O Egipto não esconde o véu e quer mostrar a barba

Os egípcios estão confusos quanto ao rumo do país desde a queda de Mubarak. Receiam uma islamização, mas ainda confiam na “revolução inacabada”. Parecem aceitar que este é o tempo de a Irmandade Muçulmana brilhar – para o bem e para o mal. (Ler mais | Read more…)

Em Março de 2012, um grupo de polícias barbudos participou, pela primeira vez, numa manifestação, no Cairo, contestando a ordem do ministro egípcio do Interior, Ahmed Gamal el-Din, para que voltassem a usar a lâmina
@ Amr Nabil | AP Photo

Shahira Amin olhou para o “rosto da nação” – a televisão estatal egípcia – e não o reconheceu. [Em Setembro de 2012] nos écrãs do Canal 1 apareceu, pela primeira vez em décadas, uma locutora envergando um hijab.

Fatma Nabil apresentou o noticiário das 16h00 com o cabelo oculto por um lenço que realçava a sua face luminosamente maquilhada.

Se alguns se sobressaltaram com esta imagem, temendo uma acelerada islamização do país, a correspondente da CNN no Cairo ficou sossegada: “É uma questão de liberdade pessoal, e esta é uma conquista da revolução, inimaginável há pouco tempo”, diz-me Shahira.

A proibição de as mulheres lerem as notícias com hijab não constava de qualquer lei, mas era, aparentemente, uma directriz de Suzanne Mubarak, a mulher do “ditador suave” derrubado em 2011 que pretenderia, deste modo, promover um Egipto secular.

O impacto do gesto de Fatma Nabil, possível depois de os directores da estação terem acatado uma ordem judicial, foi ainda mais significativo do que o de Shahira Amin quando, a 3 de Fevereiro do ano passado, se demitiu da também oficial Nile TV, no auge dos protestos na Praça Tahrir, no Cairo.

Num diálogo por Facebook, Shahira Amin recorda-nos o que muito contribuiu para ser uma das jornalistas egípcias mais populares e influentes – foi ela, por exemplo, quem denunciou os testes de virgindade impostos pelos militares às mulheres nas prisões.

“A polícia irrompera com camelos contra uma multidão em Tahrir”, contou. “Quando me deram o boletim noticioso para ler não havia qualquer referência ao que eu tinha visto na estação Al-Arabiya. A minha directora, depois de questionada, explicou que havia instruções para omitir o que se passara.”

“Disse-lhe que tínhamos de contar ao mundo o que o país estava a viver. Os revolucionários eram vilipendiados como rufias e mercenários ao serviço de agentes estrangeiros.”

“Fui ordenada a fazer cobertura apenas dos comícios favoráveis a Hosni Mubarak; para os da oposição não me forneciam câmaras”, adiantou. “Recusei e fui para Tahrir de onde saí só quando terminaram os protestos. Estaria a arriscar a minha credibilidade se me tivesse mantido no cargo.”

“Ao demitir-me, não imaginei que saltaria para as primeiras páginas. Esperava que outros colegas seguissem o meu exemplo, mas não o fizeram. Não os julgo. Quando se vive sob repressão durante tantos anos desenvolvemos um medo interior, e era difícil desafiar a censura.”

Com a chegada da Irmandade Muçulmana ao poder, Fatma Nabil apresentou, pela primeira vez, o noticiário com o cabelo oculto por um lenço que realçava a sua face luminosamente maquilhada – o hijab na televisão estatal tinha sido proibido pela ex-primeira dama Susanne Mubarak
© The Independent

Shahira Amin assegura que “nunca os media foram tão livres e diversificados” como desde que a outrora ilegalizada Irmandade Muçulmana (Ikhwan al-Muslimun) ganhou as eleições parlamentares e a segunda volta das presidenciais: “Não há qualquer pressão sobre as locutoras para usarem o véu islâmico, e não estou preocupada com uma “ikhwanização” dos meios de comunicação social.”

“Um canal televisivo foi recentemente suspenso porque incitou à morte do Presidente, Mohamed Morsi [entretanto afastado do poder, por ordem do Exército, chefiado pelo poderoso general Abdel Fattah al-Sisi, julgado e condenado, à morte e a prisão perpétua, em processos judiciais separados], o que não é aceitável em nenhum Estado democrático.”

“Um jornal foi confiscado porque apelou, em manchete, a um golpe contra a Irmandade, o que foi considerado estímulo à rebelião e, talvez, à guerra civil. Morsi usou os seus poderes legislativos para impedir a detenção de jornalistas antes de serem julgados. Isto tranquiliza-me.”

Vale a pena enunciar a sequência de acontecimentos a que Shahira Amin se refere porque explica a reviravolta histórica que Morsi protagonizou, no dia 12 de Agosto, ao forçar a passagem à reserva do temível ministro da Defesa, marechal Hussein Tantatwi, e do chefe de Estado-Maior do Exército, Sami Anan.

Nas primeiras semanas da sua presidência, depois de ter derrotado o candidato favorito dos militares, general Ahmad Shafiq, o homem que foi a segunda escolha da Irmandade quando o omnipotente Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA) chumbou o “número um” da Irmandade, Khairat Al-Shater, evitou confrontar a instituição militar, demonstrando inclusive uma certa reverência para conquistar confiança.

Neste período, porém, Morsi foi também pesando os vários equilíbrios de poder entre as forças de segurança, conseguindo identificar quem era e não era leal a Tantawi e a Anan, segundo uma investigação de Esam Al-Amin, publicada pelo site Counterpunch.

Tudo se precipitou quando, a 5 de Agosto, em pleno Ramadão, dezenas de combatentes atacaram um checkpoint na Península do Sinai, fronteiriça com a Faixa de Gaza, numa altura em que soldados quebravam o jejum requerido pela data mais sagrada do calendário islâmico.

Mataram 16 e feriram sete. Morsi aproveitou imediatamente “a oportunidade” para demonstrar que não era, como o denegriam, um Presidente fraco.

No dia 8, demitiu o chefe da espionagem militar, Murad Muwafi. Também afastou os responsáveis pela polícia militar e pela força de segurança do Cairo, ambos membros do CSFA, substituindo-os por oficiais fiéis.

Tendo em conta a mortandade no Sinai, território que o tratado de paz com Israel deixou num limbo de segurança habitado por beduínos beligerantes e cobiçado por jihadistas fanáticos, Tantawi teve de aceitar as decisões de Morsi, que não parou aqui.

Na manhã de 12 de Agosto, o Presidente mandou chamar ao seu gabinete Abdel Fattah al-Sisi, 57 anos, que era chefe da espionagem militar, e Sedki Sobhi, 55 anos, chefe do 3º Exército. Os dois pertencem ao CSFA, mas também eram críticos de Tantawi, 76 anos, e de Anan, 74, por estes terem envolvido os militares na cena política.

13 de Agosto de 2012: Abdel-Fattah el-Sisi (à esquerda) é recebido pelo Presidente Mohamed Morsi, que o promoveu a ministro da Defesa. Foi uma aliança de curta duração, porque o general rapidamente destituiu e mandou prender o sucessor de Hosni Mubarak, aspirando aa ocupar o seu lugar. @ AP | Egyptian Presidency

13 Agosto de 2012: Abdel-Fattah El Sisi (esq.) é recebido pelo presidente Mohamed Morsi, que o promoveu a ministro da Defesa. Foi uma aliança de curta duração, porque o general rapidamente destituiu e mandou prender o sucessor de Hosni Mubarak, ocupando o seu lugar
© Associated Press

Morsi promoveu Sisi e Sobhi a generais e ofereceu-lhes, respectivamente, os cargos de ministro da Defesa e chefe de Estado-Maior. Eles aceitaram e tomaram posse, logo ali, na presença de Morsi, do primeiro-ministro e de outros conselheiros presidenciais.

À tarde, Tantawi e Anan foram convocados para uma audiência com Morsi. Segundo o relato de Esam Al-Amin, ele agradeceu-lhes os serviços prestados e informou-os que tinham sido afastados dos seus postos e já tinham sucessores.

Num gesto de conciliação, deu a entender que não seriam julgados nem humilhados pelas suas acções violentas durante o regime de Mubarak e no período de transição. Foi ainda mais longe ao nomeá-los consultores e condecorá-los com a mais alta distinção nacional, o Colar do Nilo e da República.

O passo seguinte foi anular uma emenda constitucional que o CSFA impusera, atribuindo-se muitos poderes presidenciais e legislativos. Na ausência do Parlamento, também dissolvido pelos militares, Morsi ficou com todas as prerrogativas.

Nomeou depois para vice-presidente Mahmoud Mekki, um jurista com reputação de independência e seriedade, para servir de contrapeso a outros juízes ligados ao antecessor destituído que pudessem contestar as suas deliberações.

Imparável, Morsi afastou ainda os chefes da Marinha, da Força Aérea e da Defesa Aérea, colocando-os como administradores civis em companhias como a que gere o Canal do Suez.

As acções de Morsi foram elogiadas pela maioria dos egípcios, mas esta popularidade incomodou os adversários. Primeiro, fóruns na Internet convocaram uma manifestação para 24 de Agosto, “contra o poder da Irmandade”.

Havia até apelos a que fossem atacadas as sedes da Ikhwan por todo o país. Um antigo deputado, Mohamed Abou Hamed, não se limitou a exortar a uma “marcha de um milhão”, mas encorajou uma “verdadeira revolução”, semelhante à de 25 de Janeiro de 2011 que conduziu à queda de Hosni Mubarak.

A 15 de Julho, Tantawi deixara o aviso de que os militares nunca aceitariam que “uma facção” governasse o Egipto. Esta declaração pública foi interpretada como uma advertência clara contra o domínio da Irmandade e um sinal de que figuras proeminentes do Exército estavam a angariar apoios em vários sectores para um golpe contra a Ikhwan.

Depois da eleição de Mohamed Morsi, por todo o Egipto os homens mais devotos começaram a exigir liberdade de usar barba onde antes era interdito, por lei ou tradição
© voanews.com

Numa das manchetes do Al-Dostour, o jornal confiscado, lia-se: “Não poderemos defender o Egipto de uma anunciada destruição sem a unidade do Exército e do povo, sem uma frente de salvação nacional, que consista em líderes políticos e militares, e sem a criação de um Estado inequivocamente civil com protecção militar, exactamente segundo o sistema turco.”

“Se isto não acontecer nos próximos dias, o Egipto entrará em colapso e lamentaremos ter desperdiçado os dias que nos restam antes de aprovar uma nova Constituição. Protestos populares pacíficos são imperativos e um dever nacional.”

Ora, tudo isto foi subentendido como um plano de alguns membros do CSFA para invalidar a presidência de Morsi. O marechal Tantatwi, por exemplo, teria recusado estar presente em reuniões marcadas pelo primeiro-ministro, Hesham Qandil, para não ter de prestar contas a um líder civil.

Por isso, Shahira Amin insiste em dar o benefício da dúvida ao primeiro presidente eleito. Até agora, pelo menos, não foi coagida pela sua condenação implacável das novas autoridades, designadamente, por estas defenderem que a mutilação genital feminina deve ser interdita até aos 8 anos mas legalizada a partir da puberdade.

“Sob o antigo regime, fui ameaçada várias vezes pela segurança de Estado,” contou a premiada jornalista, que é também correspondente da agência russa Novosti, e colunista do Daily News Egypt.

“A pior situação foi em 2006, quando fiz uma reportagem sobre refugiados sudaneses massacrados pelas forças de segurança. Apareceu-me um tipo destes serviços que me disse: “‘Tudo o que é noticiado no país pode ser usado pelo povo para exprimir a sua fúria, e a repórter pode desaparecer da face da terra, ficou bem claro?'”

“Durante meses, afastei-me da política, mas depois pensei, ‘se és jornalista tens de cobrir todas as histórias’, e retomei o que fazia.”, adiantou. “Quando me demiti, o Governo colocou o meu nome numa lista de pessoas proibidas de deixar o país. Ameaçaram incendiar a minha casa e alvejar-me a tiro. Felizmente, para mim, Mubarak caiu e tudo mudou. O medo desapareceu. Já não podem fazer isto.”

Com Morsi, começou a haver “receios de se estar a caminhar, lentamente, para um totalitarismo conservador islâmico“, segundo o analista Osama Diab
© egyptianstreets.com

A opinião de Shahira Amin não difere muito da do académico egípcio Adel Iskandar, professor na Universidade de Georgetown (EUA) [o seu livro mais recente é “Egypt in Flux: Essays on an Unfinished Revolution”], embora ele se mostre mais prudente. O véu de Fatma Nabil não o perturbou.

“De um modo geral”, disse-me numa entrevista por e-mail, “é justo assumir que qualquer lei ou regulamento proibindo as mulheres de aparecerem na televisão devido à sua indumentária ou aparência é, em si só, uma discriminação, seja porque estão vestidas de mais ou de menos.”

“No caso da TV estatal egípcia, impedir que as mulheres lessem as notícias com o lenço tornou-se problemático, em parte porque a maioria das mulheres no país usa de facto o véu e, portanto, as locutoras não representavam o padrão da sociedade.”

Iskandar, especialista em media e autor da primeira grande obra de referência sobre um dos maiores fenómenos televisivos no Médio Oriente (Al-Jazeera: The Story of the Network that is Rattling Governments and Redefining Modern Journalism), comparou o que se passava na televisão egípcia com o que acontecia nos anos de 1980 e 1990 em alguns países da América do Sul.

“Exigiam locutores de ascendência europeia, sobretudo nos países com uma substancial população aborígene, negra ou de qualquer outra etnia.”

“Ver uma mulher com véu a ler as notícias foi um acontecimento monumental no Egipto, até porque representa a vitória das funcionárias da televisão que há muito travavam uma prolongada batalha judicial”, salientou Iskandar.

“Os que estão preocupados com os símbolos religiosos e a sua imposição na vida pública não deixam de ter razão, mas este caso particular não deve ser transformado num campo de batalha porque não parece, ainda, ser uma tendência e é, predominantemente, uma questão de escolha pessoal.”

“Uma vitória para a liberdade de expressão” é também o parecer de Osama Diab, jornalista egípcio independente que colaborou recentemente com a BBC numa investigação sobre a fortuna da família Mubarak congelada no Reino Unido – um escândalo que está a abalar o Governo britânico que tem, supostamente, dificultado a devolução desses fundos.

“As mulheres só apareciam de véu em programas religiosos”, referiu Diab, em declarações por e-mail. Quero pensar que, tal como permitir que os polícias usem barba, não é uma tentativa de islamizar gradualmente os media e as instituições do Estado; que não é uma nova forma de opressão para com quem não é muçulmano. Só retrospectivamente, porém, isso poderá ser avaliado.”

O primeiro canal de televisão por satélite, no Egipto, operado totalmente por mulheres usando o niqab (que cobre todo o rosto e corpo) foi inaugurado em 20 de Julho de 2012. A data coincidiu com o primeiro dia do mês sagrado islâmico (de jejum) do Ramadão. A estação - onde não homens não seriam admitidos - deveria chamar-se Maria. seria uma "homenagem" a um cristã copta que o profeta dos muçulmanos libertou da escravatura e com quem se casou. @ Al-Ahram

O primeiro canal de televisão por satélite, no Egipto, operado totalmente por mulheres usando o niqab (que cobre todo o rosto e corpo) foi inaugurado em 20 de Julho de 2012.  A estação – onde não homens não são admitidos – chama-se Maria, “homenagem” a uma antiga escrava cristã copta com quem o profeta dos muçulmanos se casou
© Al-Ahram

Sim, como os véus, as barbas têm sido foco de tensão. Na terça-feira, 4 de Setembro [2012], um grupo de polícias barbudos participou, pela primeira vez, numa manifestação, contestando a ordem do ministro do Interior, Ahmed Gamal el-Din, para que voltem a usar a lâmina.

“Ninguém nos impedirá de seguir a orientação do nosso profeta [Maomé] e as pessoas irão ver-nos, com a ajuda de Deus, no meio delas, nas ruas do nosso querido Egipto, no nosso uniforme da Polícia, com as barbas que temos”, proclama uma página do Facebook que foi traduzida pelo site AllAfrica como “Sou um polícia com barba”.

As leis egípcias exigem que os polícias e soldados tenham uma “aparência apresentável” e sucessivos governos entendem isso como “cara bem barbeada”.

A manifestação seguiu-se a um veredicto do Tribunal Administrativo do Cairo que deu razão ao ministro, irredutível na proibição das barbas e na suspensão dos agentes infractores. Para muitos teólogos, segundo o jornal Egypt Independent, a barba é sinal do compromisso do homem para com a sua fé, mas a Polícia e o Exército não admitem barbas e cabelos compridos.

Os polícias que recusaram barbear-se haviam instaurado um processo judicial contra o processo disciplinar interposto pelo ministro, acusando-o de “violação da liberdade individual e da Shariah”, a lei islâmica que é uma das principais bases da Constituição de 1971, ainda em vigor. As duas partes podem ainda recorrer ao Supremo Tribunal Administrativo.

É significativo o braço-de-ferro entre polícias e ministro porque Gamal el-Din, 59 anos, é um oficial de carreira escolhido por Morsi para levar a cabo uma das mais urgentes e difíceis tarefas da sua presidência: a reforma do que foi, durante 30 anos, um dos principais pilares do aparelho de repressão de Mubarak.

Como constatou Yasmine Saleh, da agência Reuters, “o Ministério do Interior no Cairo, uma espécie de fortaleza cercada por torres de vigia, simbolizou o poder, o privilégio e o secretismo da Polícia.

Muitos fundos foram atribuídos a esta força, que esmagou a rebelião islamista nos anos 1990 e cujo orçamento era superior aos dos ministérios da Educação e da Saúde em conjunto. Para o biénio 2012-2013, tem à sua disposição o equivalente a 2800 milhões de dólares.”

A antipatia da Polícia para com Morsi ficou evidente no dia em que prestou juramento quando alguns agentes comentaram aos repórteres, sob condição de anonimato: “Ele não é o nosso presidente; como é que alguém que nós prendemos pode mandar em nós?”

Mais do que o Exército foi a Polícia que acabou por se tornar num dos rastilhos da sublevação de 2011 quando o activista Khaled Said foi morto enquanto detido numa esquadra. Foi também a Polícia que usou gás lacrimogéneo e munições reais para dispersar os manifestantes anti-Mubarak em Tahrir.

Morsi garante estar determinado a eliminar os vestígios malignos da “velha ordem” e a superar o vazio de segurança que se instalou no país, com um aumento da criminalidade, agora que é mais difícil corromper os polícias.

Familiares de membros da Irmandade Muçulmana reagem em choque depois de saberem que eles foram condenados à morte pelo tribunal, em 28 Abril de 2014
© Mohamed Abd El Ghany | Reuters | TIME

O facto de o barbudo Morsi não ter sucumbido à tentação de ceder às exigências dos polícias mais devotos animou Shahira Amin, que não é mulher de ostentar símbolos religiosos em público e foi encorajada pela secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, a regressar à Nile TV (“só aceitei voltar na condição de não interferirem com o meu trabalho”).

Tornou-se produtora e anfitriã de um programa de entrevistas, mantendo a sua colaboração com a CNN. “Nunca ninguém me forçará a usar o hijab, e não há sinais de que isso possa acontecer, mas caso venha a ser obrigatório, eu não o usarei.”

Fatma Nabil não é a única que apresenta os noticiários com a cabeça coberta. Outras quatro locutoras que há muito reclamavam este direito em tribunal, algumas das quais depois de terem sido despedidas, aparecem agora frequentemente na televisão estatal.

“Eu apoio esta decisão porque representa o fim da discriminação”, frisa a jornalista que ficou sob fogo cerrado depois de ter entrevistado o soldado israelita Gilad Shalit quando este foi libertado pela ala militar do movimento palestiniano Hamas.

“Suportei as mais duras críticas mas depois pediram-me desculpa e reconheceram que não fui desumana [embora tenha concordado em fazer as perguntas na presença dos raptores. o que condicionava as respostas].”

Mais dificuldade tem Shahira Amin em entender a abertura, em Julho, durante o Ramadão, de um canal só para mulheres com niqab, o lenço que até os olhos esconde.

“Num país democrático encontramos todas as tendências, e todos são livres de se exprimirem da forma que quiserem mas, neste particular, creio que seria preferível que elas tivessem lançado uma estação de rádio – afinal, ninguém jamais as poderá ver, qual é o propósito?”

Nada abala o optimismo de Shahira Amin: “Acredito que as coisas vão melhorar. Já conseguimos tanto embora falte muito caminho para percorrer. Elegemos um presidente civil que substituiu uma ditadura militar. É um presidente que podemos desafiar e a quem podemos pedir contas. Somos livres de protestar e exprimir as nossas reivindicações.”

Cairo, 3 Julho de 2014: Manifestação de apoiantes de Morsi contra a sua destituição. Os Irmãos Muçulmanos que tinham desistido da dissidência quando a revolução de 2011 derrubou Mubarak, voltaram às rua exigindo o poder que lhes foi usurpado
© Khaled Kamel | media.pri.org

O jovem Osama Diab, um dos autores de The Chronikler, galardoado pela Deutsche Welle com o Prémio do Melhor Blogue em Língua Inglesa 2012, é mais cauteloso, nas suas declarações: “Os poderes que Morsi detém na ausência de uma Constituição e de um novo Parlamento são mais do que os de Mubarak. A única diferença é que Morsi foi eleito e goza de algum apoio popular.”

“Ele foi rápido a usar esses poderes, inesperadamente, para fortalecer o seu controlo sobre todas as instituições, dos militares aos media”, observou Diab.

Tal como tudo no Egipto, nada é preto e branco do ponto de vista da democracia. Isto pode ser considerado o triunfo de um poder civil eleito mas, ao mesmo tempo, há receios de que possamos estar a caminhar, lentamente, para um totalitarismo conservador islâmico.”

“Quanto ao que resta do regime de Mubarak, uma parte é apenas constituída por grupos de interesses corruptos sem pendor ideológico”, analisou Diab.

“Muitos deles acorreram a aproximar-se dos novos líderes. Alguns empresários que estavam ligados a Mubarak, como o bilionário Mohamed Farid Khamis, acompanharam Morsi na sua recente viagem à China. A outra parte, que conseguiu escapar à prisão, irá facilmente integrar-se também na nova ordem da Irmandade.”

Adel Iskandar, o professor em Georgetown, não tem, por seu turno, qualquer dúvida de que “o Estado no Egipto está a ser “ikhwanizado”, embora isso não fosse totalmente imprevisível dado o sucesso extraordinário da Irmandade em todas as etapas eleitorais nos últimos 20 meses.”

E acrescentou: “É muito natural, em qualquer parte do mundo, que um partido que consolidou poder em eleições tente nomear figuras que lhe são leais para cargos importantes no Governo e no Estado. Por isso, é saudável que não critiquemos o que é típico num processo político.”

“É, todavia, legítima a preocupação quanto à ideologia e doutrina da Irmandade – ambas secretas e opacas; e também quanto à sua restrita hierarquia institucional. Isto é, fundamentalmente, problemático e não é um bom augúrio num contexto pós-revolucionário que deve ser centrado na garantia de transparência.”

O afastamento de Tantawi e de Anan, e a sua substituição por oficiais de uma geração mais jovem e ambiciosa, uns próximos da Ikhwan outros porque, talvez, odiassem o antigo titular da Defesa mais do que Morsi, têm gerado conjecturas sobre a natureza dos laços entre os Irmãos e os generais.

“Creio que a relação entre o Exército e a Irmandade é agora de um benefício mútuo simbiótico”, observou Iskandar.

“Não serve a nenhuma das instituições a disputa de poder e controlo, por isso, ambas decidiram colaborar em vez de se confrontarem. Acredito também que esta relação foi forjada com o entendimento de que cada uma exerce a sua autoridade e domínio sobre determinados aspectos do Estado, e que ninguém anda a pisar os calcanhares dos outros.”

“Não prevejo qualquer rivalidade conflituosa entre os militares e os Irmãos, excepto se Morsi e os seus tentarem ‘ikhwanizar’ o Exército e o seu vasto poder económico.”

Cerca de 800 pessoas foram mortas na praça de Rabaa, no Cairo, num massacre ordenado pelo general El Sisi. “O colapso das forças de segurança [em 2011] colocou o Exército na posição insustentável de ou intervir para deixar o regime intacto, ou optar pela decapitação do regime [de Mubarak], a opção final”, diz o analista Hussein Ibish
© Mosa’ab Elshamy | TIME

Sobre esta questão, Osama Diab constatou: “Desde a revolução de 1952 [que levou os Oficiais Livres de Gamal Abdel Nasser a pôr fim à monarquia], as forças de segurança revelaram-se sempre capazes de, rapidamente, demonstrar lealdade para quem está no poder. Havia receios de que isso pudesse não acontecer se o Presidente não proviesse dessas instituições.”

“Muitos duvidavam que um presidente civil fosse capaz de exercer autoridade sobre o “Estado profundo” [o sistema que detinha os privilégios]. Até agora, tudo parece estar a correr bem, sobretudo porque Morsi não levou perante a Justiça os que mataram centenas de manifestantes no último ano e meio, nem prejudicou os seus interesses. Terá sido este o acordo implícito entre o presidente e as forças de segurança.”

Face a uma aparente “coexistência”, têm sido publicados, entretanto, vários ensaios reflectindo sobre o que aconteceu exactamente no Egipto em Janeiro de 2011.

“Não penso que, de facto, tenha havido uma “revolução” – de todo!”, sentenciou Hussein Ibish, académico de origem libanesa e residente nos Estados Unidos, onde é um destacado comentador político e senior fellow na American Task Force on Palestine.

“O que realmente aconteceu durante a queda de Mubarak foi que os manifestantes em Tahrir superaram as forças de segurança em número e na determinação depois de vários dias de confrontos intensos”, diz-me Ibish, numa entrevista por e-mail.

“O colapso das forças de segurança colocou o Exército na posição insustentável de ou intervir para deixar o regime intacto, ou optar pela decapitação do regime, a opção final. Eles [militares] afastaram o presidente, os seus filhos e algumas figuras-chave para salvar as estruturas que restavam do “Estado profundo” e as instituições estabelecidas que governam o Egipto.”

Ibish salvaguarda: “Não quer isto dizer que a mudança foi cosmética, mas foi, efectivamente, mais evolucionária do que revolucionária. Foi uma espécie de transição obtida através de um pacto, sem que os termos acordados por cada uma das partes alguma vez tenham sido clarificados.”

Os egípcios Osama Diab e Adel Iskandar concordam que o termo “revolução” adquiriu “significados múltiplos”.

Diz o primeiro: “Para a esquerda, é a luta pela justiça social e direitos económicos – uma luta que ainda continua; para a Irmandade, a revolução foi mais ou menos os 18 dias de protestos até à queda de Mubarak, porque é convicção da Ikhwan que chegou o seu tempo de poder e já não há necessidade de prosseguir a dissidência.”

“Agora, são os Irmãos quem mais prega a ideia de estabilidade; para os liberais, a revolução parece nunca ter acontecido, e eles começam a encará-la como um golpe contra Mubarak para que a Irmandade ascendesse ao poder.”

Milhares de egípcios protestam junto ao Palácio Presidencial de Qoubba, no Cairo, contra Mohammed Morsi e a Irmandade Muçulmana, em Julho de 2013, antes de o Exército o derrubar
© Getty Images | Mirror Online

Iskandar acrescenta: “O termo “revolução” é extremamente complexo. Há os que lamentam a revolução e a vêem como fonte de todos os seus males por ter conduzido a Ikhwan ao poder; há os que a vêem como um momento efémero de esperança que não mais voltará; e há os que acreditam que a partir do actual Governo irá emergir uma nova república revolucionária que irá preservar a santidade de Tahrir e de tudo o que ela representa.”

“Nenhuma destas visões está correcta e nenhuma está incorrecta”, avalia Iskandar. “Em resumo, o Egipto está num fluxo. E, enquanto a economia permanecer em decadência e declínio, a revolução estará inacabada.”

A situação económica vai ser, tal como a reforma dos serviços de segurança, um dos grandes desafios de Morsi e da Irmandade, que podem ser ideologicamente herméticos mas são ardentes defensores do mercado livre e do capitalismo.

“A Ikhwan está a adoptar um modelo económico insustentável, similar ao de Gamal Mubarak [o filho que Hosni preparava para ser seu sucessor], envolvendo a privatização de indústrias estratégicas e a eliminação de subsídios que têm sido a única forma de milhões de famílias egípcias colocarem comida na mesa”, reprovou Osama Diab.

“Prevê-se que, devido a estas políticas, o Egipto registe um aumento abrupto dos preços dos combustíveis e de produtos básicos que consomem a maior parte do rendimento familiar do cidadão médio”, adiantou o blogger que reparte o seu tempo entre Londres e o Cairo. “Assim sendo, a próxima fase da sublevação já não deverá centrar-se na liberdade mas na economia.”

As receitas do turismo, sector que mais emprega e é talvez a maior fonte de moeda estrangeira do Egipto, caíram cerca de 30% em 2011, para 9 mil milhões de dólares, e a recuperação está a ser muito lenta.

Interessado em manter um “arco sunita” no Médio Oriente que diminua a influência do islão xiita, o Qatar anunciou na sexta-feira a concessão de 18 mil milhões de dólares ao país que permanece “o coração do mundo árabe”.

Os fundos serão concedidos num período de cinco anos, e juntam-se aos cerca de 500 milhões já doados e à promessa de outros 2 mil milhões a ser enviados ao Banco Central.

“O Egipto está num fluxo“, comenta Adel Iskandar. “E, enquanto a economia permanecer em decadência e declínio, a revolução estará inacabada”
© Newsday

Sinal de que a Irmandade deixou de ser um papão é a disponibilidade do Fundo Monetário Internacional (FMI) para negociar um empréstimo que Morsi pediu no valor de 4800 milhões de dólares, que deverá ser aprovado até ao final deste ano.

Também a Administração de Barack Obama não exclui um perdão parcial (mil milhões de dólares) da dívida do Egipto para com os EUA que ultrapassa os 3 mil milhões. Outros créditos e investimentos no valor de centenas de milhões estão igualmente a ser ponderados por companhias norte-americanas.

Ainda que a percepção generalizada seja a de que a Irmandade está a solidificar o seu poder, tem-se assistido nos últimos meses à emergência de novas formações políticas liberais e laicas que esperam destronar o monopólio da Ikhwan nas próximas eleições parlamentares.

Osama Diab está relativamente céptico: A maior parte dos novos partidos ou coligações parecem apostar apenas no sucesso relativo de alguns candidatos presidenciais, como o nasserista Hamdeen Sabahy e o islamista moderado Abdelmoniem Aboul Fotouh, não tendo programas claros nem apoio popular. Ainda que os seus nomes possam constituir um ímpeto inicial, não é suficiente para o êxito a longo prazo de um partido político.”

Segundo Diab, “o único dos partidos recém-criados que tem o potencial de ser um rival sério da Irmandade é o al-Dostour (A Constituição), de Mohamed ElBaradei [antigo director-geral da Agência Internacional de Energia Atómica], que poderá conquistar um quinto dos deputados nas próximas eleições legislativas.

Também a oposição de esquerda, embora com uma fraca representação no Governo e no Parlamento, continua a manter um certo grau de poder na sociedade civil, no activismo independente e na política de rua.”

Adel Iskandar revelou-se mais optimista: “Considero estes novos partidos não-islamistas uma alternativa viável, e eles podem muito bem captar apoio suficiente para desafiar a Irmandade em eleições futuras. Há, contudo, o receio de que a Ikhwan consiga criar uma situação em que se coloque numa posição injustamente vantajosa em futuros escrutínios.”

“Os processos eleitorais têm de permanecer transparentes para que as pessoas confiem neles”, acrescentou. “Além disso, ficou claro nas anteriores eleições que a terceira corrente – não islamista e não-alinhada com o anterior regime – constitui o maior bloco de votantes no país.”

“Se concorrer unida constituirá uma ameaça significativa ao controlo que a Ikhwan exerce sobre o Governo. Por enquanto, este é o tempo de a Ikhwan brilhar – para o bem e para o mal”.

[Em 2013, Morsi foi derrubado e preso. Em 2019, morreu durante uma audiência em tribunal.]

Shahira Amin

"No caso da TV estatal egípcia, impedir que as mulheres lessem as notícias com o lenço tornou-se problemático, em parte porque a maioria das mulheres no país usa de facto o véu e, portanto, as locutoras não representavam o padrão da sociedade", disse o académico Adel Iskandar. @ Jadaliyya

Adel Iskandar

 "As mulheres só apareciam de véu em programas religiosos", referiu o blogger Osama Diab. "Quero pensar que, tal como permitir que os polícias usem barba, não é uma tentativa de islamizar gradualmente os media e as instituições do Estado." @ Egypt Daily News

Osama Diab

Hussein Ibish

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO, em 9 de Setembro de 2012 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on September 9, 2012

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