hashemi é um sayyed (descendente de Maomé), formado em Qom, onde o pregador mais famoso era Khomeini, que instituiu o conceito de velayat-e faqhi (governo do jurista), deitando por terra séculos de tradição xiita duodecimana, segundo a qual “todo o governo na ausência do 12º imã é profano”, negando com isso a legitimidade do rei.

Aos 36 anos, Ali Hashemi sente-se “surpreendentemente apreensivo quanto ao futuro”, quando o velho teólogo exilado em França regressa, vitorioso, para destronar o imperador.

É como se o protagonista tivesse uma dupla personalidade, caracterizada pelas palavras andaruni e birun – o espaço interior e exterior, respectivamente, das casas persas.

O bazar e a mesquita – centros de poder – são lugares estranhos e familiares. Por exemplo, ele gosta de música, o que o afasta dos conservadores que a proíbem.

Admira o seu professor Davudi, um bahá’í que o fez conhecer o pensamento de Aristóteles, mas é incapaz de o defender e impedir que seja preso pelos revolucionários, mesmo que, para ele, eles “tenham quebrado um código de honra”.

Esta ambiguidade na figura de um mullah permite que o leitor (re)descubra a humanidade de um país que muitos associam apenas ao sequestro dos funcionários da Embaixada dos EUA em Teerão, a chamada “crise dos reféns”, em 1979; à fatwa que condenou Salman Rushdie à morte após a publicação de Os Versículos Satânicos; ou ao messiânico antigo Presidente Mahmoud Ahmadinejad, que negava o Holocausto e acelerou o programa de enriquecimento de urânio.

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Com a eleição de Hassan Rouhani, um teólogo “pragmático” que reprova as políticas do seu antecessor e tem contado com a bênção de Ali Khamenei, Supremo Líder, o académico Roy Mottahedeh confessa que está “esperançoso”.

Quando escreveu The Mantle of the Prophet, “tinha a certeza de que a flexibilidade seria impossível nos primeiros anos da revolução, mas não imaginava que haveria uma tão grande rigidez no regime”.

Hoje, ao saber que “milhares e milhares de pessoas e não apenas iranianos” visitaram uma exposição do British Museum que percorreu vários estados da América, The Cyrus Cylinder and Ancien Beginning, Mottahedeh reafirma o alento.

O Cilindro de Ciro é considerado “a primeira carta de direitos humanos do mundo”. Garante liberdade e protecção a todos os cidadãos, independentemente das suas origens e crenças. O texto, inscrito por ordem do primeiro rei aqueménida, foi encontrado durante escavações arqueológicas, em 1879, na antiga Babilónia.

O apelo de Ciro I é assim justificado Mottahedeh: “Os iranianos, cansados de uma longa guerra com o Iraque [1980-88] e de penosas sanções económicas internacionais, estão conscientes da grandeza da sua História e aspiram a um retorno aos ideais progressistas. Eu confio em que, dentro de uns 60 anos, haverá uma separação entre religião e Estado.”

“Para isso é necessário que os pensadores se organizem. Abdolkarim Soroush, por exemplo, foi um filósofo influente sob a presidência de Mohammad Khatami, porque recusava uma religião de Estado, mas depois sentiu-se forçado a abandonar o país”, para os EUA.

“Os mullahs ultraconservadores não gostavam de Soroush, porque é um muçulmano sufi que, segundo eles, ameaça as tradições xiitas”, explicou Mottahedeh, que esteve mais vezes em Portugal, a acompanhar a mãe em negócios, do que no Irão, que o pai trocou pela América, aos 24 anos. “Só lá fui no tempo do Xá [Mohammad Reza] e de Khatami, e não mais voltei.”

Soroush, licenciado em Farmácia e em História e Filosofia da Ciência, tem apenas uma obra publicada em inglês, Reason, Freedom and Democracy in Islam. Foi professor convidado em várias universidades americanas (Berkeley, Harvard, Princeton e Yale. A revista TIME colocou-o, em 2005, na lista das 100 personalidades mais influentes.

Com uma educação religiosa e secular – à semelhança de Ali Hashemi, o protagonista do livro de Mottahedeh –, Soroush é um discípulo de Rumi – “o poeta que combina a alma persa e a alma islâmica do Irão”.

Da Universidade de Chicago, onde é professor associado de Línguas e Civilizações do Próximo Oriente, Franklin Lewis explica, numa entrevista por e-mail, por que é que o objecto de um do seus livros, Rumi – Past and Present, East and West: The Life, Teachings and Poetry of Jalal al-Din Rumi (2007), desempenha um papel central na formação e expressão da identidade iraniana.

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“Rumi citou e traduziu alguns milhares de versículos corânicos nos seus poemas, o que é difícil, uma vez que o Corão não se conforma com as exigências da métrica poética persa.”

“A sua poesia, e sobretudo o Masnavi, também foi crucial ao formular, com versos memoráveis, uma certa maneira de entender o Islão. É por isso que o Masnavi tem sido descrito por quem o estuda como “o Corão da língua persa”.

“Rumi, que era um muçulmano sunita e gravitou para uma interpretação sufi do Islão, não tem sido bem aceite  por todos os iranianos, que são maioritariamente xiitas”, refere Lewis.

“No entanto, o modo como Rumi entende o Islão é espiritual, com menos ênfase na lei religiosa, com a crença assente no amor a Deus e aos santos, do que num conhecimento religioso específico ou dogma.”

“Boas intenções, graça divina e aspectos da religião que o mundo moderno considera inclusivos e ecuménicos e não rigidamente definidos pela doutrina são atraentes.”

“A Ordem Mevlevi (Mawlaviyya), frequentemente designada por Dervixes Rodopiantes – a linhagem sufi que se estabeleceu à volta dos ensinamentos e práticas de Jalal al-Din Rum – estava bem consolidada no Mediterrâneo Oriental, durante o Império Otomano”, indica Lewis.

“Não era, porém, muito activa no Irão, por isso, o amor pelos poemas de Rumi não corresponde à filiação em nenhuma ordem sufi específica. A devoção não é organizada. A poesia de Rumi no Irão é mais um meio de olhar para o mundo e de relacionamento com o mundo do que uma série de rituais e práticas.

Rumi é tão popular e goza de reputação tão elevada como uma figura de reverência do misticismo que há citações que lhe são atribuídas mas não são dele, como este poema, traduzido há mais de 100 anos por Reynold Nicholson, um estudioso de Rumi:

-“I am neither Christian, nor Jewish, nor Muslim /I am not of the East, nor of the West…/ I have put duality away, I have seen the two worlds as one; / One I seek, One I know, One I see, One I call.” (Divan-I Shams-I Tabriz, II).

Crê-se agora que, talvez, pertença a um dos seguidores da ordem de Mevlevi.”

Lewis, autor também de Rumi: Swallowing the Sun (2008), que inclui “alguns poemas organizados em 13 categorias temáticas ou conceitos (sobre fé e observância, de discípulo para mestre, de mestre para discípulo, de sonhos e visões, sobre o nascer da alma, etc), destaca que são dezenas as traduções, versões e interpretações de Rumi publicadas – algumas desde o século XIX e outras dos séculos XX e XXI.

“As traduções em inglês foram feitas por britânicos, a partir do persa, mas o interesse maior em Rumi começou depois de a UNESCO ter comemorado, em 1973, o 700º aniversário da morte de Rumi, assim como depois da visita a São Francisco (EUA) de um professor sufi ligado à ordem de  Mevlevi na Turquia otomana antes de as ordens sufis terem sido ilegalizadas pela República Turca.”

“Isto gerou um grande interesse em Rumi por parte de poetas norte-americanos como Robert Duncan, Robert Bly e Coleman Barks [este último, juntamente com John Moyne, assina The Essencial Rumi] nenhum dos quais aprendeu persa ou árabe, línguas da escrita de Rumi”, observou Lewis.

“Serviram-se de traduções antigas que não eram poéticas, ou trabalharam com indivíduos que sabiam persa ou lhes traduziam  para inglês, a partir de traduções turcas, fornecendo um significado em segunda ou terceira mão. Estas versões populares representam uma nova era americanizada de Rumi que ignora a base islâmica do seu pensamento e praxis.”

© Mohammad Reza Domiri Ganji | Business Insider

Embora os iranianos reclamem Rumi como seu, Lewis chama a atenção para o facto de muitos  dizerem que o poeta era “afegão” porque supunham que nascera em Balkh.

Sabe-se agora que provém de Vakhsh [actual Tajiquistão] e que viveu em Samarcanda enquanto criança. “Talvez seja mais correcto dizermos que é oriundo da Ásia Central”, aconselha o académico, para quem “é um anacronismo pensar em Rumi como pertencendo à religião e cultura do estado moderno do Irão, ou como parte dos iranianos e tajiques.”

“Rumi era de uma região poliglota e multiétnica do mundo: a Ásia Central, onde o persa era a lingua franca, mas onde se misturavam persas, árabes,  turcos, mongóis no que é hoje a China”, prossegue Lewis. “Depois, a sua família mudou-se da pequena vila de  Vakhsh para a Anatólia, onde os turcos se haviam recentemente instalado.”

“No entanto arménios, gregos e georgianos ainda conviviam com imigrantes de origem persa e árabe. Foi aqui que Rumi viveu a maior parte do seu tempo, desde a  adolescência, excepto quando foi estudar para a Síria, de expressão árabe (também escreveu alguns poemas em árabe, o que não era comum em poetas persas do século XIII).”

“É natural que falar persa tenha sido parte da identidade de Rumi”, segundo Lewis, “tal como era a tradição sufi e islâmica de Khorasan – na Grande Pérsia, que incluía partes do que é hoje  o Uzbequistão, o Tajiquistão, o Afeganistão, o Turquemenistão e o  Irão.”

“Uma vez que o Irão moderno tem a maior concentração de falantes de persa em todo o mundo, não é de estranhar que os cidadãos do moderno Estado iraniano o considerem um filho da pátria, podendo dizer-se o mesmo dos falantes de persa no Tajiquistão ou no Afeganistão (onde a sua efígie era impressa em selos de correio), no Uzbequistão ou no Turquemenistão.

“É, seguramente, motivo de orgulho para muitos iranianos, afegãos e tajiques que Rumi seja amado e respeitado por todo o mundo, sobretudo nos países de expressão inglesa”, realça Lewis.

“Parte das passagens inclusivas das suas obras podem servir de ponte – nos Estados Unidos alguma frases atribuídas a Rumi foram publicadas no jornal The New York Times, há cerca de uma década, como um argumento a favor de uma reaproximação entre Washington e a República Islâmica do Irão.”

No pedestal dos seus heróis, os iranianos não colocam apenas Rumi mas também Ferdowsi (ou Firdawsi ou Ferdusi). Pseudónimo de Abdul Qassim Mandur, nasceu em 940, próximo de Mashdad, no Nordeste do Irão. Seria um latifundiário que aceitou escrever um poema épico, encomendado pelo sultão Mahmoud, de Ghazan, para poder pagar o dote da sua filha única.

Demorou 35 anos a compor Shâ Nâmâ ou Shahnameh (“Livro dos Reis”), 60 mil linhas que narram mil anos de história, dos Aqueménidas aos Sassânidas. Ferdowsi foi pago em prata, transportada em 30 cavalos, e não com ouro como combinado, porque o sultão ficou furioso por não ter ser o único protagonista.

Para muitos iranianos, Shâ Nâmâ é, juntamente, com Persépolis (a cidade), um símbolo da sua identidade, celebração da grandeza mas também evocação das derrotas infligidas pelos invasores.

O xiita Ferdowsi perdoou Alexandre, O Grande, mas não “esses árabes incivilizados que vieram forçar-me a ser muçulmano”.

O “maior poeta iraniano”, que “recriou o persa – a mais bela das línguas”, morreu em 1020. Está enterrado junto à fronteira com o Turquemenistão. No monumento erguido em sua memória foi inscrita a frase. “Que este corpo não viva se não existir o Irão”.

Um dos livros recomendados por Roy Mottahedeh é Shahnameh:  The Persian Book of Kings, traduzido por  Dick Davis. A belíssima edição ilustrada oferece um “bom resumo do épico nacional persa, escrito há mais de 2000 anos e traduzido por um poeta moderno britânico.”

“Ferdowsi narra a história mítica e lendária do Irão pré-islâmico na Pérsia moderna, e essa linguagem poética mantém-se mais ou menos inalterada desde o século X”, analisou Franklin Lewis. “Foi nesta altura que ele começou a registar as lendas que conta, construindo as tradições preservadas desde o Império Sassânida na Média Pérsia.”

“Descreve também o pensamento e os conflitos internos de reis, dos seus filhos e de grandes guerreiros, conta muitas histórias de amor mas também de batalhas contra demónios e campões sobre-humanos, embora em tudo esteja sempre presente a tragédia.”

Roy Mottahedeh

Franklin Lewis

Lewis revela que episódios de Shahnameh, “obra extraordinariamente rica e dramática”, são recitados em cafés e ginásios iranianos, os chamados Zur-khaneh. Os iranianos também inscrevem os seus poemas nas lápides das sepulturas. “Algumas histórias de O Livro dos Reis decorrem no Afeganistão e outras na Ásia Central, assim como em territórios árabes, portanto, reflectem o império transnacional do antigo Irão.”

Outro poeta venerado é Sa’adi, do século XIII, contemporâneo de Rumi, mas residente de Shiraz, ainda hoje uma das principais cidades do Irão moderno.

“É famoso pela sua “simplicidade inimitável”, expressões proverbiais e sentido de humor – qualidades altamente valorizadas na cultura iraniana”, notou Lewis. “Era também muito apreciado por Voltaire, na Europa, e por Benjamin Franklin, um dos pais fundadores dos EUA.”

Em Science of Love, com tradução de Makan Rohi, podemos encontrar Sa’adi, mas também Attar e Hafez – que Lewis define como “o génio lírico da língua persa (adorado por Keats, Shelley e Yeats), sufi e antinomiano que se insurge contra a piedade fraudulenta, libertino, m activista político, humanista.

Hafez (ou Hafiz), traduzido por Gertrude Bell – escritora, arqueóloga, viajante e agente de espionagem britânica –  em The Garden of Heaven, é uma das sugestões de Roy Mottahedeh. Ele considera que esta tradução livre oferece ao leitor “uma agradável entoação poética”.

Apesar da sua grandeza, Hafez/Hafiz não conseguiu ser tão famoso quanto Omar Khayyam. Este filósofo, geógrafo, matemático, astrónomo e poeta que, segundo Franklin Lewis, “acreditava na apreciação epicurista do aqui e do agora, não a do além”, viu a sua fama disparar depois de uma tradução bem sucedida, para inglês, da autoria de Edward FitzGerald, das suas quadras (Rubáiyát).

Vale a pena adquirir The Illustrated Rubaiyat of Omar Khayyam: Special Edition, com as ilustrações esplendorosas de Edmund Dolac e design de Don Diego.

De todos estes poetas nenhum se compara a Rumi, na opinião de Franklin Lewis,  porque “é a epítome do espírito místico, em persa.” Numa série de artigos publicados no diário britânico The Guardian, o professor de Chicago destacou a admiração  de Hegel, Martin Buber, Gurdjieff, Dag Hammarskjöld, Erich Fromm, e outros.

Perguntámos-lhe como explica este fascínio e esta foi a resposta: “Rumi é verdadeiramente admirável – ele vê um universo vivo pleno de sinais de divindade e, para ele, a divindade é, simultaneamente, fabulosa e majestosa, mas também a definição do próprio amor. Rumi é ainda um observador atento das dinâmicas sociais e, por vezes, pode ser bem-humorado sobre as motivações e fraquezas humanas.”

“Embora se integre firmemente na tradição islâmica sufi, e assuma que o Islão é a última e mais completa forma de revelação divina à Humanidade, no que toca à doutrina prefere a complexidade e a flexibilidade situacional, até mesmo a ambiguidade, do que o dogma.”

“De uma perspectiva moderna sobre religião e espiritualidade, isto é muito atraente, e se compararmos o que Rumi ensina no Masnavi com, digamos, contemporâneos como Dante, em A Divina Comédia, o retrato que emerge é mais moderno, ecuménico e verdadeiro.

© Mohammad Reza Domiri Ganji | Business Insider

Religion is furthermore about remembering human beings as all divinely touched, if we can

only feel and remember that innate spiritual connection:

We all were parts of Adam at one time

In paradise we all have heard these tunes

Though clay and water fill us up with doubts

We still remember something of those songs

(Masnavi 736-7)

A ler em português

Ahmad Shamloo é um poeta amado pelos iranianos. Os seus versos Strange times my Dear (em inglês) inspiraram a antologia que, em Portugal, foi publicada (apenas a prosa) como Um escritor bom é um escritor morto

Um Bom Escritor é um Escritor Morto

Esta é uma antologia dos melhores contos e excertos de romances escritos dentro e fora do Irão desde a Revolução Islâmica de 1979.  Em inglês, a obra publicada pela Nova Vega mereceu o título de Strange Times, My Dear, versos de In this blind alley, homenagem ao autor, Ahmad Shamloo, um dos maiores poetas contemporâneos iranianos, que ficou de fora da  edição portuguesa porque esta inclui apenas prosa. 

IN THIS BLIND ALLEY

They smell your mouth

Lest you’ve told someone ‘I love you.’

They smell your heart

These are strange times, my dear

Love,

they drag out under lampposts

to thrash.

Love must be hid in closets at home.

In the cold of this blind alley

They keep their fires ablaze

burning our anthems and poems.

Do not venture to think.

These are strange times, my dear

 

He who pounds on the door in the nighttime

Has come to kill the light.

Light must be hid in closets at home.

Lo! the butchers

stationed on roads

with chopping-board and cleaver soaked in blood

These are strange times, my dear

They slit smiles off of lips

And song from the throat.

Joy must be hid in closets at home.

Canaries are being roasted

on a spit of lilacs and jasmine

These are strange times, my dear

Satan, triumph-drunk

Feasts at a table spread with our mourning

God must be hid in closets at home.

(Autor: Ahmad Shamloo |Tradutor: Saya Ovaisy | Fonte: PBS Frontline)

Trata-se, apesar da ausência de Shamloo, de uma colectânea excepcional de Nahid Mozzafari, doutorada em Estudos do Médio Oriente pela Universidade de Harvard. Aqui encontramos homens e mulheres, como Simin Daneshvar, a primeira romancista iraniana, que morreu recentemente em Teerão, ou Nasim Khaksar, exilado na Holanda.

Os dois incluem-se num primeiro grupo, onde também estão Mahmoud Dowlatabadi (que escreveu The Colonel “O Coronel”), já traduzido para várias línguas, mas ainda na gaveta do censor na edição original em persa) e Iraj Pezeshkzad (autor de uma obra presente em todas as casas iranianas, My Oncle Napoleon (“O Meu Tio Napoleão).

Os seus temas incidem sobre “poder e corrupção, diferenças de classe ou incerteza de identidade, alienação e fraquezas dos intelectuais”.

Num segundo grupo, o dos que “começaram a escrever, publicar e a ser lidos depois da revolução”, Nahid Mozzafari incluiu Reza Daneshvar, Farkondeh Aghai, Aashgar Abdollahi, Seyyed Ebrahim Nabavi (duas vezes detido por a sua sátira “ser demasiado satírica”), Shahriyar Mandanipur, Ghazi Rabihavi e Goli Taraghi. Este é o grupo dos mais jovens, os que abordam questões novas e velhos tabus.

Shirin Ebadi, Prémio Nobel da Paz 2003, a advogada que foi a primeira mulher juíza no Irão (cargo que a Revolução islâmica baniu) tem dois livros notáveis publicados em português: A Gaiola de Ouro (Ed. Esfera dos Livros) e O Despertar do Irão: Memórias da Revolução e da Esperança (Ed. Guerra e Paz)

A Gaiola de Ouro – Três irmãos no pesadelo da revolução iraniana

Depois de lerem A Gaiola de Ouro (Ed. Esfera dos Livros), diz-me a autora, Shirin Ebadi, “vão compreender as razões por detrás da fúria do povo contra o governo, e porque milhões de iranianos foram para as ruas protestar” contra Mahmoud Ahmadinejad.

A ira popular “não foi motivada apenas pelas eleições [de 2009] mas pelo que se passa neste país nos últimos 30 anos”, acrescentou a advogada que recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2003.

O livro de Shirin Ebadi, proibido no Irão, só podia começar no cemitério de Khavaran, onde o regime dos mullahs enterra os seus “traidores”.

Não é difícil de imaginar que as valas comuns neste lugar onde os mortos não têm nomes, nem campas nem flores tenham voltado a encher-se nos últimos dias de repressão. Assim como se voltaram a encher as prisões e as celas de isolamento ou de “tortura branca”.

Os destinos de Abbas, de Javad e de Ali foram funestos. Javad, por exemplo, saiu da infame prisão de Evin para Kharavan. Queriam forçá-lo à humilhação de passar pela “rampa do arrependimento”, mas ele manteve-se fiel às suas convicções. Militante do Tudeh, o partido comunista que ajudou Khomeini a derrubar o Xá Mohammad Reza Pahlavi para depois ser aniquilado pela Revolução Islâmica.

Ninguém ficará também indiferente ao fim trágico de Abbas, um general tão leal ao imperador que, quando este se exilou, tudo à sua volta ruiu.

A viver nos EUA sem poder regressar, Abbas perdeu os bens, confiscados no Irão, perdeu a mulher, que morreu de cancro, e perdeu a vida. Suicidou-se ao descobrir o segredo do filho mais querido.

Inesquecível é igualmente a figura de Ali, o irmão mais novo de Abbas e de Javad. Fiel devoto de Khomeini, apercebe-se de como o regime traiu as suas promessas, quando vai trabalhar para os serviços de segurança depois de a sua mulher e único filho terem sido mortos durante a guerra com o Iraque.

Pediu asilo político à França, mas como ele próprio dissera quando era um “revolucionário”, para justificar os condenados e os executados em nome de Deus: “A República Islâmica não faz nada sem uma razão”. A brutalidade com que o mataram impressiona.

Finalmente, temos Pari, a irmã de Abbas, de Javad e de Ali. Médica e professora universitária, resistiu a não deixar o país, mas que podia fazer depois de ter sido despedida e de o seu consultório ter sido completamente vandalizado (em cima da secretária colocaram a cabeça cortada de um cão, estilhaçaram vidros, rasgaram cortinas, danificaram instrumentos, pisaram comprimidos, espremeram tubos de pomada pelos móveis e pelo cão, queimaram o certificado de licenciatura? (pp 207 e 208).

Foi Pari, destroçada com o seu drama familiar, que pediu à melhor amiga, Shrin Ebadi, um livro em memória dos três homens para quem a “gaiola de ouro” nunca se abriu.

Em português, Shirin Ebadi tem também publicado O Despertar do Irão: Memórias da Revolução e da Esperança (Ed. Guerra e Paz), o relato da sua própria luta pelos direitos humanos.

Mohammad Mossadegh, o primeiro-ministro nacionalista que a CIA derrubou, é o protagonista de Os Homens do Xá, de Stephen Kinzer

Os Homens do Xá – O Golpe no Irão e as Origens do Terrorismo no Médio Oriente 

Em 1979, quando estudantes iranianos ocuparam a Embaixada dos EUA em Teerão, muitos norte-americanos interrogaram-se: “Por que nos odeiam eles?”

A resposta está em Os Homens do Xá – O Golpe no Irão e as Origens do Terrorismo no Médio Oriente (ED. Tinta da China), um livro de Stephen Kinzer, que acaba de publicar mais uma obra a merecer elogios: The Brothers, sobre os irmãos Dulles. John Foster e Allen Dulles, figuras influentes da política e dos serviços secretos norte-americanos, no auge da Guerra Fria,  anos 1950.

Em Os Homens do Xá, Kinzer escreve que a democracia chegou ao Irão, em Dezembro de 1891, no dia em que as mulheres do Xá Nasir al-Din, da Dinastia Qajar, “puseram de lado os seus cachimbos de água e juraram que não fumavam mais”. Era um duro sacrifício, porque o tabaco se tornara num dos “maiores prazeres da vida num harém”.

Mas o que é que esta rebeldia tem a ver com o golpe da CIA que, em 1953, derrubou o primeiro-ministro, Mohammad Mossadegh? Teve uma grande influência, porque a “greve” das odaliscas abalou a monarquia absoluta e abriu o caminho do poder aos democratas nacionalistas  que depois desafiaram ingleses e americanos.

O harém de Nasir al-Din, pai de centenas de príncipes, chegou a totalizar umas 600 pessoas, entre mulheres, concubinas e eunucos, disse-me Kinzer, em entrevista. O tirano que ostentava títulos como “Sombra de Deus na Terra” e era capaz de enterrar vivos os súbditos adorava viajar pela Europa com o seu séquito.

Quando o tesouro do império se tornou pequeno para as suas extravagâncias começou a vender património a companhias e governos estrangeiros. Os britânicos foram dos primeiros “clientes”, e o que teve direito “à mais espantosa de todas as concessões” foi o barão, de origem alemã, Julius de Reuter, já famoso no mundo das agencies noticiosas.

Em 1972, refere Kinzer, “por uma soma insignificante”, Reuter ganhou “o direito exclusivo de gerir as indústrias do país, de irrigar as suas terras de cultivo, explorar os seus recursos minerais, desenvolver as linhas ferroviárias e dos eléctricos, fundar um banco nacional e imprimir o seu papel-moeda (…) – ‘a mais completa entrega de todos os recursos industriais de um reino em mãos estrangeiras alguma vez sonhada e nunca antes levada a cabo na história’.”

Os iranianos sentiram-se ultrajados. A Rússia ficou “alarmada por uma companhia britânica adquirir tanto poder logo do outro lado da sua fronteira” e até as autoridades de Londres, que Reuter não consultara previamente questionaram a “sensatez do acto”.

O Xá Nasir al-Din revogou a concessão, menos de um ano depois de a ter atribuído, quando tomou consciência da sua leviandade. No entanto, como continuava a esbanjar riqueza, voltou a vender mais património, tornando o Irão cada vez mais pobre e dependente.

Em 1891, com os Qajar ainda mais endividados, a indústria tabaqueira iraniana foi comprada, por 15 mil libras, pela British Imperial Tobacco Company, que detinha o exclusivo da compra aos produtores e da venda a retalho.

Foi então que uma coligação de  intelectuais, agricultures, comerciantes e líderes religiosos se uniu num protesto sem precedentes.

Quando o xeque Xirazi, a mais alta autoridade religiosa emitiu uma fatwa (édito) decretando que fumar constituía “uma desobediência ao 12º Imã”, enquanto os estrangeiros controlassem este negócio, todos aderiram, até as mulheres do Xá.

A concessão foi anulada mas, suprema humilhação, Nasir al-Din teve de pedir um empréstimo de meio milhão de libras à British Imperial para… a indemnizar.

Kinzer salienta que a “Revolução do Tabaco” marcou o “fim do absolutismo” e o “início de uma nova era política”.

© Mohammad Reza Domiri Ganji | Business Insider

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente na edição de Fevereiro de 2014 da revista LER | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese magazine LER, February 2014 edition

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