Iniciada em Fevereiro de 2022, a brutal invasão russa da Ucrânia, o maior conflito na Europa desde 1945, monopolizou a atenção e ofuscou outros dramas no resto do mundo. Neste Ano Novo, as mais importantes organizações humanitárias suplicam que não se feche os olhos aos países que têm sido esquecidos. (Ler mais | read more...)

© Bloomberg.com
Os números divulgados por agências das Nações Unidas são alarmantes. O mundo enfrenta “a maior crise alimentar da história moderna”, motivada por conflitos e choques climáticos, pelos efeitos de uma pandemia que resiste e pela ameaça de uma recessão global.
Em 2022, viviam em condições de insegurança alimentar pelo menos 222 milhões de pessoas em 53 países. Em 37, a fome era um “risco real” para 45 milhões. As previsões para 2023 parecem mais sombrias.
O objetivo de pôr fim à pobreza extrema, que afecta agora uns 90 milhões de pessoas, “já não é alcançável”. Não se criam empregos suficientes, mas aumentam imenso os preços dos produtos básicos. A saúde é assustadoramente frágil: a Covid-19 continua em mutação, com poucas vacinas administradas nos países mais pobres. Há novos surtos de Monkeypox (varíola dos macacos), Ébola e cólera; há menos testes, tratamento e prevenção de enfermidades como a sida.

© Jayanta Dey | Reuters
As alterações climáticas (2022 foi o ano mais quente, com secas e inundações devastadoras) obrigaram a respostas de emergência em pelo menos 15 dos países mais desprotegidos. Segundo a ONU, estima-se que, até ao final deste século, “as mortes causadas pelo calor extremo poderão ser comparáveis, em magnitude, a todos os cancros e doenças infecciosas”.
Conflitos violentos continuam a dizimar civis, sobretudo quando se atacam escolas e hospitais em áreas densamente povoadas. Os mais vulneráveis têm sido crianças. Guerras e “desastres que não são naturais” deixaram 103 milhões de pessoas – 1% da população mundial – em situação de deslocadas, uma tendência que persiste desde há 20 anos, mas que agora “atingiu um recorde”, segundo o ACNUR. Cerca de dois terços dos refugiados e requerentes de asilo são originários de países onde falta comida para subsistir.

© Daniel Berehulak | The New York Times
A nível mundial, em maior número do que os homens e rapazes, as mulheres e raparigas continuam a ser as principais vítimas da pior pobreza – pelo menos 338 milhões –, a vasta maioria delas na África subsariana e na Ásia do Sul e Central. Os cálculos da ONU apontam para “quatro gerações, ou 142 anos” até ser possível chegar à paridade de género.
A violência em relação às meninas aumentou com a pandemia: pelo menos 113 milhões correm o risco de ser arrastadas para casamentos infantis. A covid também teve impacto na educação: nos países de baixos rendimentos, as crianças foram sujeitas a um confinamento mais prolongado; dos 1600 milhões impedidas de frequentar a escola, 1300 milhões não tinham internet em casa, nem manuais para estudar.
Para 2023, prevê-se que “uma em cada 23 pessoas” – um total sem precedentes de 339 milhões – precisará de assistência humanitária. Isto é o equivalente ao terceiro país mais populoso do mundo – os EUA. Só as Nações Unidas e organizações suas parceiras planeiam socorrer este ano 230 milhões em 69 países, o que exigirá fundos de 51.500 milhões de dólares. O que se segue são algumas das crises que não devemos ignorar.
África

© Farah Abdi Warsameh | Associated Press| The Washington Post
Dos 16,8 milhões de habitantes da Somália (três milhões dos quais deslocados internos), quase metade, ou 7,8 milhões, vão precisar de ajuda internacional até meados de 2023, porque a um conflito armado que dura há três décadas juntou-se uma seca de que não há memória, alerta o International Rescue Committee (IRC). Todos os dias há somalis a morrer de fome.
Num país que importa mais de 90% dos seus alimentos, profundamente dependente dos cereais que (agora não) chegam da Ucrânia ou da Rússia, o número de pessoas que, este ano, poderá enfrentar “níveis de segurança alimentar graves ou catastróficos” deverá ascender a 8,3 milhões.
Na Etiópia, a invasão russa da Ucrânia também abalou a economia, a acção combinada de uma seca prolongada no Sudeste (seis anos consecutivos sem chuva, com um subsequente surto de cólera por falta de água potável), e uma guerra na região do Tigré, no Norte (considerada “a mais mortífera de 2022”, interrompida em Novembro por um frágil cessar-fogo) deixou 20 milhões em insegurança alimentar e 3,5 milhões na condição de deslocados internos. De um total de 120,8 milhões de habitantes, 26,6 milhões precisam de assistência humanitária urgente.

© Mohamed Nureldin Abdallah | Reuters | The Guardian
No Burkina Faso, que enfrenta “a maior crise humana da sua história”, segundo a ONU, uma em cada quatro pessoas precisa de ajuda, ou seja 4,7 milhões dos 22,1 milhões de habitantes. Num Estado onde grupos jihadistas controlam cerca de 40% do território, mais de 1,76 milhões são deslocados internos. A estes juntam-se 29 mil refugiados, a maioria proveniente do Mali, também fustigado por ataques da Al-Qaeda e do Daesh. Em países vizinhos, há também 55 mil refugiados e requerentes de asilo naturais do Burkina Faso.
Na República Democrática do Congo (RDC, ex-Zaire), 26,4 milhões dos 95,2 milhões de habitantes necessitam de ajuda humanitária. Este é um país onde operam mais de cem grupos armados no Leste e onde 5,6 milhões de pessoas são deslocados internos. A situação já era grave antes de o grupo rebelde M23, supostamente apoiado pelo Ruanda, ter desencadeado uma nova ofensiva em Março de 2022. O reaparecimento do M23 fez aumentar não apenas o número dos que fogem de casa (quase meio milhão só na província de Ituri, no Kivu Norte), mas também o dos que são vítimas de assassínios e violações.
Com eleições gerais previstas para este ano, teme-se um crescendo de tensões políticas e uma escalada nos combates, o que por sua vez agravará os problemas com a saúde (surtos recorrentes de cólera, paludismo, sarampo, Ébola, peste bubónica) e alimentação (um em cada quatro congoleses enfrenta níveis graves de insegurança alimentar, o que obriga muitas famílias a retirar os filhos da escola ou a tomar outras decisões que sacrificam o seu futuro).

© Ben Curtis | Associated Press
No Sudão do Sul, 9,4 milhões dos 11,6 milhões de habitantes precisam de ajuda humanitária. Pelo menos 2,3 milhões são refugiados – “a maior crise em África” –, metade dos quais crianças, que fogem sozinhas. Estima-se que 7,8 milhões de sul-sudaneses vão enfrentar insegurança alimentar nunca vista, nem durante o auge da guerra civil (2013-2020), o que “forçará uma em cada quatro pessoas a fazer escolhas: comer ou vender o que têm para sobreviver”.
O cessar-fogo na mais jovem nação do mundo não impediu a proliferação de grupos armados, envolvidos numa série de conflitos. As alterações climáticas, com secas e inundações, têm destruído colheitas e exacerbado doenças. As receitas do petróleo não são suficientes para amparar uma economia que também sofreu o impacto da guerra na Ucrânia.
No Chade, conflitos armados prolongados e instabilidade política permanente fizeram deste país, em termos globais, “o menos capaz de enfrentar as alterações climáticas”, segundo o IRC. No Índice de Desenvolvimento Humano, ocupa o segundo pior lugar (190º em 191). Pelo menos 6,9 milhões dos 17,4 milhões de habitantes precisam de ajuda. Um milhão de deslocados à força coexiste com cerca de 580 mil refugiados vindos de Estados vizinhos, como o Sudão.
Más colheitas, devido a chuvas constantes em 2022 (“uma catástrofe” para a agricultura e a pecuária), a subida dos preços dos cereais e fertilizantes importados da Ucrânia, a falta de acesso a água potável, à saúde e à educação contribuíram para aumentar a pobreza, a insegurança alimentar (que afecta 6,1 milhões de chadianos – 2,1 milhões dos quais em “fase severa”) e as doenças (sarampo, paludismo e poliomielite atacam mais de 2 milhões).
Américas

© Reg Natarajan | Wikipedia
No Haiti, a violência é frenética desde o assassínio do presidente Jovanel Möise em 2021. Desesperado, o seu sucessor, Ariel Henry, pediu apoio militar estrangeiro por não ser capaz de conter os bandos armados que controlam agora mais de metade do país.
Eles “sufocam” a capital, Port-au-Prince, bloqueiam estradas, controlam terminais de combustível e rotas de distribuição de bens essenciais. O “reino de terror” que eles impõem inclui “o recurso a violações para punir e intimidar civis, muitos deles crianças com 10 anos de idade”, denuncia a ONU.
O país está “à beira do precipício”, adverte o IRC, devido “a uma instabilidade política incontrolável, à actividade criminosa e aos problemas económicos que o afligem”. Os preços dos alimentos subiram 30%. Um surto de cólera, activo desde Outubro de 2022, vai causar ainda mais mortos. Dos 11, 7 milhões de haitianos, 5,2 milhões precisam de ajuda; 4,7 milhões enfrentam insegurança alimentar; mais de 113 mil são deslocados.
Na Venezuela, pelo menos 7 milhões dos 29,3 milhões de habitantes precisam de assistência. Há 12,3 milhões em insegurança alimentar – três em cada quatro vivem abaixo do limiar de pobreza –, mais de 8 milhões têm dificuldade em conseguir ajuda médica e 9,3 milhões não têm acesso a medicamentos. Mais de 7 milhões de venezuelanos abandonaram o país desde 2014.

© Getty | International Rescue Committee
Em 2023, também necessitarão de ajuda países como a Colômbia (7,7 milhões), El Salvador (1,1 milhões), a Guatemala (5 milhões) e as Honduras (3,2 milhões). Neste último, as crises “são multidimensionais e cumulativas, num contexto de grande fragilidade, devido a conflitos políticos e sociais, aos efeitos das alterações climáticas, a deslocamentos forçados e a migrações”.
Pelo menos 59% da população (4,9 milhões, incluindo 500 mil crianças) vive na pobreza, agravada pela subida dos preços do milho branco (70%), dos fertilizantes (88%) e da energia (30%). As Honduras registam uma das maiores taxas de homicídio da região (6,79 por 100 mil habitantes), só ficando atrás da Jamaica e da Venezuela. O ratio de 6,8 femicídios por cada 100 mil mulheres é “o mais elevado de toda a América Latina e Caraíbas”, quase triplicando o ratio global de 2,3.
Ásia

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No Afeganistão, onde quase toda a população (97%) vive na pobreza e 91% do rendimento familiar é gasto em comida, 28,3 milhões dos 40,8 milhões de habitantes precisam de assistência humanitária. Mais de 18 milhões enfrentam níveis graves de insegurança alimentar. Cerca de 2,7 milhões são deslocados internos. De um total de 170 países, este é o pior para a inclusão das mulheres – proibidas de estudar e trabalhar, vítimas de todo o tipo de abusos -, e também para a justiça e a segurança.
Os serviços de saúde e educação, com as despesas reduzidas em 81%, não conseguem atender às muitas necessidades. Além das políticas repressivas dos talibãs, que regressaram ao poder em 2020 após duas décadas de guerra, a miséria afegã é também agravada pelas alterações climáticas. Três anos de seca e inundações derreteram glaciares nos Himalaias, arrasaram colheitas, ceifaram vidas.

© Getty Images | Inside Climate News
País particularmente vulnerável aos choques climáticos, o Paquistão sofreu, em 2022, primeiro uma intensa onda de calor, com temperaturas acima dos 45ºC, que causou incêndios florestais, destruiu colheitas (mais de 50%) e cortou a electricidade.
Vieram depois chuvas de monção torrenciais, cheias e desabamentos de “proporções épicas”, que afectaram cerca de 33 milhões de pessoas, destruindo casas, estradas e pontes. Isto, em combinação com uma crise económica, uma crise da dívida e uma crise política, aumentou a necessidade de ajuda internacional para socorrer 20,6 milhões dos 229,5 milhões de paquistaneses, 4,7 milhões dos quais em insegurança alimentar.
Europa

© Comité Internacional da Cruz Vermelha
A guerra na Ucrânia completa em 2023 o seu primeiro aniversário, e parece não ter fim à vista. É considerado “o pior conflito na Europa desde 1945”. Cerca de oito milhões de ucranianos fugiram, a maioria para países vizinhos, como a Polónia, e não sabem quando poderão regressar. Outros oito milhões são deslocados internos.
Os que continuam no país são obrigados pelos bombardeamentos russos a viver sem água, comida, cuidados de saúde e higiene, luz ou aquecimento, porque as infra-estruturas são diariamente destruídas pelas tropas enviadas pelo Kremlin.

© Simon Townsley | The Telegraph | Groupe de la Banque Africaine de Développement
Em Dezembro, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (OHCHR) tinha verificado um total de 6919 civis mortos – 429 dos quais crianças – e mais de 11 mil feridos, desde que começou a invasão ordenada por Vladimir Putin, em 24 de Fevereiro de 2022.
Por seu turno, o ICR (International Rescue Committee) calcula que, dos 43,2 milhões de ucranianos, 17,6 milhões necessitam de ajuda humanitária. As consequências da guerra na Ucrânia – “o celeiro do mundo”, cujas exportações de cereais e sementes desceram de 7 milhões de toneladas métricas por mês para 3,5 milhões devido ao bloqueio russo de portos por onde se escoava 95% da produção – continuam a fazer-se sentir nos países mais pobres, causando uma “crise alimentar de longa duração”.
Médio Oriente

©Ahmad al-Basha | AFP | Getty Images | CNN
O Iémen, com 80% da população a viver abaixo da linha de pobreza, entra em 2023 em risco de escalada de uma guerra que já dura há nove anos, alerta o IRC. Todas as tréguas têm sido de curta duração.
Dos 31,2 milhões de iemenitas, 21,6 milhões precisam de ajuda humanitária, entre eles 2,2 milhões de crianças desnutridas. Em 2022, mais de 4 milhões de iemenitas eram deslocados internos e 17 milhões enfrentavam níveis graves de insegurança alimentar.
Pelo menos 1,2 milhões de funcionários públicos recebem apenas esporadicamente – ou nem sequer recebem – o seus salários desde 2016. Noventa por cento dos alimentos no Iémen são importados – 42% da Ucrânia e da Rússia. Com o trigo a escassear e os preços a aumentar, vai ser cada vez mais difícil o sustento das famílias.

© Civil Society Centre
No Líbano, incapaz de resolver uma dupla crise, política e económica, pelo menos 2,3 milhões dos 6,7 milhões de habitantes – mais de 80% dos quais a viver na pobreza – precisam de ajuda internacional. Pelo menos 70% das famílias pedem empréstimos para comprar alimentos. A libra libanesa perdeu 95% do seu valor. A taxa de desemprego é de quase 30%.
O primeiro surto de cólera desde 1993 propagou-se rapidamente. Esta situação, causada por décadas de “má governação e corrupção generalizada”, depois agravada pela pandemia, castiga com mais severidade os 1,5 milhões de refugiados sírios – ¼ da população -, que se têm tornado “bodes expiatórios” dos males do país.

© Maya Alleruzzo | Associated Press | Al Jazeera
Na Palestina, com 5,3 milhões de habitantes e há mais de cinco décadas sob ocupação israelita, precisam de ajuda 2,1milhões (61% dos quais na Faixa de Gaza, há 15 anos bloqueada por terra, mar e ar). A situação está a agravar-se desde que chegou ao poder um governo israelita da ultra-direita, que prometeu aos palestinianos mais repressão e menos direitos.
As Nações Unidas consideraram 2022 “um dos anos mais mortíferos” da história recente do conflito israelo-palestiniano, em grande medida devido a um crescendo de ataques de colonos judeus, uma tendência que deverá continuar.
Na Síria, que 12 anos de guerra e penúria transformaram num “narco-Estado”, onde 90% da população vive abaixo do limiar da pobreza e onde o Daesh, apesar de derrotado continua a ser uma ameaça, 15,3 milhões de um total de 19,4 milhões de habitantes precisam de ajuda internacional. Pelo menos 12 milhões de sírios sofrem de insegurança alimentar, 75% não têm acesso aos produtos e serviços básicos.
Em 2022, o primeiro surto de cólera em mais de uma década, com mais de 45 mil casos, expôs a fragilidade das infra-estruturas de abastecimento de água e de saúde. Um terço dos hospitais e quase todos os centros de cuidados primários não funcionam.
No Nordeste, uma região controlada por grupos rebeldes curdos, mas onde também estão presentes forças dos EUA, da Rússia, do Irão e da Turquia, teme-se agora que Ancara avance com uma invasão terrestre, que causará ainda maior instabilidade.

Fontes:
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR), Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), International Committee of the Red Cross (ICRC),International Crisis Group (ICG), International Rescue Committee (IRC), Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas (PAM).
Este artigo foi publicado na edição de Fevereiro de 2023 da revista ALÉM-MAR | This article was published in the February 2023 of the Portuguese news magazine ALÉM-MAR